Aprendendo com E. P. Thompson – Ángela Vergara



Aprendendo com E. P. Thompson



Gosto de pensar que aprendi sobre E. P. Thompson em 1984, quando tinha 12 anos, embora isso possa não ser totalmente verdade. Meu pai havia viajado para o Reino Unido, e entre os muitos livros que trouxe na bagagem havia um exemplar de The Making of the English Working Class, o mesmo que ele me deu uma década mais tarde, quando me mudei para os Estados Unidos para iniciar a pós-graduação. Eu costumava e ainda adoro me perder na biblioteca do meu pai, lendo o que nem sempre consigo entender e ouvindo suas muitas histórias. Mas as memórias da infância são frágeis, transformadas pelo que acabamos nos tornando. Durante muitos anos, a lembrança de um livro que já havia mudado completamente a forma como os historiadores estudavam e pensavam sobre a formação de classes e a consciência de classe se misturou a um cartão-postal que meu pai me enviara daquela viagem. O postal era de Edimburgo e, assim, durante muito tempo, cometi o erro inconcebível de achar que a Universidade de Warwick – onde Thompson ensinou e fundou o Centro de Estudos de História Social – era na Escócia, então imaginava o maior historiador do trabalho de todos os tempos não num campus universitário moderno, mas entre castelos e criaturas mágicas.

Tive que esperar muitos anos mais para ler E. P. Thompson. Estudar história no Chile no início da década de 1990 foi uma experiência doce e ao mesmo tempo amarga e, muitas vezes, frustrante. Apesar da volta da democracia, muitas universidades, especialmente a Universidade Católica, eram bastiões de pseudointelectuais autoritários e de direita. Um antigo ministro de Augusto Pinochet ensinava história moderna do Chile, um professor medievalista comparava a invasão bárbara do Império Romano ao comunismo, e um historiador jurídico (mais tarde acusado de abuso de poder) glorificava a Constituição de 1980. Havia pouco espaço para a história social e do trabalho.

Mas aquele era também um mundo em rápida mudança, e Thompson e a história vista de baixo entraram pela porta dos fundos. O historiador argentino Luis Alberto Romero foi ao campus para falar sobre história social, e lotamos o seminário de Julio Pinto para conhecer o processo de proletarização nas áreas de nitrato. Lemos também Labradores, peones, y proletarios (publicado pela ONG SUR em 1985) de Gabriel Salazar, um historiador que se exilou no Reino Unido e fez seu doutorado na Universidade de Hull. Salazar conta a história do século XIX através dos olhos dos migrantes, itinerantes e trabalhadores diaristas, dando àqueles que chamou de “bajo pueblo” uma voz e um lugar na história nacional.

Como historiadora, interessei-me em recuperar as experiências dos trabalhadores. Para minha tese de doutorado, estudei mineradores de cobre e pesquisei a formação de um movimento sindical forte e militante no norte do Chile. Até 1971, a indústria do cobre era propriedade do capital dos EUA, e os mineiros viviam em campos relativamente isolados; embora seus salários tivessem melhorado ao longo do tempo, as condições de trabalho eram duras e perigosas. Eu queria especialmente compreender como essas experiências únicas de trabalho e de vida moldaram sua identidade coletiva, o movimento operário e as demandas econômicas e políticas. Mais importante ainda, eu queria estudar esses temas e problemas a partir de baixo, da perspectiva dos trabalhadores, e lançar luz sobre sua relação com a política nacional.

Minhas questões foram profundamente influenciadas por E. P. Thompson. Em The Making of the English Working Class, ele definiu classe como um processo histórico, “algo que de fato acontece”, e reconheceu a importância das experiências culturais, sociais e de trabalho das pessoas. Em seu livro mais famoso, um grupo diversificado de trabalhadores e artesãos ganha vida, e aprendemos que as suas atividades políticas, intelectuais e de organização se tornaram o substrato de onde posteriormente emergiu uma forte consciência de classe. Em Customs in Common: Studies in Traditional Popular Culture, Thompson explicou que as revoltas e motins camponeses do século XVIII não foram acontecimentos caóticos e “espasmódicos”, mas sim responderam a um sentimento profundo, entre as pessoas pobres, de que haviam sofrido uma injustiça. Assim ele cunhou o conceito de economia moral, um conjunto de normas e comportamentos aceitos e considerados justos por um grupo de pessoas.

Minhas questões foram profundamente influenciadas por E. P. Thompson. Em The Making of the English Working Class, ele definiu classe como um processo histórico, “algo que de fato acontece”, e reconheceu a importância das experiências culturais, sociais e de trabalho das pessoas. Em seu livro mais famoso, um grupo diversificado de trabalhadores e artesãos ganha vida, e aprendemos que as suas atividades políticas, intelectuais e de organização se tornaram o substrato de onde posteriormente emergiu uma forte consciência de classe. Em Customs in Common: Studies in Traditional Popular Culture, Thompson explicou que as revoltas e motins camponeses do século XVIII não foram acontecimentos caóticos e “espasmódicos”, mas sim responderam a um sentimento profundo, entre as pessoas pobres, de que haviam sofrido uma injustiça. Assim ele cunhou o conceito de economia moral, um conjunto de normas e comportamentos aceitos e considerados justos por um grupo de pessoas.

