CE #37: Os trabalhadores, a Aliança Nacional Libertadora e os Levantes de Novembro de 1935 – Inghrid Masullo

Inghrid Masullo
Doutoranda em História Social pelo PPGHIS/UFRJ
Entre os dias 23 e 27 de novembro de 1935, levantes militares eclodiram em quartéis nas cidades de Natal, Recife e Rio de Janeiro, sendo rapidamente suprimidos pelo governo no Distrito Federal e na capital pernambucana. Em Natal, a insurreição durou alguns dias antes de ser debelada. Os movimentos, liderados por oficiais ligados a Aliança Nacional Libertadora (ANL) visavam derrubar o governo de Getulio Vargas e dar início a uma revolução “nacional-popular” contra as oligarquias e o imperialismo. Ficariam conhecidos pelo pejorativo nome de “Intentona Comunista”.
Relembrar aqueles acontecimentos costuma significar retornar aos quartéis, aos oficiais insubordinados, à figura de Luís Carlos Prestes e à narrativa, amplamente difundida ao longo das décadas, de uma tentativa militar de insurreição comunista. Entretanto, o foco na rebelião militar tem invisibilizado um ciclo intenso e anterior de mobilização social. Entre 1930 e 1935, trabalhadores de diferentes regiões do país protagonizaram ondas grevistas, processos de reorganização sindical, disputas internas, campanhas contra prisões arbitrárias, protestos contra empresas estrangeiras, participação em frentes antifascistas, dentre outras manifestações de luta social e engajamento político.
Tratar dos trabalhadores apenas como beneficiários passivos da legislação trabalhista promulgada em 1930, como comumente é feito, obscurece o fato de que eles próprios foram importantes atores políticos e sociais daquele momento. Eles recorreram às leis para reivindicar direitos, fizeram greves para garantir sua aplicação, disputaram a direção dos sindicatos e se engajaram ativamente nas frentes antifascistas e até mesmo, em alguns poucos casos, em células integralistas. Nada disso cabe na imagem de uma classe trabalhadora sem agência e interesses próprios, completamente tutelada pelo Estado, como frequentemente são retratados.
No Norte e Nordeste, especialmente em Belém, São Luís, Natal e Recife, estivadores, carregadores, marítimos e ferroviários protagonizaram conflitos contra companhias portuárias e empresas estrangeiras, que insistiam em descumprir decisões das Juntas de Conciliação. No Recife, greves de têxteis e trabalhadores dos armazéns se articularam a denúncias de violência policial e à disputa das sociedades de resistência. Em Natal, como mostram documentos do Departamento Nacional do Trabalho, ferroviários se organizavam para reivindicar reintegrações e denunciar perseguições políticas já antes dos levantes de novembro. No Rio de Janeiro, trabalhadores têxteis e marítimos alternavam paralisações, piquetes e campanhas salariais com lutas pela autonomia sindical. Em Porto Alegre, sapateiros, gráficos e trabalhadores da alimentação se mobilizaram contra a interferência patronal e disputavam a condução dos sindicatos. Em São Paulo, metalúrgicos resistiram à tentativa estatal de submeter os sindicatos à nova legislação, recurso que, paradoxalmente, usavam como instrumento de reivindicação. Essas mobilizações, entre várias outras, expressavam, como argumenta Boris Koval, a continuidade das tradições de luta do movimento operário desde meados do século XIX, agora reconfiguradas em novos marcos legais.
Nesse contexto, a leitura de que o operariado teria aceitado e aderido passivamente à tutela estatal não resiste ao exame das fontes. Trabalhadores acionaram ativamente as Juntas de Conciliação e Julgamento, pressionaram o Estado pelo cumprimento na nova legislação, criaram fundos de greve e se organizaram em associações de bairro, sociedades de auxílio mútuo e comissões de fábrica. A ascensão do fascismo internacional e o surgimento do Integralismo no Brasil, também impactaram fortemente a luta social da classe trabalhadora. O antifascismo, longe de ser um tema estritamente partidário, ganhou materialidade na vida cotidiana. Em bairros operários do Rio de Janeiro, por exemplo, foram registrados confrontos entre trabalhadores e grupos integralistas já em 1933. Em Recife, sociedades operárias organizaram debates e comícios contra o fascismo italiano. Em São Paulo, gráficos e sapateiros participaram ativamente da Frente Única Antifascista, que enfrentou militantes integralistas nas ruas em 1934.

