Fabiane Popinigis
Professora do Departamento de História da UFRRJ
Henrique Espada Lima
Professor do Departamento de História da UFSC
Para ao Cisne disputar
Populares afeições
Chama às reuniões
Negras aves d’ultramar
No poema “A assembleia das aves”, de 1847, Marcelino Antônio Dutra, escritor e político associado aos liberais em Santa Catarina, nos deixa entrever um pouco de sua visão, que certamente compartilhava com outros, sobre a eleição daquele ano. Nos versos acima, em que o “Cisne” representava o candidato liberal e as “negras aves africanas” eram os trabalhadores escravos e libertos, Dutra criticava os conservadores por tal aliança. Segundo ele, a união daqueles “pássaros” num “clube eleitoral” teria produzido uma “liga monstruosa” que deixava a polícia em alerta.
A principal disputa naqueles anos dava-se em torno do local de construção de um prédio de mercado para acolher o comércio de gêneros alimentícios em Desterro (atual Florianópolis). Na praça central, em frente à Igreja da Matriz e próximo da praia, desde há muito tempo as quitandeiras de origem africana estendiam seus panos – como em outras cidades portuárias do Atlântico – para vender comidas prontas, frutas, peixes e outros alimentos, enquanto trabalhadores escravizados e libertos carregavam e descarregavam navios. Muitos dos escravos e escravas se empenhavam em acumular pecúlio com esse trabalho para comprar a própria alforria. Pessoas de origem africana vieram como escravizados principalmente do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX. Em 1855, dos 5.611habitantes de Desterro, 1.436 eram escravizados.
Também para aquela praça, pequenos lavradores levavam seus produtos, em canoas, do interior da Ilha de Santa Catarina, para ali vendê-los. O espaço do mercado configurava-se assim como um local de intensa concentração de homens e mulheres trabalhadoras, dedicados à manutenção da estrutura de abastecimento e serviços da cidade portuária.
Desde 1838 havia um controverso projeto para a construção de um prédio de mercado na praça central da cidade. As autoridades locais aproveitaram a passagem de D. Pedro II pela cidade, em 1845, para remover dali as barraquinhas, que, para muitos “enfeiavam” a praça ladeada pelos prédios do governo. Depois da visita do Imperador, a pendenga voltou à baila, dividindo os que queriam o mercado fora da praça e os que queriam que o mercado voltasse para onde sempre estivera, com os peixes e alimentos exibidos “aos pés dos pretos e pretas quitandeiras”. Nas ruas que a margeavam, comerciantes da cidade haviam estabelecido seus negócios. Outros, acalentavam projetos de “aformoseamento” e “saneamento” para os espaços centrais da cidade, a exemplo de outras capitais.
As “negras aves africanas” a que se referiu o liberal Dutra eram os libertos, que foram ali representados pela ave “Anu”, de cor preta e barulhenta. Embora libertos africanos, mulheres de qualquer origem e escravizados, não pudessem votar, o resultado das eleições lhes interessava e, suas posições e apoios faziam diferença na vida política da cidade. O clube eleitoral dos conservadores parece ter sofrido essa influência, articulada no propósito comum de manter o pequeno comércio, marcado pela forte presença africana, na praça central da cidade, o que contemplava também seus negócios nos arredores.
Na eleição de 1847, os conservadores ganharam o pleito e também a disputa sobre o mercado, que seria construído ali mesmo na praça. Em janeiro de 1851, foi inaugurado o primeiro Mercado Público de Desterro, no alinhamento da Rua do Príncipe (atual Conselheiro Mafra), junto ao mar.
Foi trabalhando nesse mercado que pessoas como a quitandeira Maria Mina acumularam pecúlio para a compra de sua liberdade, enquanto pequenos produtores, comerciantes e caixeiros vendiam seus produtos, e prostitutas encontravam seus clientes nos arredores da praça, onde passavam carregadores e carroceiros e barqueiros.
O primeiro Mercado Público de Florianópolis não existe mais. Foi substituído, no final do século XIX, por outro prédio, num local próximo, mas fora da praça principal. As tradicionais quitandeiras de origem africana foram excluídas do novo Mercado. Parte de um imaginário que cultua Santa Catarina como o “estado mais branco do Brasil”, a memória que foi construída sobre os primórdios do Mercado elimina completamente o papel dos africanos, celebrando a presença “açoriana” e dos colonos alemães. No entanto, os/as trabalhadores/as negros não desapareceram. Continuaram carregando, comerciando e lutando por seus direitos. Foram comuns as reclamações de quitandeiras enviadas à Câmara Municipal contra os altos impostos que pagavam para expor seus produtos na praia. Em 1900, o escritor Virgílio Várzea registrava a presença dessas vendedores negros passando com suas frutas e verduras por vários pontos da cidade, denominando-as de “formigas carregadoras”. Entre aves e formigas, esses homens e mulheres identificados por sua cor foram parte fundamental dos mundos do trabalho da capital catarinense no século XIX e início do XX. O Mercado Público foi seu principal território, um lugar de memória dos trabalhadores e trabalhadoras negligenciado pela história oficial.
Para saber mais:
- DUTRA, Marcelino Antônio Dutra, A Assembleia das Aves. Poemeto em quatro cantos dedicado aos amigos e aos verdadeiros amigos do Exmo.Sr. Conselheiro Jerônimo Francisco Coelho. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/assembleia_das_aves_de_marcelino_antonio_dutra.htm
- MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti; VIDAL, Joseane Zimmermann (orgs.). História diversa: africanos e afrodescendentes na ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.
- POPINIGIS, Fabiane, “‘Aos pés dos pretos e pretas quitandeiras’: experiências de trabalho e estratégias de vida em torno do primeiro mercado público de Desterro – 1840-1890)” Afro-Ásia, 46, 2012.
- VARZEA, Virgílio dos Reis. Santa Catarina: a ilha. Florianópolis: IOESC, 1984.
- Site para consulta: http://santaafrocatarina.ufsc.br/santaafrocatarina/
Crédito da imagem de capa: Carregadores no cais junto ao antigo Mercado Público de Desterro, antes de 1890. Acervo fotográfico do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (Florianópolis, SC). Autor desconhecido.
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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