Ao longo dos anos voltei frequentemente aos escritos de Thompson, sempre aprendendo algo novo. Recentemente reli “Time, Work-Discipline, and Industrial Capitalism”, publicado em 1967 na Past & Present. Nesse ensaio, Thompson analisa o impacto da Revolução Industrial na forma como a sociedade contava e entendia o tempo e, especialmente, como as pessoas trabalhavam. Ao descrever o uso crescente de relógios, as diferenças entre o trabalho determinado pela tarefa e o trabalho determinado pelo tempo, bem como os esforços dos empregadores para exercer mais controle sobre os novos trabalhadores industriais, Thompson pergunta: “Até que ponto, e de que forma, esta mudança no sentido do tempo afetou a disciplina de trabalho, e até que ponto influenciou a percepção interna do tempo dos trabalhadores?” Essa indagação sintetiza muitos de seus longos e mais importantes ensinamentos. A história social e do trabalho não consiste apenas em descrever as mudanças econômicas, as posições dos empregadores, as políticas estatais ou as novas leis, mas, acima de tudo, consiste em examinar o que tais processos significaram para os trabalhadores. Mais adiante no mesmo artigo, ele reflete sobre a questão da disciplina de trabalho e dos discursos morais e, mais uma vez, nos lembra de que essa lista de deveres e regulamentos dos locais de trabalho não tão importante quanto entender “como essa disciplina foi internalizada”.

Numa época de guerras e genocídio, não podemos escrever sobre ele sem mencionar sua luta pela paz mundial e pela justiça social. A imagem que me vem sempre à mente é a de E. P. Thompson com um megafone, num comício contra armas nucleares em Oxford, em 1980. Em “Proteste e Sobreviva” (1980), ele imaginou um mundo livre de bombas atômicas, exortando as pessoas a “atuarem em conjunto para libertar todo o território da Europa, da Polônia a Portugal, das armas nucleares, das bases aéreas e submarinas, e de todas as instituições envolvidas na pesquisa ou fabricação de armas nucleares”. Mas o seu ativismo não se limitou a marchas e manifestações pela paz. Ele também estava comprometido com a educação de adultos e abordou o ensino e a escrita com um propósito radical e democrático.

E. P. Thompson discursando durante uma manifestação antinuclear em Oxford, 1980. Disponível em: https://controversia.com.br/2017/12/11/edward-palmer-thompson-uma-vida-extra-muros/  

Em muitos aspectos, E. P. Thompson é como aqueles alicerces sólidos que nos lembram a importância de estudar a história do trabalho e da classe trabalhadora. Tal como acontece com todos os grandes alicerces, a eles podemos e devemos adicionar novos cômodos e andares, e destruir o que não funciona mais. Hoje, os historiadores do trabalho têm situado o processo de formação da classe trabalhadora em espaços concretos e localizações geográficas, desde bairros até oceanos. Será inconcebível escrever uma história sem mulheres, e há muito que as historiadoras feministas mostram a necessidade de incorporar o gênero e a sexualidade como partes do processo de formação de classes. Estudiosos do Sul Global têm destacado que a experiência e as identidades dos trabalhadores são diversas e não se limitam ao trabalho assalariado e industrial. A atual crise climática também evidenciou que as comunidades da classe trabalhadora estão na vanguarda das lutas por justiça ambiental. Nenhuma dessas muitas reviravoltas teria incomodado E. P. Thompson, pois mantêm viva a história do trabalho e carregam as preocupações intelectuais e políticas de novas gerações de historiadores.

Em 1985 ele participou de uma discussão pública na New School for Social Research em Nova York, e enquanto refletia sobre o futuro e as possibilidades da história radical, observou, como só o melhor professor poderia fazer: “Eu não quero dizer a alguém como escrever história. Eles devem descobrir em seu caminho.”

Learning from E.P. Thompson



I like to imagine that I first learned about E.P. Thompson in 1984, when I was 12 years old, although that may not be completely true. My dad had traveled to the UK, and among the many books in his suitcase was a copy of The Making of the English Working Class, the same copy that he gave me a decade later when I moved to the United States to start graduate school. I used and still do love getting lost in my dad’s library, reading what I can’t always understand, and hearing his many stories. But childhood memories are fragile, transformed by what we eventually become. For many years, the memory of a book that had, by then, completely changed the ways historians were studying and thinking about class formation and class consciousness mixed with a postcard my dad sent me from that trip. The postcard came from Edinburgh, and, thus, for too long, I made the inconceivable mistake of placing Warwick University, where Thompson taught and founded the Centre for the Study of Social History, in Scotland and imagined the greatest labor historian of all time not in a modern university campus but among castles and magic creatures.

