Fernando Pureza
Professor do Departamento de História da UFPB
Quem anda pela Zona Norte de Porto Alegre nos dias de hoje deve conhecer o shopping Bourbon Wallig, localizado na avenida Assis Brasil. Não obstante carregue o sobrenome do proprietário das indústrias Wallig, a estrutura do shopping em nada lembra aquela que foi uma das maiores metalúrgicas do Rio Grande do Sul.
A trajetória da Wallig confunde-se em grande medida com a própria história da classe trabalhadora porto-alegrense. Indústria metalúrgica importante, reconhecida em especial pela produção de fogões, foi fundada em 1904 por Pedro Wallig, imigrante alemão que destinara o empreendimento para a construção de camas de ferro. Foram seus filhos, Guilherme e, em especial, João, que deram o rosto “moderno” da empresa. Em 1921 transferiram a Wallig para o bairro Navegantes, onde foi convertida na maior fábrica de fogões do Brasil, mantendo um modelo paternalista de gestão empresarial, tão comum ao empresariado teuto-brasileiro de Porto Alegre. Desta forma, criaram sistemas de socorro mútuo e cooperativas de crédito e consumo que permitiam aos patrões controlar a vida dos operariado, majoritariamente masculino, para além das fábricas.
Nos antecedentes da Segunda Guerra Mundial, a Wallig seria referência não apenas pelos fogões, mas por desenvolver cozinhas industriais inteiras sob demanda – sendo efetivamente favorecida pela legislação trabalhista da época, que instituiu a obrigatoriedade de que empresas com mais de 500 funcionários tivessem refeitórios instalados. Na década de 1940, como muitas outras indústrias, ela deixa Navegantes, fugindo das grandes enchentes, como a de 1941. Instalou-se no bairro do Cristo Redentor, na Zona Norte de Porto Alegre, no famoso Quarto Distrito. Foi ali, na rua Francisco Trein, que a empresa expandiu ainda mais seus negócios. O sucesso da Wallig foi tanto que ela patrocinou um dos primeiros programas de TV no Rio Grande do Sul, o “Grande Show Wallig”, exibido pela extinta “TV Piratini” em 1961.
Talvez não por acaso, o Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre se instalou na mesma rua da metalúrgica. A sede sindical, inaugurada em 1953, segundo relato do antigo presidente do sindicato, José Cézar de Mesquita, dava de frente para os portões da Wallig. Na memória extraoficial do sindicato, Mesquita é lembrado como um de seus maiores nomes, o principal organizador das atividades sindicais dos metalúrgicos e um dos principais líderes sindicais do Estado. Nas décadas de 1950 e 60, para além da mobilização e das greves, o sindicato promovia atividades de teatro, cinema, esporte, arte-coral, Centro de Tradições Gaúchas, o jornal Folha Metalúrgica, a colônia de férias e o Instituto Educacional – que posteriormente se tornaria a escola técnica José Cézar de Mesquita.
A Wallig tornou-se uma das principais bases do Sindicato. Ao atravessar a rua, o operário fabril que se sentisse injustiçado ou simplesmente quisesse se organizar, encontrava um dos sindicatos mais fortes do Rio Grande do Sul até a intervenção dos militares em 1964.
Mesmo depois do golpe, a adesão dos operários daquela fábrica à entidade continuou relativamente alta. Em 1968, dos 1.556 funcionários da Wallig, 537 ainda eram associados ao sindicato. Contudo, o período da ditadura não foi propriamente próspero para a empresa. Em 1964 o patrono João Wallig faleceu e seu filho Werner Pedro recebeu a incumbência de instalar uma filial da Wallig em Campina Grande, na Paraíba. Alegando que o volume de investimento era excessivo e que faltava mão de obra especializada, a Wallig passou a perder parte significativa de seu capital. Em 1981, após inúmeras perdas, a empresa desativou suas funções em Porto Alegre.
Entre idas e vindas, nos despojos da empresa, duas cooperativas, com o apoio do Sindicato dos Metalúrgicos, passaram a ocupar o espaço da fábrica: a Coomec (Cooperativa Industrial Mecânica dos Trabalhadores na Wallig Sul Ltda) e a Coofund (Cooperativa Industrial de Fundidos dos Trabalhadores na Wallig Sul Ltda). Elas mantiveram a empresa funcionando por meio de uma autogestão operária que perduraria até 1991. A Coofund ainda permaneceria até o ano de 1997, mas sem exercer produção direta na fábrica, fechada por ordem judicial em 1993.
As cooperativas foram o último sopro de vida e de luta que a Wallig conheceu. Com a empresa obrigada pela Justiça a vender sua massa falida e com os antigos donos bloqueando as ações das cooperativas, ocorreu o canto de cisne da fábrica. O terreno abandonado, de frente para o Sindicato dos Metalúrgicos, virou uma espécie de ruína arquitetônica na Zona Norte de Porto Alegre e assim foi até maio de 2012, quando o grupo Zaffari comprou o espaço e lá instalou o shopping Bourbon Wallig, o seu maior empreendimento, alterando profundamente a paisagem da região.
Em 2019 o Sindicato dos Metalúrgicos deixou sua antiga sede e instalou-se na escola José Cézar de Mesquita, algumas quadras mais distante do shopping. O espaço urbano de Porto Alegre modificou-se completamente. O local onde antes as lutas de classes ocorriam no atravessar das ruas era agora ocupado pelo templo do consumo. Mas recuperar a memória dessas lutas e desses trabalhadores pode, quem sabe, inspirar a nova classe trabalhadora que percorre o antigo terreno da Wallig.
Para saber mais:
- FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas. Caxias do Sul: EDUCS, 2004.
- HOLZMANN, Lorena. Operários sem patrão: gestão cooperativa e dilemas da democracia. São Caetano: EDUFSCAR, 2001.
- JAKOBY, Marcos André. A organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a 1964. Dissertação de Mestrado. Niterói: PPG-História UFF, 2008.
- SILVA, Nauber Gavski. O “mínimo” em disputa: Salário mínimo, política, alimentação e gênero na cidade de Porto Alegre (c. 1940 – c. 1968). Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2014.
- PUREZA, Fernando Cauduro. “Isso não vai mudar o preço do feijão”: as disputas em torno da carestia em Porto Alegre (1945 a 1964). Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2016.
Crédito da imagem de capa: Fachada da Wallig da janela da antiga sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre. Abril de 2008. Foto de Fernando Pureza.
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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