CE #36: Cem anos de Clóvis Moura – Gabriel dos Santos Rocha

Gabriel dos Santos Rocha
Doutorando em História (USP)
Clóvis Steiger de Assis Moura, nasceu em Amarante (Piauí) no dia 10 de junho de 1925; faleceu na cidade de São Paulo no dia 23 de dezembro de 2003. Foi um intelectual marxista autodidata, historiador, sociólogo, jornalista, crítico literário, poeta, militante comunista e do movimento negro. Sua formação, atividade intelectual e atuação política não se dissociavam. Foi um intelectual orgânico no sentido gramsciano do termo. Teve uma trajetória vinculada às lutas por emancipação da classe trabalhadora, nas quais pautou a dupla opressão social que atinge a população negra: a opressão de classe e o racismo; tema sobre o qual refletiu amplamente em sua obra. Buscou respostas para tais problemas na investigação do processo histórico e na práxis política.
Em 1945 ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na década de 1960 integrou o Partido Comunista do Brasil (PcdoB), agremiação originada de uma dissidência do PCB em 1962. Ao longo da vida atuou como jornalista militante na imprensa de esquerda, e profissionalmente em veículos de maior abrangência. Moura teve contribuições importantes para o marxismo no campo teórico e na luta política e social: a relação entre escravidão, racismo e capitalismo, e a questão racial na luta classes são temas fundamentais em sua produção intelectual e militância.
Suas principais contribuições teóricas no marxismo estão na historiografia e na sociologia, ainda que sua produção também dialogue com outras áreas do conhecimento como a economia política, a antropologia, a etnologia, a crítica literária e os estudos culturais. Ocupou-se fundamentalmente de problemas brasileiros, embora tenha dedicado algumas passagens de sua obra à América Latina e ao Caribe. O conjunto de sua produção pode ser visto como um programa de interpretação do processo histórico brasileiro desde o período colonial ao republicano no qual se destacam: 1) a escravidão e a colonização na formação social, política, econômica e cultural do Brasil; 2) as insurreições negras contra a escravidão na perspectiva da luta de classes; 3) o racismo como ideologia de dominação no capitalismo dependente brasileiro; 4) as organizações negras na luta contra o racismo no Brasil pós-abolição.
Moura ganhou notoriedade por estudar as insurreições negras do período escravista, tratando-as sistematicamente, e não como meras erupções espontâneas sem qualquer impacto nas relações de produção e na sociedade. O autor considerou as várias formas de resistência dos escravizados como elementos dinamizadores e de negação do sistema escravista, a exemplo das fugas, insurreições, guerrilhas, quilombos, atentados contra senhores e feitores, suicídios, abortos etc. O autor denominou quilombagem, esse processo de resistência constante ao escravismo.
Os quilombos, insurreições e guerrilhas foram objetos primordiais de suas análises, e deram o subtítulo de seu primeiro livro, Rebeliões da Senzala (1959), cuja primeira edição teve pouca repercussão, porém, posteriormente veio a se tornar um clássico sobre o tema, sobretudo, a partir da segunda edição de 1972. Neste livro, Moura lançou as bases interpretativas da escravidão que foram desenvolvidas ao longo de quase toda sua obra, em produções posteriores.