I had to wait many more years to read E.P Thompson. Studying history in Chile in the early 1990s was a bittersweet and, many times, frustrating experience. Despite the return of democracy, many universities, especially the Catholic University, were bastions for authoritarian and right-wing pseudo-intellectuals. A former minister of Augusto Pinochet taught us Modern Chilean history, a medievalist professor compared the Barbarian invasion of the Roman Empire to Communism, and a legal historian, later accused of abuse of power, glorified the 1980 Constitution. There was little room for social and labor history.

But it was also a world quickly changing, and Thompson and history from below entered through the back door. The Argentine historian Luis Alberto Romero came to campus to talk about social history, and we crowded Julio Pinto’s seminar to learn about the process of proletarianization in the nitrate fields. We also read Labradores, peones, y proletarios (first published by the NGO SUR in 1985) by Gabriel Salazar, a historian who went to exile to the UK and obtained his PhD at the University of Hull. Salazar tells the history of the nineteenth century through the eyes of migrant, itinerant, and day laborers, giving what he called the “bajo pueblo” a voice and place in national history.

As a historian, I became interested in recovering workers’ experiences. For my doctoral dissertation, I studied copper miners and researched the formation of a strong and militant union movement in the North of Chile. Until 1971, the copper industry was owned by US capital, and miners lived in relatively isolated camps; and while their salaries had improved over time, working conditions were harsh and dangerous. I especially wanted to understand how these unique working and living experiences shaped their collective identity, labor movement, and economic and political demands. More importantly, I wanted to study this from below, from workers’ perspective, and shed light on their relationship with national politics.

My questions were deeply influenced by E.P. Thompson. In The Making of the English Working Class, he defined class as a historical process, “something that in fact happens,” and recognized the importance of people’s cultural, work, and social experiences. Through his most famous book, a diverse group of workers and artisans come to life, and we learned that their political, intellectual, and organizing activities became the place from where a strong class consciousness eventually emerged. In Customs in Common: Studies in Traditional Popular Culture, he explained that eighteenth-century peasant revolts and riots were not chaotic and “spasmodic” events but responded to poor people’s deep sense that an injustice had been committed against them. Then, he coined the concept of the moral economy, a set of accepted norms and behaviors that a group of people considered fair.

Over the years, I have often returned to Thompson’s writing, always learning something new. I recently re-read “Time, Work-Discipline, and Industrial Capitalism,” published in 1967 in Past & Present. In this essay, Thompson analyzes the impact of the Industrial Revolution on how society measured and understood time and, especially, how people worked. As Thompson describes the growing uses of watches and clocks, the differences between task and time-oriented work, and employers’ efforts to exert more control over new industrial laborers, he asks: “How far, and in what ways, did this shift in time-sense affect labour discipline, and how far did it influence the inward appreciation of time of working people.” This sentence summarizes many of his long and most important teachings. Labor and social history is not only about describing economic changes, employers’ attitudes, state policies, or new laws but, above all, about examining what these processes meant for working people. Later in the same article, he reflects on the issue of work discipline and moral discourses, and, once again, he reminds us that what is important is not so much this list of duties and workplace regulations but “how was this discipline internalized.”

In a time of wars and genocide, we can’t write about E.P. Thompson without mentioning his fight for world peace and social justice. The picture that always comes to mind is of him with a megaphone at an anti-nuclear weapons rally in Oxford, England, in 1980. In “Protest and Survive” (1980), he envisioned a world free of atomic bombs, urging people to “act together to free the entire territory of Europe, from Poland to Portugal, from nuclear weapons, air and submarine bases, and from all institutions engaged in research into or manufacture of nuclear weapons.” But his activism was not limited to peace marches and demonstrations. He was also committed to adult education and approached teaching and writing with a radical and democratic purpose.

E. P. Thompson speaking at an anti-nuclear demonstration in Oxford, 1980. Available at: https://controversia.com.br/2017/12/11/edward-palmer-thompson-uma-vida-extra-muros/  

In many ways, E.P, Thompson is like those strong foundations that remind us of the importance of studying labor and working-class history. As with all great foundations, we can and should add new rooms and floors and tear apart what does not work anymore. Today, labor historians have placed the process of working-class formation in concrete spaces and geographical locations from neighborhoods to oceans. It will be inconceivable to write a history without women, and feminist historians have long showed the need to incorporate gender and sexuality as part of the process of class formation. From the Global South, scholars have highlighted that workers’ experience and identities are diverse and not limited to wage and industrial labor. The current climate crisis has also made it clear that working-class communities are at the forefront of fights for environmental justice. None of these many turns would have bothered E.P. Thompson, as they keep labor history alive and bring the intellectual and political concerns of new generations of historians.

In 1985, he participated in a public discussion at the New School for Social Research in New York City, and while reflecting on the future and possibilities for radical history, he remarked, as only the best teacher could ever do, “I don’t want to tell anyone how to write history. They must find out in their way.”