E.P. Thompson e o Fazer(-se) da História Social – Christian De Vito



E.P. Thompson e o Fazer(-se) da História Social



The Making of the English Working Class foi leitura obrigatória no primeiro curso que frequentei na Universidade de Florença, no ano letivo de 1995-1996. O professor nos deu dois alertas. O primeiro deles é que deveríamos aproveitar o tempo que passaríamos lendo o livro, pois era uma das obras-primas da historiografia. O segundo era que a versão italiana tinha um título equivocado (Rivoluzione industriale e classe operaia in Inghilterra), que paradoxalmente perdia a mudança fundamental proposta na obra, ou seja, o famoso deslocar de uma conceitualização de classe, como um dado, para a análise da formação de classe. Ambos os alertas se provaram ótimas dicas. Ao começar a ler a edição original em inglês (tarefa nem tão comum ou fácil para mim naquela época), procurei prestar atenção à abordagem focada no processo, conforme sugeria Thompson.

Essa abordagem permaneceu comigo desde então. De fato, numa investigação posterior sobre o trabalho dos condenados, o deslocamento [conceitual] de Thompson continuou a me apontar a necessidade de compreender o complexo processo de mão dupla pelo qual os indivíduos eram classificados como “presidiários” e posteriormente como “trabalhadores presidiários”. Isso levantou questões fundamentais: por que certos comportamentos eram vistos como desviantes, e como é que um determinado comportamento passa a ser considerado um crime? Quem definiu o desvio e a norma? Por que alguns deles eram obrigados a trabalhar, enquanto outros (por exemplo, indivíduos da elite) eram poupados desse fardo? E por fim, de que forma critérios de gênero, etnia ou raça, classe e idade definem certos tipos de trabalho entre os presidiários, e como a prisão produz e reproduz essas categorias?

Em termos mais gerais, The Making ensinou-me a olhar criticamente para as muitas categorias essencialistas criadas e usadas por acadêmicos e atentou-me à necessidade de evidenciar as histórias por trás dos grandes processos sociais. Isso me incentivou a perguntar quais práticas, relações e experiências sociais concretas fazem ou fizeram o capitalismo, a escravidão, a guerra ou a religião. The Making também iluminou as negociações, colaborações e conflitos entre diversos atores sociais que contribuíram para moldar a Revolução Francesa, a Revolução Industrial e a abolição da escravatura. Posteriormente, esse pensamento guiou minha investigação mais ampla das prisões como uma janela para a história social em geral.

A ênfase de Thompson estava sabidamente na história vista de baixo. Quem não se lembra daquele famoso trecho na introdução de The Making of the English Working Class? “Estou tentando resgatar o pobre tecedor de malhas, o aparador de lã ludita, o tecelão do ‘obsoleto’ tear manual (…)”1 – escreveu ele. Essa foi uma ruptura radical e necessária com a tradição de uma história contada sempre ou principalmente a partir da perspectiva das elites. É um passo necessário ainda hoje, quando especialmente em alguns campos testemunhamos o ressurgimento de estudos que consideram sujeitos históricos como “desvios” nos modelos estatísticos, enterrando suas vozes sob forças supostamente desconhecidas, como “o Estado”, “o império”, “a globalização”, “o mercado”.

Mas o que significa exatamente a história vista de baixo? Será que desenterrar as vozes dos subalternos é suficiente para se compreender processos sociais e históricos? Ou será que, exatamente para ver a sociedade sob a perspectiva dos sujeitos dominados, precisamos prestar atenção à complexidade e às contradições na construção dos processos sociais? A primeira proposta é convidativa, mas eu pessoalmente diria que a última poderá levar a uma história social mais frutífera em longo prazo. Thompson provavelmente concordaria com isso. Seu The Making of the English Working Class é um excelente exemplo dessa abordagem: recuperou as vozes dos trabalhadores como forma de reconstruir o complexo processo de formação de classes em sua integridade e sob a perspectiva dos trabalhadores.

