Lições de EPT: do Chão ao Cume – Leon Fink



Lições de EPT: do Chão ao Cume1



Em carta aberta a Kolakowski em 1973, E.P. Thompson, referindo-se exageradamente aos limites teóricos e geográficos da suas interpretações políticas, comparou-se ao batardão inglês, uma ave que não pode voar. No entanto, para mim e muitos historiadores da mesma geração, ele se destacou como poucos estudiosos que tivemos a sorte de encontrar, seja por escrito ou ao vivo.

Nosso contato pessoal se iniciou no outono de 1968, durante meu terceiro ano de graduação em Harvard. Eu estava encantado com The Making of the English Working Class, e entrei como aluno ouvinte no programa de mestrado em História Comparada do Trabalho no Centro de Estudos de História Social da Universidade de Warwick. Além de “Edward” (como ele preferia ser chamado), o programa foi impulsionado naquele ano pela presença do professor visitante David Montgomery, bem como dos membros permanentes do corpo docente – Fred Reid, autor de uma excelente monografia sobre Keir Hardie, e James Hinton, um estudioso pioneiro do sindicalismo britânico. Expor-me à presença influente Thompson ainda que por apenas um ano revelou-se uma profunda experiência pessoal, intelectual e política; é justo dizer que definiu o rumo da minha vida acadêmica desde então.

Entre tantas lembranças, um par delas já é suficiente. Os alunos do mestrado formavam um grupo socialmente bastante unido que incluía o historiador do trabalho Neville Kirk, o historiador Merfyn Jones, estudioso do País de Gales, e o futuro líder sindical internacional Philip Bowyer. A camaradagem entre nós era reforçada pela constante hospitalidade oferecida aos estudantes por Edward e sua esposa Dorothy Thompson, bem como por David e sua esposa Marty Montgomery. Certo final de semana fomos todos convidados ao chalé de campo dos Thompsons, em seu vilarejo no norte do País de Gales. Um momento de destaque foi quando Dorothy me pediu para deixar entrar um vizinho a quem emprestara uma ferramenta de seu galpão. Após o visitante magricela ir embora,  perguntei a ela quem era: “Ah, é só o Eric [Hobsbawm].” 2

No entanto, nossa comunidade igualitária tinha os seus limites. Um inconveniente requisito acadêmico  (ao menos para nossa turma de socialistas radicais) para o ingresso no mestrado era uma prova escrita sobre relações de trabalho  – um currículo subordinado, naquele ano, a um relatório recente da Comissão Donovan. Influenciada por Hugh Clegg, da própria universidade, essa foi a primeira de várias tentativas de um governo trabalhista moderado (antes do tsunami dos anos Thatcher) para reestruturar a negociação coletiva britânica sob as pressões do mercado global, reduzindo o poder dos representantes sindicais para controlar melhor os salários e os preços. Bem, nós estudantes decidimos desferir um golpe próprio em nome da classe trabalhadora britânica, e passamos a noite acordados compondo uma crítica extensa e “coletiva” ao Relatório Donovan, repudiando o curso Relações de Trabalho como um todo. Todos (uma meia-dúzia, pelo que me lembro) permanecemos sentados na sala de exame durante os quinze minutos de presença obrigatória, depois nos levantamos em grupo, entregamos nossa obra-prima ao inspetor responsável e voltamos orgulhosamente para os corredores amigáveis do Instituto de História Social. Infelizmente, descobrimos que a reação de nossos orientadores não foi tão amigável assim. Ao serem alertados sobre nossa ação, em poucos minutos Edward e David estavam berrando conosco, indignados por supostamente termos colocado todo o seu programa em risco. Eles sentenciaram que ou bem concordávamos em refazer o exame dentro de alguns dias, ou poderíamos dar adeus ao diploma. Por ser um aluno ouvinte, para minha sorte, não fui afetado, mas todos os outros se submeteram à primeira opção. Além dos detalhes desagradáveis da situação, essa foi uma lição sobre os limites da rebelião romântica juvenil.

Como parte de um talento narrativo que era, no entanto, repleto de precisão analítica, Thompson impressionou-me desde o início com a importância dada às circunstâncias locais e à agência individual. Ainda posso vê-lo vasculhando uma pilha de fichamentos e selecionando exemplos aleatórios para uma palestra sobre vendas de esposas no século XVII (mais tarde transformado em artigo de Customs in Common, 1993). Consumada em The Making (1963), mas igualmente presente em seu ensaio de 1960, “Homage to Tom Maguire”, sua genialidade residia em reconstruir paixões, protagonistas e eventos do passado de tal maneira que o leitor contemporâneo não pudesse ignorar. Minha dívida para com a metodologia thompsoniana (um adjetivo que ele detestava) seria notada desde minha monografia sobre a política local em West Ham – resultante do curso em Warwick e apresentada em Harvard no ano seguinte (“The Forward March of Labour Started”) – até minha tese publicada, Workingmen’s Democracy (1983), e em minha versão atualizada de The Maya of Morganton (2002, a ser reeditada em 2024).