Edição onde se expressa a relação entre a ANL e a classe trabalhadora.
Esse ambiente de mobilizações antecedeu e dialoga diretamente com o surgimento da Aliança Nacional Libertadora. Criada em março de 1935, em meio à ascensão do fascismo (cuja expressão no Brasil foi principalmente a Ação Integralista Brasileira) , à crise econômica e ao desgaste das promessas da Revolução de 1930, a ANL se tornou uma ampla frente antifascista, congregando diversos setores da sociedade brasileira, entre eles trabalhadores, militares, intelectuais e parte das classes médias urbanas. O Partido Comunista do Brasil (PCB) teve grande influência na ANL, embora ela fosse politicamente mais ampla, em particular em sua fase legal. Quando surgiu, A Aliança Nacional Libertadora encontrou um mundo do trabalho politizado, ativo e em disputa, no decorrer de uma intensa onda grevista que marcou profundamente os anos de 1934 e 1935. Durante este período, portuários paralisaram atividades em Recife, Rio de Janeiro e Santos, ferroviários da Central do Brasil, Great Western e Sorocabana entraram em greve. Gráficos e têxteis mobilizaram-se no Rio, Recife e São Paulo. Apesar das particularidades de cada categoria, essas mobilizações convergiam em reivindicações semelhantes, entre elas a redução das longas jornadas de trabalho, melhores salários, proteção contra demissões, autonomia sindical e o cumprimento das novas leis trabalhistas.
A criação de comitês aliancistas em sindicatos, sociedades de bairro e associações de auxílio mútuo mostra que o programa anti-imperialista, anti-latifundiário e antifascista da ANL dialogava com demandas do movimento operário. A defesa de direitos, a crítica à repressão e a luta contra o fascismo integravam um repertório que não dependia apenas de diretrizes partidárias. A criação da Confederação Sindical Unitária do Brasil, em 1° de maio de 1935, também evidencia esse processo. Embora frequentemente apresentada como iniciativa exclusiva do PCB, a CSUB foi resultado de uma articulação ampla em torno da unidade sindical e da defesa de direitos. Aderir a essas organizações significava, para muitos trabalhadores, afirmar um projeto político próprio, e não se submeter a diretrizes externas.
Esse conjunto de mobilizações, distribuídas nacionalmente, permite compreender, em parte, a expectativa, principalmente dos setores comunistas, de que o operariado poderia aderir massivamente à uma potencial insurreição. Esta leitura, no entanto, não levou em consideração as rápidas e intensas mudanças ocorridas ao longo de 1935. Em julho, a ANL foi colocada na ilegalidade e fechada, desencadeando uma forte onda repressiva que atingiu em cheio os trabalhadores organizados e afetou profundamente sua capacidade de atuação. Foi nesse contexto que setores do PCB optaram pela via insurrecional, apostando numa adesão do movimento operário que vinha sendo enforcado pela repressão.
Gregório Bezerra, importante liderança no Recife, lamentou a falta de 300 estivadores esperados para o levante; Rolando Fratti, liderança operária paulista, argumentou que os trabalhadores foram “pegos de surpresa” por eles. As duas falas evidenciam o descompasso entre a estratégia vanguardista do PCB e a realidade concreta vivenciada pelo movimento operário após julho de 1935. De fato, os que não “apareceram” foram os que sofreram as consequências de forma mais intensa. O peso da repressão recaiu majoritariamente sobre os trabalhadores e suas organizações. Como mostram muitos dos inquéritos policiais do período, a maioria dos presos após os levantes não participou de qualquer ação militar. Eram dirigentes sindicais, grevistas, delegados de fábrica, membros de comitês aliancistas ou simples trabalhadores denunciados por vizinhos e chefes. Como observou Paulo Sérgio Pinheiro, 1935 tornou-se um “pretexto” para o autoritarismo exercer-se contra a sociedade brasileira e, inevitavelmente (ou especialmente) contra a classe trabalhadora.
Revisitar o contexto no qual os levantes de novembro de 1935 estão inseridos pela ótica da história social do trabalho nos dá a possibilidade de atentar à densidade de uma década que, por vezes, teve sua complexidade encolhida num acontecimento. Evidenciar este contexto mais amplo é, sobretudo, reafirmar o lugar dos trabalhadores enquanto sujeitos ativos na construção de projetos de democracia, justiça e transformação social ao longo de nossa história e que, ainda hoje, permanecem em disputa.

A manhã, periódico da Aliança Nacional Libertadora, comemora o 1° de maio. Fonte: A Manhã 02/12/1935. Acervo:Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
PARA SABER MAIS:
Documentário: 1935, O Assalto ao Poder . Direção: Claudio Kahns e Eduardo Escorel. Produção: Tatu Filmes, Brasil 1500, Cine Filmes. Narração: Paulo Betti, 1990. Disponível em: Parte 1- Revolução de 1935 | Parte 1 | Guerras no Brasil Parte 2 – Revolução de 1935 | Parte 2 | Guerras no Brasil
Roda de conversa sobre os LEVANTES ANTIFASCISTAS DE 1935. Evento virtual realizado pelo AMORJ/UFRJ. Transmitido ao vivo em 16 de out. de 2025. Disponível em: 90 anos dos levantes antifascistas de novembro de 1935 – YouTube
PANDOLFI, Dulce Chaves. A Aliança Nacional Libertadora e a Revolta Comunista de 1935. Os grandes marcos da história política, v. 2, 2004. Disponível em: A Aliança Nacional Libertadora e a Revolta Comunista de 1935
PRESTES, Anita L. . 90 anos dos levantes antifascistas de 1935. Blog da Boitempo, 18 mai. 2025. Disponível em: 90 anos dos levantes antifascistas de 1935 – Blog da Boitempo
Crédito da imagem de capa: O congresso Nacional de Unidade Sindical realizado em abril de 1935, noticiado na edição de 1° de maio daquele ano do periódico da ANL, A Manhã. Fonte: A Manhã 01/05/1935 – Acervo: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional