Lugares de Memória dos Trabalhadores #36: Matte Larangeira, Laguna Carapã (MS) – Vitor Wagner Neto de Oliveira



Vitor Wagner Neto de Oliveira
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul



Na fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, a exploração da erva-mate foi uma das primeiras atividades econômicas de características capitalistas que “abriu” a região ao mercado regional e internacional. Área até então de domínio indígena, essa região que inclui o atual estado de Mato Grosso do Sul passou por profundas transformações entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Empreendimentos dedicados à exploração da erva proliferaram pela tríplice fronteira. Em sua maioria eram espécies de enclaves industriais semi-autônomos, frequentemente transnacionais, com leis, códigos e moedas próprios.

No sul de Mato Grosso, uma empresa em especial se tornou o maior empreendimento deste tipo. A Cia. Matte Larangeira teve sua origem em 1874, quando Thomaz Larangeira, funcionário da comissão de demarcação de fronteiras após a Guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai, começou a explorar a erva-mate do lado paraguaio. Em 1882, o governo do Império do Brasil concedeu-lhe autorização para exploração de grande extensão de terras no sul de Mato Grosso. A renovação e ampliação constante das concessões de terras continuou durante o período republicano, graças às relações estabelecidas com famílias que dominavam a política do Mato Grosso, como os Murtinho, acionistas da empresa desde 1891. Em 1902, o controle da empresa passou para o grupo Francisco Mendes & Cia e a matriz estabeleceu-se definitivamente em Buenos Aires. No Brasil, a vila de Campanário, inaugurada em 1921 no município de Ponta Porã, tornou-se o principal centro administrativo e de oficinas da Matte Larangeira.

Assim como em outros empreendimentos ligados à exploração da erva-mate, muitos dos trabalhadores que extraiam, beneficiavam (cancheavam) e transportavam o produto nos ervais da Matte Larangeira eram arregimentados entre os indígenas guarani e kaiowa que dominavam tradicionalmente o uso da planta. Grande parte trabalhava em família, recebendo por produção. O porto de Posadas, na província argentina de Misiones, era o principal centro de contratação de trabalhadores não indígenas, em particular paraguaios. Esses trabalhadores eram contratados por intermediários, os conchavadores, que além de antecipar uma parte do salário, eram responsáveis pelo transporte e vigilância dos trabalhadores até seu embarque para os ervais.


Nos ervais da empresa, o dialeto corrente era o guarani. A “moeda” em que se pagavam os vales e se consumia nos bolichos (pequeno comércio de secos e molhados e pontos de encontro para jogar e beber) era o giro, um tipo de “papel” emitido pela empresa que circulava por toda a região. Existia ainda o sistema do barracão, em que o trabalhador era pago em mercadoria fornecida pela própria empresa, endividando-se, quase sempre. Estimativas indicam que, em seu auge, até 10 mil trabalhadores foram empregados na Matte Larangeira.


Ao longo dos anos, as fugas tornaram-se uma das principais formas de resistência dos trabalhadores diante das opressivas condições impostas pela empresa. Era um grande risco diante das violentas forças de vigilância da Matte Larangeira e da Força Pública do Estado, sempre dispostas a “caçar” e prender os “infratores”. A União dos Trabalhadores de Campo Grande chegou a denunciar ao recém criado Ministério do Trabalho nos anos 1930 as condições de trabalho que levavam à fuga dos trabalhadores. Sabotagens na produção e lutas pelo controle do tempo também foram comuns, em particular entre os trabalhadores da extração. Muitas vezes essas ações provocaram alterações importantes nas relações de trabalho na empresa

Os conflitos, frequentemente violentos, entre a Matte Larangeira e pequenos produtores pela posse da terra na região também foram recorrentes. A tensão se intensificou a partir de 1916, quando o Estado deu garantias legais para a permanência de posseiros já estabelecidos. Em 1932, posseiros e pequenos produtores chegaram a organizar a Liga dos Combatentes em Ponta Porã, que promovia campanha contra o monopólio de arrendamentos por parte da empresa

Além disso, os processos migratórios para a região também enfraqueceram o monopólio da empresa sobre a terra. Em 1943, no contexto da campanha da “Marcha para o Oeste” do Estado Novo, o governo de Getulio Vargas criou a Colônia Agrícola Nacional de Dourados, cedendo glebas para migrantes nordestinos, e cancelou a concessão de terras para a Matte Larangeira. No final da década de 1940 a empresa deixou de explorar os ervais na região, mantendo, contudo, ervais na Argentina e a sede em Buenos Aires. No Mato Grosso permaneceu com extração de madeira até o ano de 1957.

Para operação no imenso território que compunha seus domínios, a Matte Larangeira implantou diversos portos e vilas, sendo que algumas se tornaram cidades. Os prédios, residências e armazéns da antiga Vila Campanário são hoje patrimônio da Fazenda Campanário na rodovia MS-156, no município sul-mato-grossense de Laguna Carapã. A fazenda, de 37 mil hectares, é um típico latifúndio moderno do agronegócio em uma região de alta concentração fundiária. Mas os vestígios arquitetônicos da Vila Campanário também são lugares de memória do trabalho e da resistência dos povos locais. Resistência atualizada pela luta contemporânea de novos sujeitos como os sem-terra e os indígenas expulsos dos seus territórios.

Tariferos transportando o raído, fardo de erva-mate (década de 1930).
Acervo do jornal Amambai Notícias.


Para saber mais:

  • ARRUDA, Gilmar. Frutos da terra: os trabalhadores da Matte-Larangeira. Londrina: Editora UEL, 1997.
  • GUILLEN, Isabel Cristina Martins. O imaginário do sertão: lutas e resistências ao domínio da Companhia Matte Larangeira (Mato Grosso: 1890). Tese (Doutorado em História). Campinas: IFCH/UNICAMP, 1991.
  • OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. “Sin él, en el Chaco no hay ingenio, ni obraje, ni algodonal”: o mundo do trabalho nas fronteiras do Cone Sul. In: ESSELIN, Paulo Marcos e FONSECA, Vinicius Rajão da (Orgs.). O expansionismo brasileiro sobre a Bacia Platina e a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Porto Alegre: PPGH; FCM, 2019.
  • QUEIROZ, Paulo Roberto Cimó. “A Companhia Mate Laranjeira, 1891-1902: contribuição à história da empresa concessionária dos ervais do antigo sul de Mato Grosso”. Territórios e Fronteiras. 8 (1), 2015.
  • Filme Selva trágica (1963), direção Roberto Farias.  https://www.youtube.com/watch?v=G_4NUUOAcmg

Crédito da imagem de capa: Trabalhadores e moradores de Campanário (década de 1920). Arquivo Público Estadual de Mato Grosso do Sul.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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