Contribuição Especial #34: As greves que abalaram o Estado Novo: São Paulo, maio de 1945

Fernando Sarti Ferreira
Estagiário de pós-doutorado na UNIRIO
No dia seguinte à rendição alemã, em 8 de maio de 1945, um grupo de operários da fábrica Termocerâmica, localizada no bairro da Penha, em São Paulo, exigiu dos diretores três dias de folga remunerada como recompensa e celebração pela vitória dos Aliados. O episódio, que pode soar completamente inusitado e anedótico, contudo, insere-se em um contexto de crescente agitação trabalhista, que, alguns dias depois, se transformaria no maior movimento grevista já registrado até então na cidade de São Paulo e seus subúrbios. Entre os dias 14 e 28 de maio de 1945, foram deflagradas greves em 341 empresas, com a participação de cerca de 230 mil grevistas. Essas mobilizações, cujos desdobramentos levaram a uma nova explosão de paralisações entre dezembro de 1945 e fevereiro de 1946, são fundamentais para compreendermos como os trabalhadores de São Paulo contribuíram para ampliar o sentido da “democratização – processo que, até então, encontrava-se sequestrado por diversos grupos das classes dominantes que estavam na oposição ou mesmo na base de apoio ao Estado Novo (1937-1945).
As greves de 1945 não são completas desconhecidas, mas seu redimensionamento pela pesquisa histórica tem uma trajetória interessante. A princípio, alguns estudos, balizados pela perspectiva do “populismo”, contrastaram as poucas greves registradas naquele ano com as ocorridas em 1946 para defender a tese de que a aliança entre o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Getúlio Vargas teria servido para conter as mobilizações operárias no tumultuado ano de 1945. Com a queda do ditador, em outubro daquele ano, nas palavras de Francisco Weffort, teria se aberto o dique que continha as reivindicações acumuladas pelos trabalhadores e levado às mobilizações de 1946. No fim dos anos 1970, alguns trabalhos, como os de Edgard Carone e Ricardo Maranhão, questionaram a existência desse mecanismo de contenção, indicando algum tipo de agitação no período, ainda que as greves de 1946 tivessem maior importância nesse contexto. Nos anos 1980 e 1990, mesmo Silvio Alem Frank e Hélio da Costa – autores que voltaram a se debruçar sobre aquela conjuntura e deram maior relevância às greves de maio de 1945 (Alem chega a falar de um “clima de greve geral”)- ainda apontavam como crucial na conjuntura da democratização o pico de mobilizações em fevereiro de 1946. Contudo, a pesquisa nos arquivos da polícia política de São Paulo (DEOPS-SP) sobre o período nos permitiu redimensionar a importância do movimento de maio de 1945 e repensar o sentido das greves de 1946.
Mesmo escrutinando as mais distintas fontes, como a imprensa comercial e de esquerda, relatórios diplomáticos, boletins de organizações patronais, além de depoimento de militantes e sindicalistas, os autores que se debruçaram sobre o período sempre destacaram as dificuldades em se trabalhar com estas greves, principalmente em decorrência das características desses movimentos e do contexto político específico em que ocorreram. Organizadas a partir dos locais de trabalho, à revelia dos sindicatos e da direção do PCB1 – principal organização política que buscava organizar e representar os interesses dos trabalhadores urbanos e que naquele momento defendia a contenção das mobilizações em nome da política de “União Nacional” -, as greves de maio de 1945 ocorreram em um momento em que, apesar do processo de abertura política ter atingido um ponto de não retorno, alguns dos aspectos mais repressivos da ditadura ainda existiam. Em relação à grande imprensa comercial, hegemonizada pelos grupos empresariais e liberais-conservadores, à natural antipatia ao movimento devia-se somar a ação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Se a censura não conseguia mais conter os próceres do liberalismo conservador, como José Américo, Prado Kelly e Eduardo Gomes, ela era efetiva em relação ao movimento dos trabalhadores. Em uma nota publicada no The New York Times, em 12 de abril de 1945, afirmava-se que “(…) as greves têm sido usadas como justificativa para a censura parcial a qual a imprensa de São Paulo está submetida”.2 Ainda assim, movimentos como o dos ferroviários de Campinas e dos trabalhadores da Companhia Docas de Santos, iniciados em março e abril daquele ano, chegaram a ser noticiados.
Ao incipiente e reduzido espaço de expressão que a abertura política concedeu ao protesto operário correspondeu a abundante produção de material pelo DEOPS-SP sobre o tema. Foi a partir de uma extensa pesquisa realizada nos arquivos da polícia política de São Paulo que pudemos encontrar informações mais completas sobre essas mobilizações, cuja verdadeira dimensão e alcance tinham apenas se insinuado para a historiografia.

