Lugares de Memória dos Trabalhadores #24: Praça do Comércio, Manaus (AM) – Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro



Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro
Professor do Departamento de História da UFAM



Na virada do século XIX para o XX, o Norte do país vivenciou um momento de grandes transformações motivadas pela expansão da economia de exportação da borracha. Entre 1880 e 1910, a borracha foi o segundo principal produto na pauta de exportações brasileiras. Naquele período, afluíram para a região levas significativas de migrantes nacionais e estrangeiros, que contribuíram para uma sensível mudança na face da região, em especial nas duas capitais (Belém e Manaus) exportadoras do produto. 

O chamado boom da borracha foi fundamental para o processo de urbanização de Manaus. Atribui-se ao governador Eduardo Ribeiro (1890-1896), o principal administrador e urbanista do período, a façanha de ter transformado uma pequena aldeia em cidade moderna, o que, a seguir, acabou dando vazão à representações apologéticas da capital amazonense como a “Paris das Selvas”, vivendo o frescor de sua belle époque.

Em tais representações, foram comuns as descrições do urbanismo modernizador, seu ambiente cosmopolita, seus magazines, vitrines, praças e passeios públicos por onde desfilavam cavalheiros enfatiotados e senhoras em elegantes musselines, em meio a carruagens e as não menos atraentes cocotes “francesas”. Tais representações, no entanto, produziram silêncios importantes sobre um conjunto de práticas e de sujeitos sociais que compunham o universo popular e os mundos do trabalho.

Tendo recebido diversas denominações desde o final do século XIX, o espaço revitalizado nos primeiros anos do século XX, compreendendo o triângulo que se estendia entre os jardins da Igreja matriz, os Armazéns da Manáos Harbour e à Av. Eduardo Ribeiro, com o Prédio da Alfândega em seu vértice, a Praça do Comércio foi local de entrada exclusivo para a capital amazonense até a década de 1940 e, por isso mesmo, o espaço de grandes manifestações populares, que acorriam para ela, seja para a recepção de lideranças políticas chegadas à cidade, seja para as comemorações de datas e eventos cívico religiosos. Mas ela também foi um espaço para as manifestações e protestos da classe operária que começara a se formar e se organizar desde a última década do século XIX.


Foi exatamente a Praça do Comércio, o local escolhido pelos trabalhadores portuários – estivadores, carroceiros, catraieiros e carregadores – para a realização das assembleias e para a concentração de trabalhadores, quando estes decidiram pela realização daquela que pode ser considerada a primeira grande greve operária em Manaus, ocorrida em janeiro de 1899.


A escolha daquele espaço unia, de forma vantajosa, a proximidade dos espaços de trabalho – os armazéns portuários e os trapiches – à dinamicidade do comércio do entorno, o mais importante da cidade e, por isso mesmo, espaço de intenso trânsito de populares. Visto por esse ângulo, a informação de época, de que o movimento grevista de 1899 chegou a concentrar 3.000 pessoas na praça  – cerca de 5% da população de Manaus –, não parece exagerada.

Além de impactar centralmente a dinâmica da cidade, as greves de trabalhadores que passaram a ocupar a praça com grande frequência, durante todo o período da Primeira República, frequentemente recebiam a solidariedade da população manauara. Pela imprensa amazonense é possível perceber como os trabalhadores disputaram os espaços da cidade e, em muitos momentos tomaram-nos a seu favor para entabular suas demandas, reivindicações e protestos. Assim, em 1911, um diário da cidade, o Jornal do Comércio, informava que às seis horas da manhã do dia 4 de janeiro de 1911, os trabalhadores portuários ocuparam a praça com “avultado comparecimento”, para em seguida enfatizar que no início da tarde, “já era extraordinário o movimento de trabalhadores na Praça do Comércio”.

O mesmo ocorreu em 1919, quando os trabalhadores de diversas categorias da cidade ensaiaram uma greve geral, transformando novamente a praça no espaço central das  mobilizações e manifestações operárias, o que a imprensa noticiou como um “movimento popular  extraordinário”.

Com o crescimento de Manaus e o consequente espraiamento do solo urbano, a Praça do Comércio foi lentamente cedendo espaço como lócus prioritário das concentrações e mobilizações populares e operárias. A Praça do Comércio, no entanto, jamais saiu de cena e, mesmo hoje, ainda é um importante espaço de manifestações, ao lado das praças da Saudade e São Sebastião, assim como em outros momentos dividiu essa função com o Teatro Alcazar ou o ginásio do Olímpico Clube. Como na Praça do Comércio, em Manaus, a história e memória do trabalho e dos trabalhadores impregnam os espaços da cidade ressignificando-os com suas vivências, aspirações e lutas, e incrustando neles memórias silenciadas que precisam vir à tona.

Notícia sobre manifestação, em janeiro de 1911, na Praça do Comércio de estivadores e carroceiros em greve. Correio do Norte, 5 de janeiro de 1911. Hemeroteca Digital Brasileira


Para saber mais:

  • DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus; Valer, 1999.
  • COSTA, Deusa. Quando o viver ameaça a ordem urbana: trabalhadores de Manaus (1890/1915). Manaus: Valer/Fapeam, 2014.
  • MESQUITA, Otoni Moreira de. Manaus, história e arquitetura, 1852-1910. Manaus: Edua, 1997.
  • PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus (1899-1925). 3ª ed. Manaus: Edua, 2015.
  • PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto; PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Mundos do trabalho na cidade da borracha: trabalhadores, lideranças, associações e greves operárias em Manaus (1880-1930). Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2017.

Crédito da imagem de capa: Praça do Comércio, circa 1953. Domínio público.  Disponível em: https://www.facebook.com/Manausdeantigamente/


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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