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LMT #140: Allan Gardens, Toronto, Canadá – Bryan Palmer

03 DE OUTUBRO DE 2025



Por séculos, várias Primeiras Nações habitaram os territórios nas margens setentrionais do Lago Ontário, um dos Grandes Lagos que formam parte da fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos. A principal província industrial do Canadá, Ontário, e sua maior cidade, Toronto, surgiram em meio aos processos de colonização que consolidaram a dominação britânica no extremo norte das Américas, após a Guerra de Independência dos Estados Unidos. Essa colonização, enraizada em uma longa e contínua desapropriação dos Povos Indígenas, levou à criação do Alto Canadá (o antigo Ontário) pelo Ato Constitucional de 1791. A consolidação territorial do Estado-nação prosseguiu na década de 1860, com o Ato da América do Norte Britânica de 1867 e a criação do Domínio do Canadá.

Em um reconhecimento paternalista das alianças militares e comerciais dos Povos Indígenas com o seu “pai”, o monarca, houve um limitado reconhecimento do “território indígena” e dos direitos das Primeiras Nações ao seu uso. Uma série de tratados e transações vagas, conhecidas como “cessões” e “compras”, transferiu vastas extensões de terra para a Coroa Britânica, com os grupos indígenas deslocados para pequenas e isoladas reservas. Locais mais cobiçados, como a atual Toronto, assim como extensas áreas florestais, futuros sítios de riqueza mineral e terras potencialmente férteis para a agricultura, foram designados como “terras da Coroa”. Um chefe Mississauga queixou-se a um oficial inglês na década de 1820: “Vocês vieram como o vento que sopra através do Grande Lago. […] Nós os protegemos até se tornarem uma árvore poderosa que se espalhou por nossa Terra de Caça. Com seus galhos, agora vocês nos açoitam.”

Em 1830, William Allan, banqueiro mercantil e pilar da oligarquia aristocrática que governava o Alto Canadá, conhecida como Family Compact, comprou uma vasta extensão de terras da Coroa que se estendia do Lago Ontário até o que hoje é a região central de Toronto. Décadas mais tarde, seu filho George, então prefeito de Toronto e presidente da Sociedade de Horticultura da cidade, cedeu uma pequena parte desse lucrativo terreno ao município para uso público, o que incluiu a criação de jardins públicos, hoje abrigados em meia dúzia de estufas. Durante uma visita a Toronto em 1860, o Príncipe de Gales inaugurou oficialmente o Allan Garden, um parque urbano que ocupa dois grandes quarteirões da cidade.


Por mais de um século e meio, Allan Gardens não apenas cultivou uma vegetação exuberante. Ele também foi um lugar de protestos ligados a uma variedade de movimentos por justiça social, como, entre outros, as sufragistas do século XIX; as mobilizações de trabalhadores desempregados na década de 1930; as campanhas pela liberdade de expressão nos anos 1960; as marchas do orgulho gay nos anos 1970; e os protestos contra a pobreza durante a era do neoliberalismo, dos anos 1990 até o presente. Poucos espaços públicos no Canadá foram cenário de tantas, e tão diversas, manifestações de resistência e contestação.


Os Povos Indígenas, como não é de se surpreender, há muito utilizam o Allan Gardens como ponto de encontro; até hoje, cerimônias semanais de percussão e cura são realizadas no parque. Em 1995, o Conselho Histórico de Toronto ergueu uma placa em homenagem ao Dr. Oronhyatekha (Burning Cloud/Peter Martin), a segunda pessoa indígena no Canadá a obter um diploma de medicina e uma das primeiras e mais proeminentes vozes a se opor aos aspectos restritivos do Indian Act de 1876. Burning Cloud formou-se na Escola de Medicina de Toronto em 1886. Ele morava do outro lado da rua do Allan Gardens, onde praticava medicina ocidental convencional e prescrevia curas “indígenas”. Um Centro de Recursos para Mulheres Indígenas de Toronto funciona agora na mesma vizinhança. O parque tem sido recentemente palco de vigílias e protestos contra a epidemia de assassinatos e desaparecimentos de mulheres e meninas indígenas.

A associação do feminismo com o Allan Gardens remonta a 1892. O Conselho Nacional das Mulheres do Canadá, que defendia o direito ao voto, surgiu a partir de uma reunião no parque. Em 1896, a União Cristã Feminina pela Temperança conduziu um Parlamento Simulado no pavilhão do parque, construído em estilo oriental, semelhante aos pagodes asiáticos (torres ornamentais com vários telhados sobrepostos). Dra. Emily Stowe, a primeira médica a exercer a profissão no Canadá, presidiu o evento, que também contou com a participação de Lady Ishbel Aberdeen, esposa do Governador-Geral do Canadá. “Participantes abastadas”, observa a historiadora do sufrágio canadense Joan Sangster, só puderam assistir à encenação de teatro político satírico ao garantirem “bilhetes com antecedência”.

Mais barulhentas, e decididamente mais ousadas, foram as dyke marches [passeatas das sapatões] associadas à Semana do Orgulho de Toronto, sendo que a primeira marcha do Orgulho Gay da cidade partiu do Allan Gardens em 1974. O primeiro desfile lésbico ocorreu em 1996. Desde 2014, a dyke march passou a se encerrar no Allan Gardens, onde performances teatrais queer teriam feito as feministas do século XIX corarem. Lady Aberdeen talvez ficasse perplexa — senão indignada — com as Slutwalks [passeatas das “vagabundas’] que tiveram início no Allan Gardens entre 2013 e 2017, defendendo a descriminalização do trabalho sexual e a criação de um ambiente livre de estigmas para aqueles envolvidos em empregos eróticos.

À medida que o capitalismo se consolidava no início do século XX, os sindicatos cresceram em tamanho e influência. Organizações de esquerda, como o Partido Comunista e a Federação das Cooperativas do Commonwealth, surgiram. Elas exigiam uma alternativa ao ethos de “cada um por si” do sistema de lucro. Crises periódicas deixavam massas de trabalhadores desempregados. No Allan Gardens, manifestantes e policiais entraram em confronto repetidas vezes durante a Grande Depressão da década de 1930.

A Liga dos Trabalhadores Veteranos de Guerra (WESL), liderada pelos comunistas, ergueu sua faixa — “Heróis de 1914 – Mendigos em 1933” — no Allan Gardens, em protesto contra o desemprego, a brutalidade policial e a repressão à liberdade de expressão. Policiais a cavalo e de motocicleta avançaram contra a multidão de desempregados, que incluía mulheres da classe trabalhadora que deixaram seus carrinhos de bebê sob as árvores e enfrentaram a polícia em fúria.

Sob pressão de organizações como a WESL, a Liga Canadense de Defesa do Trabalho e o Conselho de Desempregados de Toronto, o Comitê de Parques Municipais designou oito parques locais — incluindo a legislatura provincial, o Queen’s Park — como abertos a discursos públicos e manifestações. No entanto, a legislação local continuava a proibir discursos no Allan Gardens, já então conhecido como ponto de encontro de trabalhadores insatisfeitos.

Em 1962, poetas radicais se rebelaram contra as restrições legais que limitavam os discursos públicos no Allan Gardens. O poeta laureado da esquerda canadense, Milton Acorn, liderou a resistência ao embargo da liberdade de expressão. Ele venceu, tanto no tribunal da opinião pública quanto no sistema de justiça. As leis de Toronto mudaram: poetas, oradores de rua e defensores da liberdade de expressão de todos os tipos puderam, a partir de então, usar o Allan Gardens como seu palco.

Com os pobres e marginalizados da sociedade atraídos para Allan Gardens, a polícia aproveitou a oportunidade para atacar os bodes expiatórios e suspeitos de sempre. As áreas residenciais ao redor do centro da cidade de Allan Gardens foram gentrificadas. As antigas pensões que atendiam moradores pobres, muitas vezes racializados, em especial torontonianos de origem caribenha, deram lugar a elegantes residências unifamiliares. Essa transformação urbana, no entanto, levou tempo. Para os negros que ainda viviam perto do parque nos anos 1990, alguns deles em situação de rua e dependentes de abrigos que continuavam a existir no bairro, o Allan Gardens tornou-se um espaço de encontro, convivência e de prática do futebol.

Uma operação policial no Allan Gardens, no verão de 1994, resultou em tratamento humilhante de 65 homens negros, que receberam o aviso de que, caso voltassem ao parque, seriam presos. Proprietários brancos abastados — defensores da emergente ideologia “Not In My Backyard” (“Não no meu quintal”) e articuladores de ativas associações de moradores locais — aplaudiram os policiais enquanto estes distribuíam 3.000 dólares em multas por vadiagem. Mas o Allan Gardens não poderia ser facilmente transformado em um espaço de repressão racista. Reforçados por aliados do movimento gay, ativistas do Black Lives Matter se reuniram no Allan Gardens em 2016. Sua mensagem — “I Am Not A Threat” (“Eu não sou uma ameaça”) — rememorava o vergonhoso perfilamento racial de jogadores de futebol imigrantes em 1994.

Na década de 1990, as crises do capitalismo precipitaram uma reação. O ataque bem-sucedido do neoliberalismo às organizações fundamentais de defesa da classe trabalhadora deixou os sindicatos enfraquecidos. Com o deslocamento do espectro político para a direita, organizações de esquerda há muito associadas ao anticapitalismo — e conhecidas por incentivar levantes militantes da classe trabalhadora — foram ficando em segundo plano. O protesto passou a se associar menos à classe trabalhadora organizada e aos movimentos e partidos tradicionais da esquerda radical.

Uma alternativa surgiu. A Coalizão de Ontário contra a Pobreza (OCAP) ganhou destaque sob o slogan “Lutar para vencer!” A OCAP apoiava os acampamentos vulneráveis no parque. O Allan Gardens foi defendido como um lugar seguro para o número crescente de pessoas pobres e em situação de rua em Toronto. Passeatas contra os governos provinciais frequentemente começavam no parque e percorriam o centro da cidade até a sede do governo em Queen’s Park.

Uma dessas manifestações explosivas culminou em um conflito com a polícia em 15 de junho de 2000. O inquérito registou ferimentos superficiais em cavalos da polícia, 42 policiais alegaram fraturas nas canelas e contusões no corpo, e um número semelhante de manifestantes foi preso, incluindo três dos principais organizadores da OCAP. As audiências judiciais envolvendo mais de 250 acusações criminais se prolongaram até 2002-03, restringindo severamente a capacidade da OCAP de defender os pobres, promover a necessidade de moradias acessíveis e prestar serviços e aconselhamento aos desfavorecidos que dependem de sua experiência e ajuda.

As faixas da OCAP muitas vezes pareciam saídas diretamente dos protestos da década de 1930: “Unidos comemos. Divididos passamos fome.” Quando o G-20 se reuniu em Ontário em 2010, ativistas antiglobalização se concentraram no Allan Gardens. John Clarke, da OCAP, denunciou a agenda de austeridade dos líderes do capitalismo global, proclamando: “Eles nos deram guerra, nós estamos devolvendo guerra a eles.”

Hoje a OCAP está em grande parte extinta, mas seu espírito, e o de seus antecessores militantes, permanece. Acampamentos de barracas de pessoas em situação de rua continuaram no Allan Gardens muito depois do fim da organização antipobreza. Muitos dos sem-teto eram indígenas.

As autoridades municipais de Toronto acabaram encontrando acomodação para muitas das pessoas que viviam no parque. Por enquanto, barracas de sem-teto não estão mais montadas no Allan Gardens. Mas uma mulher indígena ainda vive lá em um icônico teepee (tenda indígena), onde mantém uma fogueira sagrada. Forças de segurança privada patrulham o Allan Gardens, garantindo que não surjam acampamentos de pessoas em situação de rua em um parque que recentemente passou por extensas reformas em um pavilhão que as autoridades claramente querem transformar em atração para turistas e visitantes “respeitáveis”. Em toda Toronto, no entanto, a falta de moradia continua sendo uma questão central e preocupante, com muitas pessoas forçadas a viver em barrancos e outros espaços públicos, ou a depender de abrigos inadequados.

Em setembro de 2022, um festival de quatro dias de música, poesia, dança e cerimônia marcou a instalação artística de uma escultura de 27 painéis, com 7 metros de comprimento. A celebração e a composição criativa faziam parte de um projeto de longo prazo liderado pela programadora cultural e cineasta Rina Fraticelli e pelo fotógrafo e curador Schuster Gindin. Narrativas, representações artísticas, documentos e outros materiais culturais comemoraram os 130 anos de história do Allan Gardens. Fraticelli e Gindin buscaram reconhecer e fortalecer ainda mais o senso de comunidade local. Eles publicaram um volume ricamente ilustrado, Allan Gardens: People, Power & the Park. A obra ilumina como o Allan Gardens tem sido, há muito tempo, um espaço público onde as liberdades de associação e expressão são defendidas e preservadas, estabelecendo a continuidade da luta da classe trabalhadora, dos movimentos por justiça social e dos protestos indígenas sob o capitalismo e o colonialismo.

No Allan Gardens, um parque hortícola originado de um ato de expropriação colonial transformou-se em propriedade privatizada. Esse espaço público tornou-se um terreno contestado. Gerações de dissidentes reivindicaram direitos: de se reunir; de ser ouvidos; de pressionar por mudanças; de se libertar do Calcanhar de Ferro das autoridades e de seus gendarmes. Ao fazê-lo, militantes e todo tipo de pessoas insatisfeitas expressaram críticas a uma sociedade que justificava a desigualdade e racionalizava a opressão, a exploração e a repressão. As lutas de povos indígenas e racializados, de mulheres e minorias sexuais, e de trabalhadores — assalariados e não assalariados — marcaram a tranquilidade do parque. Criado como uma expressão das sensibilidades da elite, o Allan Gardens se transformou em algo diferente: um lembrete visível de que a supressão dos despossuídos nunca é fácil nem total. Em sua ressignificação, o parque passou a simbolizar as possibilidades de uma transformação socioeconômica mais ampla.

“Empregos, Justiça e Ação Climática, Protesto de 5 de julho de 2015, Allan Gardens”, do livro de Fraticelli e Gindin, p. 37.


Bryan D. Palmer and Gaétan Héroux, with a foreward by Francis Fox Piven, Toronto’s Poor: A Rebellious History (Toronto: Between the Lines, 2016).

Donald B. Smith, “The Dispossession of the Missisauga Indians: A Missing Chapter in the Early History of Upper Canada,” Ontario History, 73 (June 1981), 67-87.

Joan Sangster, One Hundred Years of Struggle: The History of Women and the Vote in Canada (Vancouver: UBC Press, 2018).

Rina Fraticelli and Schuster Gindin, Allan Gardens: People, Power & the Park (Toronto: King’s Road Press, 2024).


Crédito da imagem de capa: “Manifestação da Liga dos Trabalhadores Veteranos de Guerra (WESL), liderada pelos comunistas, em 15 de agosto de 1933 no Allan Gardens, em protesto contra o desemprego”. Fonte: Livro Allan Gardens: People, Power & the Park.


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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