Outro exemplo está no conceito thompsoniano de economia moral, que insere a mobilização e o pleito dos trabalhadores num processo fundamentalmente relacional. Ou seja, sua expectativa de que as relações paternalistas com eles estabelecidas pelas elites não trariam apenas repressão e disciplina, mas também alguma proteção e direitos consuetudinários. Isso sugere, portanto, que a história vista de baixo só poderia ser contada através da reconstrução do conjunto das relações nas quais os trabalhadores estavam imbricados. Por fim, como vários estudiosos observaram, pode-se criticar Thompson por ter ido muito além e ao mesmo tempo ficado muito aquém do conceito. Por um lado, ao destacar a economia moral no singular, silenciou a pluralidade nas interpretações e conflitos entre membros das elites e os de fora delas, e mesmo entre os subalternos. Por outro lado, o conceito não conseguiu captar a relevância mais ampla do paternalismo como modo de dominação, para além da dimensão econômica.

Um legado ainda mais ambíguo marca outro conceito-chave: agência. Nos trabalhos de Thompson, essa era uma ferramenta necessária para amenizar a ênfase nas “estruturas” sem rosto, e recuperar as vozes de todos os sujeitos históricos. Contrariamente, muitos estudos enxergam agência como uma característica exclusiva dos subalternos, como se as elites fossem dela destituídas, ou como se sua agência não devesse ser levada em conta no interior de uma história vista de baixo. Nessa mesma linha, agência tornou-se uma palavra da moda num jogo duplamente individualista. Por um lado, como observou corretamente Walter Johnson, o conceito tornou-se um marcador de posicionamento pessoal dos próprios acadêmicos, muitas vezes meramente projetado nas [interpretações das] práticas dos sujeitos históricos. Por outro lado, o conceito sofreu um deslocamento focal: antes centrado na agência coletiva (e no papel dos indivíduos nela), passou a enfatizar o protagonismo de indivíduos específicos, como um escravizado, um indígena ou uma mulher. Dessa forma pode-se dizer que [certos usos do conceito de] agência, paradoxalmente, contribuíram para silenciar o próprio processo de formação de classes que era tão relevante para Thompson.

Contudo, aos menos um dos aspectos problemáticos em Thompson não deve ser atribuído a seus intérpretes, e sim rastreado nas próprias obras do autor. Trata-se do foco na classe operária inglesa em The Making of the English Working Class. À primeira vista, essa escolha pode parecer óbvia: o historiador decidiu analisar detalhadamente os processos através dos quais grupos distintos de trabalhadores estavam se tornando uma classe. Na verdade, ele mesmo se desculpa aos leitores escoceses e galeses em seu prefácio: “Negligenciei estas histórias não por chauvinismo, mas por respeito. Porque a classe é uma formação tanto cultural como econômica, tive o cuidado de evitar generalizações para além da experiência inglesa”. No entanto, são precisamente essas linhas que revelam a ideia de que a formação de classes poderia e deveria ser estudada exclusivamente dentro de uma unidade – a Inglaterra –, num típico procedimento metodológico de caráter nacionalista. E, por sua vez, a ênfase naquela unidade foi postulada na ideia de que o processo de industrialização se espalhou do “Ocidente” (e especificamente da Inglaterra) para “o resto”, de acordo com um típico esquema eurocêntrico.

Ambas as abordagens levaram Thompson a deixar de fora de sua história muitos outros processos que, sem dúvida, não foram menos relevantes para a formação da classe operária. Nas últimas décadas, muitos pesquisadores desenterraram estes aspectos, particularmente em relação às conexões transatlânticas. Assim, os estudiosos que Cedric J. Robinson incluiu na chamada tradição radical negra enfatizaram a importância da fratura racial no processo de formação de classes na Europa e na América do Norte; ao mesmo tempo, Rediker e Linebaugh descreveram as viagens transatlânticas como uma “passagem intermediária entre a expropriação do Velho Mundo e a exploração do Novo Mundo”, e revelaram outros processos de formação de classes a bordo dos navios que navegavam naquele oceano. Especialmente nos últimos vinte anos, a relação entre capitalismo e escravidão tem assumido um papel central no debate acadêmico, e vários pesquisadores têm insistido também na ligação direta entre escravidão e Revolução Industrial através da circulação de capital. Enquanto isso, amplos debates revelaram ser a Revolução industrial um processo mais longo e mais geograficamente abrangente do que imaginávamos. Finalmente, os historiadores do trabalho global têm insistido que a multiplicidade das relações de trabalho apresenta um padrão histórico, e que não só a escravidão transatlântica, mas também todas as outras relações de trabalho não-livres são compatíveis com o capitalismo.

Vista a partir dessas novas (e ora já relativamente estabelecidas perspectivas), como está a história da formação de classes? Ainda podemos escrever separadamente sobre o fazer-se da classe operária inglesa, brasileira, sul-coreana ou indiana? Como o processo do fazer-se da classe operária pode ser visualizado, uma vez que a mente dos historiadores se libertar das amarras do nacionalismo metodológico e do eurocentrismo que influenciaram até mesmo um internacionalista de longa data como E.P. Thompson?

O que está em jogo nessa mudança de mentalidade é a própria possibilidade de revigorar a história social após a longa crise que tem caracterizado a área desde a década de 1990. Combinar a virada espacial a uma maior sensibilidade espacial, presente em algumas vertentes da história global (rejeitando também abordagens macroanalíticas que confundem “global” com “planeta”) pode ser um caminho nessa direção. Com e além de Thompson, e talvez parcialmente “contra” ele.

EP Thompson speaking, Youth CND rally Coventry 1984. © Stefano Cagnoni/reportdigital.co.uk,  26/05/1984. Disponível em: https://www.reportdigital.co.uk/search?s=ep+thompson 

Nota

1 [“I am seeking to rescue the poor stockinger, the Luddite cropper, the ‘obsolete’ hand-loom weaver (…)”. E. P. Thompson, The Making of the English Working Class (Nova York: Vintage Books, sd.), 12.]

E.P. Thompson and the social history in the making



The Making of the English Working Class was compulsory reading in the first course I ever attended at the University of Florence, Italy, back in the academic year 1995-1996. The professor warned us about two things. First, we should cherish the time we would spend reading it, because this was one of the masterpieces of historiography. Second, the Italian version had a misleading title (Rivoluzione industriale e classe operaia in Inghilterra) which paradoxically removed the key shift proposed in that book, namely, the famous move from a conceptualization of class as a given to the analysis of class formation. Both proved to be great hints. As I set out to read the original edition in English (a not-so-common nor easy task for me at that time), I sought to pay attention to the processual approach that Thompson suggested.

That approach has stayed with me ever since. Indeed, in my later research on convict labour, Thompson’s move kept alerting me about the need to understand the complex double process by which individuals were categorized as “convicts” and then as “convict labourers”. It raised fundamental questions such as: Why were certain behaviours viewed as “deviant” and how does a given behaviour become a “crime”? Who defined “deviancy” and “the norm”? Why were some sentenced individuals compelled to work, while others (e.g. elite individuals) were spared that heavy fate? Finally: How do gender, ethnicity/race, class and age produce certain kinds of convict labour, and how does punishment produce and reproduce gender, ethnicity/race, class and age?

More generally, Thompson’s “the making of” taught me to look critically at the many essentialist categories that scholars use and create, and made me sensible to the need to foreground the backstories of large social processes. It helped me ask which concrete social practices, relations and experiences “make” or “made” capitalism, slavery, war or religion. It illuminated the negotiations, collaborations and conflicts among diverse social actors that contributed to shape “the French revolution”, “the Industrial revolution” and “the abolition of slavery”. This mindset has guided me into my subsequent broader explorations of punishment as an entry point into social history at large.

Thompson’s emphasis was notoriously on the “history from below”. Who doesn’t remember those famous lines in the introduction to The Making of the English Working Class? “I am seeking to rescue the poor stockinger, the Luddite cropper, the ‘obsolete’ hand-loom weaver…” – wrote Thompson. This was a radical and necessary break with the tradition of a history told always or primarily from the perspective of the elites. It is a step that continues to be necessary today, when we witness the resurgence, especially in some fields, of a scholarship that considers the historical actors as “deviations” in statistical models, and buries their voices under the allegedly anonymous forces of “the State”, the empire”, “globalization”, and “the market”.

But what does “history from below” exactly mean? Is unearthing the voices of the subalterns sufficient to understand social and historical processes? Or, rather, precisely in order to look at society from the perspective of the non-elite subjects, we need to pay attention to the complexity of, and contradictions in, the making of social processes? The first way is appealing, but I would personally contend that the latter might lead to a more fruitful social history in the long-term. Thompson might have agreed. His The Making of the English Working Class is an outstanding example of this approach. It recovered the voices of the workers as a way to reconstruct the complex process of class formation in its integrity and from the workers’ perspective.

Another evidence lies in Thompson’s concept of “moral economy”. This placed the workers’ mobilization and litigation into a fundamentally relational process, namely, their expectation that the paternalist relations that the elites established with them would not deliver only repression and discipline, but also some real protection and customary “rights”. Therefore, it suggested that the history from below could only be told by reconstructing the whole of the relationships in which the workers were imbricated. Eventually, as several scholars have observed, one might reproach Thompson to have gone both too far and too near with “moral economy”. On the one hand, stressing “moral economy” in the singular, he silenced the plurality in the interpretations and conflicts among the elites and the non-elites, and even among the subalterns. And on the other hand, the concept “moral economy” fell short of capturing the broader relevance of paternalism as a mode of domination beyond the economical dimension.

A more ambiguous legacy marks the other key concept: agency. In Thompson’s texts this was a necessary tool to re-balance the emphasis on anonymous “structures” and bring back the voices of all historical actors. Conversely, in many studies, scholars view it as an exclusive feature of the subalterns, as if the elites had no agency or their agency should not be considered in a history from below. In the same vein, agency has become a buzz word in a twice individualist game. On the one hand, as Walter Johnson has rightly observed, it has become a marker of the scholar’s own individual positionality, often merely super-imposed on the practices of the historical actors. On the other hand, it has accompanied a marked shift from the focus on collective agency (and the role of individuals therein) to the emphasis on the protagonism of this or that enslaved, indigenous or female individual. In these ways, one might say that “agency”, paradoxically, has contributed to silencing the very process of the making of classes that was so relevant to Thompson.

At least one problematic aspect, however, cannot be blamed on Thompson’s interpreters, but can be traced in Thompson’s own works. This is about that focus on the English working class in The Making of the English Working Class. At first sight, that choice might seem obvious: Thompson set out to analyze in detail the processes through which distinct groups of workers were becoming a class. Indeed, in his Preface he apologized to Scottish and Welsh readers: “I have neglected these histories, not out of chauvinism, but out of respect. It is because class is a cultural as much as an economic formation that I have been cautious as to generalizing beyond English experience”. However, precisely those lines reveal the idea that class formation could and ought to be studied exclusively within the unit “England”, in a typical methodological nationalist move. And in turn, the emphasis on England was postulated on the idea that the process of industrialization spread out from “the West” (and specifically from England) to “the rest”, according to a typical Eurocentric scheme.

Both approaches led Thompson to leave out of its history many other processes that were arguably not less relevant to the formation of the working class than the ones he did address. In the last decades, many scholars have unearthed these aspects, particularly in relation to the trans-Atlantic link. Thus, the scholars whom Cedric J. Robinson included in the “Black Radical Tradition” emphasized the importance of the racial fracture in the process of class formation in Europe and in North America; at the same time, Rediker and Linebaugh described the trans-Atlantic voyages as a “middle passage between Old World expropriation and New World exploitation” and unveiled other processes of class formation on board the ships that sailed that Ocean. Especially in the last twenty years, the relationship between capitalism and slavery has taken centre stage in the scholarly debate, and several researchers have insisted also on the direct connection between slavery and the industrial revolution through the circulation of capital. In the meantime, broad debates have revealed the “industrial revolution” to be a longer-term and more multi-sited process that we used to think. Finally, global labour historians have insisted that the multiplicity of labour relations is the historical standard, and that not only the trans-Atlantic slavery, but also all other unfree labour relations are compatible with capitalism.

Viewed from these new and by now relatively established perspectives, how does the history of class formation look like? Can we still write about the making of the English, the Brazilian, the South Korean or the Indian working class separately? How can the process of “the making of the working class” be envisaged, once the historians’ mind is liberated from the cages of methodological nationalism and Eurocentrism that influenced even a life-long internationalist like E.P. Thompson?

What is at stake in this mind-shift is the very possibility of relaunching social history after the long crisis that has characterized this field since the 1990s. Integrating the “spatial turn” and the spatial sensitivity of some strands in global history (while rejecting macro-analytical approaches in global history that conflate “the global” with the planet) might be one way forward in that direction. With, beyond and maybe partially “against” E.P. Thompson.

EP Thompson speaking, Youth CND rally Coventry 1984. © Stefano Cagnoni/reportdigital.co.uk,  26/05/1984. Available at: https://www.reportdigital.co.uk/search?s=ep+thompson