Talão de registro da prisão de Geraldo Cardoso dos Santos, no dia 21/05/1945 (Prontuário 57.155). Segundo o DEOPS, o operário foi preso por “Incitação de greve e obstar o ingresso de operários não grevistas” na Nadir Figueiredo, fábrica de vidros localizada no bairro do Belenzinho. A greve na Nadir Figueiredo ocorreu entre os dias 14 e 15 de maio, envolvendo 2.200 operários, segundo informações do DEOPS. Geraldo Cardoso foi um dos 508 presos por ocasião das greves de 1945 e 1946 que conseguimos identificar em levantamento feito nos prontuários do DEOPS.
Quando começou a onda de greves que varreu a São Paulo e seus subúrbios em maio de 1945? A resposta não é tão simples. Desde 1944, a polícia política passou a registrar no meio operário a difusão de uma mescla de sentimentos, uma combinação de mal humor com ansiedade. Foram registradas reclamações sobre salários e as péssimas condições de trabalho, mas também uma crescente expectativa em relação ao restabelecimento dos dispositivos da legislação trabalhista suspensos sob a justificativa do Estado de Guerra. A polícia também anotou algumas ações que extrapolaram a reclamação verbal, como pelo menos 12 ações de sabotagem e 8 greves. Contudo, foi a partir de janeiro de 1945 que os relatórios policiais passaram a registrar a ocorrência cada vez mais frequente de paralisações na cidade de São Paulo e no interior do estado. Antes mesmo da explosão de maio, entre janeiro e abril, foram registradas pelo DEOPS 49 greves, envolvendo 39 mil grevistas (a título de comparação, Francisco Weffort, em seu Sindicatos e política, de 1972, havia registrado apenas 8 greves entre abril e outubro de 1945). Não é à toa que, em 10 de abril, em meio ao silêncio sobre as greves, uma “misteriosa” nota da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo apareceu na grande imprensa comercial, com o intuito de lembrar “(…) ao operário paulista que a greve é considerada nos termos da Constituição Federal e das Leis Trabalhistas como recurso anti-social”3.
Como dito acima, o primeiro movimento a ganhar maior relevância, chegando a furar as restrições impostas pela censura, ocorreu em março de 1945, na cidade de Campinas, envolvendo os trabalhadores das oficinas e estações das companhias ferroviárias Mogiana e Paulista. No entanto, foi em abril de 1945, na cidade de Santos, que teve início o movimento que iria arrebentar a onda de mobilizações.
A relação entre a greve dos doqueiros de Santos e a explosão das greves na capital pode ser inferida por três motivos. Em primeiro lugar, por uma questão cronológica. A paralisação na Companhia Docas se encerrou no dia 13 de maio, com a vitória dos trabalhadores. A partir do dia 14 de maio até o dia 18, na capital e em seus subúrbios, conforme o registro da polícia e do Departamento Nacional do Trabalho (DNT), 91 mil trabalhadores cruzaram os braços, paralisando 145 empresas. Entre os dias 19 e 22, enquanto parte das empresas voltavam ao trabalho, outras 196 fábricas e mais 138 mil entraram em greve, com os conflitos na capital e seus subúrbios refluindo apenas nos últimos dias daquele mês.
Na verdade, ainda em junho, o movimento continuaria reverberando, mas no interior. Nos dias 12 e 13 daquele mês, os trabalhadores de Ribeirão Preto desencadearam uma greve geral, marcada por episódios de saques e depredações, o que levou à ocupação da cidade por soldados do Exército. Em segundo lugar, o sucesso dos grevistas em Santos inspirou os trabalhadores à ação. Nas palavras do delegado do DEOPS, Theophilo Dias de Andrada Mesquita, em relatório apresentado no mês de junho de 1945, “São Paulo e seus subúrbios “(…) tiveram, imediatamente de arcar com a consequência da solução dada aos doqueiros”. Ainda segundo o delegado, os trabalhadores alegavam que “(…) entre o dissídio coletivo demorado e incerto, e a greve eficiente e rápida, o operariado deve pleitear suas reivindicações pelos mesmos meios que os doqueiros”. Por fim, o movimento no porto também forneceu a palavra de ordem que iria unificar as mobilizações. Como relata o delegado, os trabalhadores de São Paulo “Pedem 40% de aumento, como os doqueiros”.

Diário da Noite, 22/05/1945. Em destaque, o anúncio do aumento de 40% nos salários dos trabalhadores da indústria têxtil. Mesmo assim, as mobilizações continuaram até o dia 28, como pode-se ver na notícia sobre os conflitos ocorridos na porta da IRFM no bairro da Água Branca.
As greves afetaram das grandes empresas até as pequenas fábricas e oficinas. Apesar de 80% dos grevistas pertencerem a grandes e médios estabelecimentos, com mais de 500 operários, 55% das paralisações ocorreram em empresas com menos de 500 operários. Entre as grandes fábricas e empresas paralisadas figuram estabelecimentos vinculados a grandes corporações nacionais, como as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM), a Sociedade Anônima Moinho Santista (SAMSA) e o grupo Jafet; antigas e tradicionais fábricas, como a Companhia Antarctica Paulista, o Cotonifício Rodolfo Crespi e a Cerâmica São Caetano; multinacionais, como os frigoríficos Swift e Wilson, a General Motors, a Gessy Lever, a Anderson, Clayton and Company, a Rhodia, a Johnson & Johnson e as de pneumáticos Goodyear e Pirelli; além de alguns daqueles frutos mais recentes da industrialização por substituição de importações, como a gigante Companhia Nitro-Química Brasileira.
Quando lidas à contrapelo – limpando o terreno dos preconceitos de classe e do anticomunismo fanático que marcavam o olhar das autoridades -, as fontes policiais também nos fornecem detalhes preciosos sobre a dinâmica das mobilizações e o repertório de táticas mobilizadas pelos trabalhadores. Por exemplo, na Fiação, Tecelagem e Estamparia Ipiranga Jafet, localizada na Rua Silva Bueno, no bairro do Ipiranga, o agente do DEOPS descreveu a negociação travada entre trabalhadores em greve e a direção da empresa. Segundo o relato, a certa altura da reunião entre os diretores e a comissão, um operário levantou-se e pediu a palavra. Em seguida, tirou do bolso o balancete da empresa publicado no Diário Oficial e leu a cifra relativa ao lucro líquido obtido pelo grupo Jafet no último período. “Era só o que tinha a dizer”, teria dito o operário, cuja declaração, segundo o agente, teria “explodido como uma bomba” na reunião.4 Outro agente do DEOPS, enviado à fábrica da Johnson & Johnson, na Avenida do Estado, no bairro da Mooca, relatou — com certa perplexidade — suspeitar que os trabalhadores do turno da noite, que haviam entrado em greve na madrugada anterior, paralisando as atividades da fábrica, estivessem, talvez, organizados com os operários do turno seguinte.5
As greves de maio de 1945 foram relativamente vitoriosas. Surgidas a partir dos locais de trabalho, à revelia dos sindicatos e sem o respaldo das direções políticas de esquerda, as mobilizações lograram se transformar em vitórias para muitas categorias de trabalhadores, ao arrancar das patronais negociações coletivas. Foram contemplados nesses acordos – assinados entre os sindicatos e as patronais, e mediados pelo Interventor Fernando de Sousa Costa – trabalhadores têxteis e metalúrgicos (as duas categorias foram responsáveis por 47% das greves e por 34% dos grevistas), gráficos, bancários, ferroviários, comerciários, químicos, dos frigoríficos e do papel e papelão. Por fim, deve-se destacar que os aumentos obtidos foram responsáveis por ampliar substancialmente a efetiva aplicação do salário-mínimo industrial em São Paulo: enquanto, em 1944, 37% dos trabalhadores nas indústrias de São Paulo e Santo André recebiam até um salário-mínimo, em 1946 esse percentual caiu para 11%.
No entanto, as greves de maio não podem ser entendidas apenas como um fenômeno exclusivamente paulista, nem como um conflito de ordem econômica ou distributiva – como alguns preferem chamar. Em primeiro lugar, como já havia registrado Edgard Carone, ocorreram importantes mobilizações de trabalhadores em outras regiões do país, como no Rio Grande do Sul, em abril, e no Rio de Janeiro, em agosto e setembro. Em segundo lugar, deve-se destacar que os grevistas tiveram um papel decisivo no processo de abertura política ao derrubar, na prática, a legislação antigreve imposta pelo Estado Novo. O movimento foi tão expressivo que, diante de uma nova onda de greves com potencial de se espalhar e se articular por todo o país – como efetivamente ocorreu na greve na Light e na dos bancários-, o presidente recém-eleito, Eurico Gaspar Dutra, decidiu editar o Decreto-Lei nº 9.070, em março de 1946. A nova legislação, conhecida como “Lei Antigreve”, só não foi mais discricionária do que a própria Constituição de 1937. A onda repressiva completou-se em 1947, quando o Ministério do Trabalho interveio em mais de 400 sindicatos, a recém-criada Confederação Geral dos Trabalhadores foi colocada na ilegalidade, e o Tribunal Superior Eleitoral cassou o PCB.