Sem dúvida, muitos aspectos do legado de Thompson continuarão a inspirar futuros leitores. Seu esforço em incluir uma denúncia contundente do capitalismo moderno no interior de um olhar atento e respeitoso sobre as conquistas de ativistas democráticos do passado, bem como a persistente importância das tradições literárias e artísticas oferece um modelo – embora nenhum projeto – para os estudiosos mais recentes dotados de consciência humana.

Notas

1 O título original do texto em inglês – “Lessons from EPT: Scaling the Heights from the Ground” – contém em si duas metáforas cujos sentidos são parcialmente perdidos em português. A expressão “scaling the heights” significa literalmente escalar e atingir o cume de uma montanha, mas também se aplica a sentidos figurados, como atingir o topo de uma carreira, o mais alto grau de sucesso. A locução adverbial “from the ground”, por sua vez, pode ser lida como “do chão”, ou “a partir do chão”; como metáfora, significa também começar algo do zero, partir do nada. Assim ,Leon Fink joga com esses sentidos sobrepostos, inspirando-se na autocomparação de Thompson a uma ave terrestre. Nota da tradutora.
2 Colchetes do autor.


Lessons from EPT: Scaling the Heights from the Ground



In his open letter to Kolakowski  in 1973, E.P. Thompson, with exaggerated reference to the theoretical and geographic limits of his political understandings, compared himself to the English great bustard, a bird that could not fly.  Yet for me and many other historians of  my generation, he soared like few other scholars we were ever lucky enough to encounter, whether in print or in person.

Our personal connection began in the fall 1968, during my third year at Harvard College, in the fall 1968.  I had been captivated by The Making of the English Working Class, and I joined the MA program in comparative labour history at University of Warwick’s Centre for the Study of Social History as a non-credit student. In addition to “Edward” (as he preferred to be addressed by everyone around him), the program was buoyed that year by the presence of visiting professor David Montgomery as well as permanent faculty members Fred Reid, author of an excellent monograph on Keir Hardie, and James Hinton, a pioneering scholar of British syndicalism.  That single year’s exposure to Thompson’s influence proved a profound personal, intellectual, and political experience, and, it is fair to say, set the direction of my academic life thereafter.  

Among many, memories, a couple must suffice.  Socially, the MA students (who included historian Neville Kirk of this forum, North Wales historian Merfyn Jones, and future international labor leader Philip Bowyer) were a tight-knit group.  The comraderie among us was enhanced by the regular hospitality extended to the students by Edward and his wife Dorothy Thompson as well as by David and his wife Marty Montgomery.  On one weekend we were all invited to the Thompson’s cottage in their North Wales village.  One moment that sticks out was when Dorothy asked me to let a neighbor in who asked to borrow a tool from their shed.  After the gaunt visitor left and I inquired of his identity, she answered, “Oh, that’s just Eric [Hobsbawm].”

Yet, our egalitarian community had its limits.  One unhappy academic requirement for MA matriculation —at least for our radical socialist cohort– was a written exam in industrial relations, a curriculum, as it happened that year, dominated by a recent report of the Donovan Commission.  Influenced by Warwick’s own Hugh Clegg, this was the first of several attempts by a moderate Labour Government (prior to the tsunami of the Thatcher years) to re-structure British collective bargaining under the pressures of the global marketplace by reducing  the power of shop stewards to better control wages and prices.  Well, we determined to strike our own blow on behalf the British working class and stayed up all night composing an extended, “collective” critique of the  Donovan Report and in the process rejecting the entire discipline of industrial relations.  We all (some six of us as I remember) sat in the exam room for the required fifteen minutes of obligatory attendance, then stood up as a group, deposited our masterpiece with the attending proctor, and walked proudly back to the friendly corridors of the Institute for Social History.  Alas, we discovered, our mentors were not so friendly.  Within minutes, having been alerted to our action by administrators, both Edward and David were roaring at us with indignation for allegedly having put their whole program in jeopardy.  They declared that we either agree to retake the exam within a few days or we could kiss our degrees goodbye.  Lucky for me, I was an unaffected non-credit student, but the others all submitted to the first option.  Beyond the unpleasant specifics of the situation, it was a lesson in the limits of romantic youthful rebellion. 

As part of a narrative bent that was nevertheless chock full of analytical precision, Thompson impressed me from early on with the power of local circumstance and individual agency.  I can still picture him rifling through a stack of notecards and seemingly selecting individual examples at random for a talk (later an article in Customs in Common, 1993)on seventeenth-century wife sales.  Brought to fruition in The Making (1964) but equally reflected in his 1960 essay, “Homage to Tom Maguire,” his genius was to reconstruct the passions as well as the protagonists and events of the past in a manner that the contemporary reader could not ignore.  My own debt to Thompsonian methodology (a word he detested) should be apparent from my Warwick-based senior honors essay, submitted to Harvard a year later, on West Ham local politics (“The Forward March of Labour Started” 1993) to my dissertation book, Workingmen’s Democracy (1983), and onto my current updating of The Maya of Morganton (2002, and forthcoming 2024).

There are no doubt many strands of Thompson’s legacy that will continue to inspire future readers.  His attempt to enfold a scathing denunciation of modern-day capitalism within a careful and respectful regard for the achievements of prior, small-d, democratic activists, as well as the enduring importance of literary and artistic traditions offers a model—albeit no blueprint– for latter-day scholars of humane conscience.