Rebeliões da Senzala, Edições Zumbi, 1959. Capa: Octávio Araújo
Para o autor, os escravizados que se rebelavam, sobretudo os quilombolas e insurretos eram agentes de negação do sistema escravista. Ainda que os escravizados – devido a própria natureza da escravidão colonial – não tivessem condições objetivas de projetarem um sistema econômico, político e social alternativo, suas rebeliões, guerrilhas e quilombos, atentavam contra a propriedade escravista. Deste modo, Moura não apenas conferiu sentido político ao protesto negro daquele período, como também, considerou que a dinâmica, o desenvolvimento e a superação do escravismo deveriam ser compreendidos a luz do antagonismo entre escravizado e escravocrata, as classes fundamentais daquele sistema econômico e social.
Ao abordar a escravidão Moura se contrapôs à ideia de “antagonismos em equilíbrio” amplamente defendida por Gilberto Freyre, a qual contribuiu para a formulação do chamado “mito da democracia racial” (apesar da expressão não ter sido cunhada por Freyre, suas teses foram fundamentais na formulação desse “mito”). Sem desprezar as diferentes técnicas de dominação senhorial, Moura enfatizou a violência como elemento central da sociedade escravista. No entanto, ao contrário de muitos autores que tratavam mais da violência senhorial, Moura se importou com a violência do escravizado. Assim se contrapôs, não apenas à Freyre, mas também às concepções que embasariam a teoria do escravo-coisa. Se por um lado, o escravismo buscava reduzir africanos e seus descendentes à condição social de bem semovente, por outro, os escravizados negavam tal condição quando se rebelavam. Como observou Jacob Gorender, o status de coisa encontrava seus limites na própria ordem escravista quando um escravizado era julgado por atentar contra a propriedade ou contra a vida de seu algoz. Se a violência senhorial era um fator de desumanização do africano e seus descendentes, a violência do escravizado era um fator de negação da desumanização imposta pela ordem senhorial. Assim, a violência era uma expressão de humanidade do escravizado.
Além dos quilombos e rebeliões de cativos, Moura também estudou a participação dos negros em insurreições populares dos séculos XVIII e XIX. Os afro-brasileiros também participaram ativamente de movimentos transformadores na História, a exemplo da Independência (1822) e da Abolição (1888), porém, via de regra, foram excluídos das esferas de poder de decisão e dos projetos dos vencedores.
Se a escravidão foi tema ao qual Moura se dedicou até o fim da vida, também é verdade que o autor produziu significativamente sobre o pós-abolição, como vemos em O negro: de bom escravo a mau cidadão? (1977), Brasil: as raízes do protesto negro (1982), Sociologia do Negro Brasileiro (1988) e Dialética Radical do Brasil Negro (1994). Moura caracterizou o Brasil pós-abolição como uma sociedade de capitalismo dependente na qual o racismo se manteve como uma ideologia de dominação de classes, associada às formas de controle social e exploração do “trabalho livre”.
A dependência em relação aos centros (Europa Ocidental e EUA) foi historicamente condicionada pelo processo no qual o Brasil se inseriu na “ordem concorrencial internacional” desde a abertura dos portos em 1808. Àquela altura os quase 300 anos de escravidão e pacto colonial inviabilizaram a acumulação primitiva de capitais na colônia. A manutenção da estrutura escravista e agroexportadora com a independência em 1822, somada à implementação de uma infraestrutura modernizante (ferrovias, portos, telégrafos, casas comerciais etc.) sob o capital estrangeiro durante a economia cafeeira, só reiterou e reforçou a condição de dependência ao longo do século XIX. Tal heteronomia, guardadas as peculiaridades de cada época, se estenderia por um processo de longa duração até os dias de hoje.
O racismo no pós-abolição seguiu como um dispositivo organizador das desigualdades sociais. Na passagem da economia escravista para o capitalismo, o negro foi alijado dos setores produtivos mais dinâmicos, e lançado majoritariamente aos setores mais precarizados e ao exército industrial de reserva. Tal fato se verifica entre o final do século XIX e os anos 1930, quando o Estado brasileiro investiu em políticas de imigração subvencionada, voltada principalmente para a vinda de europeus que foram empregados nas industriais, mas também em fazendas de café em São Paulo (que se tornara importante polo do capitalismo nacional).
Houve autores que tentaram explicar tal fato a partir de uma presumida “anomia social do negro” (herdada da escravidão) contraposta a uma “aptidão cultural do europeu para o trabalho livre”, a exemplo de Florestan Fernandes. No entanto, Moura refutou esta tese, e defendeu que opção pelo imigrante europeu atendia a duas demandas das classes dominantes: 1) o almejado branqueamento da população (ventilado por ideais eugenistas); 2) a garantia de uma superpopulação relativa que pressionaria para baixo o valor da força de trabalho, conferindo maior poder de barganha patronal. Assim, a marginalização social do negro não resultou de uma presumida “deformação de personalidade” herdada da escravidão contraposta a uma suposta “superioridade cultural do europeu”. Tal problema se deve a uma política de substituição étnica da força de trabalho que atendia aos interesses eugenistas e econômicos das classes dominantes acopladas ao Estado.
O problema do racismo associa-se à questão de classe na medida em que, historicamente, a exploração da força de trabalho segue racializada em uma sociedade formada majoritariamente por pretos e pardos (atingidos duplamente pela opressão racial e socioeconômica). O escravizado do passado é o ancestral da classe trabalhadora brasileira. Diante disso, Moura também estudou e colaborou com a luta das organizações negras contra o racismo, entendendo que se trata de um problema fundamental a ser enfrentado na luta pela superação do capitalismo.

Manifestação do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, 1978. Foto: Jesus Carlos / Memorial da Democracia
PARA SABER MAIS:
FARIAS, Márcio. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019
MALATIAN, Teresa. Clóvis Moura: uma biografia. Teresina: EDUESPI, 2022
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. 5ª ed. São Paulo: Anita Garibald/Fundação Maurício Grabois, 2014a
OLIVEIRA, Fábio Nogueira. Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra.Dissertação de mestrado, Niterói: UFF, 2009
ROCHA, Gabriel dos Santos. Clóvis Moura e a América Latina. In: Blog da Boitempo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2025/07/10/clovis-moura-e-a-america-latina/
Essa é uma versão reduzida do artigo Clóvis Moura, publicado no Vocabulario de marxismo latino americano, CLACSO. Disponível em: https://www.fahce.unlp.edu.ar/Vocabulario/intelectuales/moura-clovis
Crédito da imagem de capa: Clóvis Moura. Fundo Clóvis Moura, CEDEM-UNESP