Assim, no contexto do fim da Segunda Guerra Mundial e da desagregação da ditadura do Estado Novo, as greves de maio e o renascimento do movimento sindical articularam-se a uma série de outras manifestações – como o crescimento do PCB e a criação dos Comitês Democráticos, o surgimento do movimento Queremista e a convergência desses movimentos na luta em defesa da Constituinte –, compondo o que o historiador David Ricardo de Sousa Ribeiro identificou como “uma terceira via para a democracia” e que “não era necessariamente pelo alto”. Um caminho cujo horizonte apontava para “(…) concepções de democracia diferentes daquelas propostas pelas elites”, em que os trabalhadores vislumbraram a possibilidade de ingressar como sujeitos autônomos na cena política, além de garantir e ampliar seus direitos políticos e sociais. A altivez com que os trabalhadores da Termocerâmica ou da Jafet interpelaram seus patrões, na verdade, expressava muito mais do que a simples euforia pelo fim da guerra ou o mal-estar causado pela intensificação da exploração do trabalho.
Ao fim, mesmo que esse caminho tenha sido frustrado – principalmente a partir da onda repressiva desencadeada pelo governo Dutra, prolongada, em maior ou menor grau, pelos governos seguintes até a inflexão representada pelo golpe de 1964 -, é preciso salientar duas consequências dessas mobilizações. Em primeiro lugar, a irrupção definitiva da classe trabalhadora no cenário político nacional, como sujeito de primeira importância. Em segundo lugar, como desdobramento inseparável da primeira, se algo houve de democrático na República de 1946, isso se deveu, em grande parte, ao fato de ela ter sido temperada na sua gestação e ao longo de sua história, pelas ações das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.

Greves e grevistas em São Paulo e seus subúrbios, 1945-1946. Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados de Greves (BDG). APESP. “Planta da Cidade de São Paulo e Municípios Circunvizinhos”, sem autor. São Paulo, 1943.
Notas
1É preciso destacar que, apesar das diretrizes adotadas pela direção do PCB, isso não significou que militantes e simpatizantes do partido não tenham tomado parte e até mesmo organizado essas paralisações. Desde o trabalho de Ricardo Maranhão, passando por outros autores, como Hélio da Costa e Marco Aurélio Santana, a divergência entre a direção do partido e os militantes sindicais e de base, especialmente neste período, tem se tornado cada vez mais evidente. Por sua vez, a partir dos resultados parciais de um levantamento ainda em construção feito a partir prontuários individuais do DEOPS, foi possível identificar que as mobilizações de 1945 e 1946 podem ter sido uma espécie de “batismo de fogo” para uma nova geração de militantes comunistas.
2“POLITICS is charged in Brazilian strikes”. The New York Times, April 12, 1945
3“SECRETARIA de Segurança Pública”, OESP, 10 de abril de 1945.
4APESP.DEOPS. Arquivo Geral. “Informamos na presente sobre as greves havidas nesta capital havendo a possibilidade de existir elementos que as insuflem”. 29/05/1945. 43-Z-0-001.
5APESP.DEOPS. Arquivo Geral. “Greve marcada para amanhã na Sociedade Anônima Johnson & Johnson do Brasil”, 17/05/1945, 43-Z-0-031.
PARA SABER MAIS:
FERREIRA, Fernando Sarti. A onda de greves em São Paulo, 1945-1946: uma abordagem quantitativa. Revista de História, São Paulo, n. 183, p. 1–31, 2024
ALEM, Sílvio Frank, Os trabalhadores e a redemocratização. Campinas: Unicamp, 1981. Dissertação de Mestrado
COSTA, Hélio da. Em busca da memória – comissão de fábrica, partido e sindicato no pós-guerra, São Paulo: Editora Página Aberta, 1995
NEGRO, Antonio L. e FONTES, Paulo, “Trabalhadores em São Paulo: ainda um caso de polícia. O acervo do DEOPS paulista e o movimento sindical”. In: Maria Aparecida de Aquino et al. (orgs.), No coração das trevas: o DEOPS/SP visto por dentro, São Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2001, pp. 157-179
RIBEIRO, David Ricardo Sousa, A transição para a democracia no Brasil (1943-1956) – O PCB e a construção de um caminho alternativo. São Paulo: Alameda, 2023
Crédito da imagem de capa: A Gazeta, 19/05/1945. Em meio à explosão das greves, autoridades e a FIESP anunciam a decisão de promover o aumento generalizado de salários. Os grevistas venceram.