O fazer do tempo e da história: à sombra de E. P. Thompson – Fady Labib



O fazer do tempo e da história: à sombra de E. P. Thompson



Vários anos atrás, uma questão inútil sobre a natureza do tempo serviu de base para uma obsessão que ainda me domina. Pouco depois de consultar a historiografia sobre o tema em busca de respostas, deparei-me pela primeira vez com o trabalho de E.P. Thompson – ou melhor dizendo, isso me seria inevitável.

Qualquer pessoa ao abrir um livro sobre a questão do tempo, mesmo que a obra não seja historiográfica, provavelmente encontrará pelo menos uma menção a E.P. Thompson nas notas de rodapé. Seu artigo seminal “Time, Work-discipline and Industrial Capitalism” (1967) continua a ser uma referência de caráter quase mítico para qualquer pessoa interessada no estudo do tempo. Ao descobrir esse uso mais abrangente de Thompson, fui inspirado a escrever minha monografia de bacharelado sobre seu impacto nesse campo. Naquela época, não pude prever a influência que E.P. Thompson teria sobre mim, definindo não apenas meus futuros interesses de pesquisa, mas também contribuindo em minha motivação para escrever história, antes de tudo.

Poucos artigos ganharam nome tão adequado como “Tempo, Disciplina de Trabalho e Capitalismo Industrial”, um trabalho ambicioso que traça um fio condutor convincente entre esses elementos. Para Thompson, o relógio mecânico permitiu uma nova forma de trabalho, orientada para medir o tempo gasto, e não a tarefa a ser cumprida. Isso ajudou a moldar o novo ideal de disciplina temporal originado na burguesia e nos círculos puritanos – a famosa ideia de que “tempo é dinheiro”. Num movimento que Thompson chama de “casamento de conveniência”, ambas as partes se encarregaram, então, de inculcar na classe trabalhadora esta mesma disciplina temporal, preparando assim o terreno para a ascensão do capitalismo industrial na Inglaterra.

Thompson não foi o primeiro a fazer essas conexões. Em seu “Temps de l’Église et temps du marchand” (1960), Jacques Le Goff fez conjecturas semelhantes sobre as relações entre religião e comércio na construção do regime temporal moderno. No entanto, a abordagem de Thompson permanece única por seu esforço em tratar a questão a partir de uma perspectiva marxista. Praticamente não havia estudos sobre isso desde a época de Marx, apesar da importância central do tempo para a teoria da mais-valia. Segundo esta, o valor não depende da quantidade de tempo concreto gasto na produção de uma mercadoria, mas do “tempo de trabalho socialmente necessário para a sua produção”. De acordo com Moishe Postone, isso constitui um padrão de produtividade invisível e aparentemente objetivo para o operário, que trabalha para a vantagem dos capitalistas que os empregam.1

Para Thompson, entretanto, tais considerações teóricas não eram tão importantes. Em vez disso, “Time” parece implicitamente baseado na obra de Antonio Gramsci. A história do tempo em Thompson é, em sua essência, a história de uma hegemonia cultural. Gramsci teorizou a respeito de como intelectuais cultivam o “consentimento espontâneo” entre a população, com o objetivo de complementar as formas físicas de coerção que mantêm o status quo capitalista. Thomas Bates considera a teoria de Gramsci como uma crítica à historiografia excessivamente positivista de sua época, privilegiando, ao contrário, fatores sociais e culturais.2 A hegemonia pretendia explicar a “aparente ‘indiferença’ das massas”, que teria adiado indefinidamente a revolução. A tarefa do intelectual marxista era, então, revelar as estruturas ocultas da hegemonia e contribuir para moldar uma nova identidade para a classe trabalhadora.

Não é difícil perceber como Gramsci influenciaria Thompson para muito além de seu artigo sobre o tempo. Em 1959, o próprio Thompson criticaria de forma semelhante “a década da Grande Apatia” que acabara de viver. Somente através de uma nova consciência de classe, baseada na compreensão das estruturas hegemônicas que os rodeiam, os trabalhadores poderiam se emancipar. Com [essa] convicção, ele assumiu o papel de intelectual marxista e tornou-se uma figura de liderança na Nova Esquerda Britânica. Tal como Gramsci antes dele, Thompson evitava enxergar o capitalismo apenas através de uma análise materialista excessivamente dogmática da economia. Em vez disso, ele deu lugar central à cultura em sua análise da luta de classes.

Nesse sentido, a obra de Thompson existia em antagonismo evidente com o marxismo de sua época. À sombra da Guerra Fria, a Nova Esquerda resistiu ao stalinismo, bem como ao sentimento anticomunista que tomava conta do Ocidente. Ao retornar aos escritos de um Marx mais jovem, Thompson quis conceitualizar uma nova forma de socialismo que governasse de baixo para cima, resistindo assim à tendência autoritária do Estado centralizado. Para ele, o papel da Nova Esquerda não era governar, mas permitir que a própria classe trabalhadora se unisse em sua luta para desmantelar o Estado. Tal como Gramsci antes dele, Thompson concentrou-se nos obstáculos culturais e ideológicos presentes no caminho para o socialismo.

Na prática, isso significou escrever a história da classe trabalhadora através de suas experiências e de sua cultura. No centro de tal abordagem esteve sempre a agência dos trabalhadores, “o grau em que eles contribuíram, através de esforços conscientes, para a construção da história”. De acordo com Alan Dawley, isso permitiu que Thompson utilizasse a lente materialista histórica para abordar temas sociais que antes haviam sido tratados de forma reducionista.3 Wade Matthews, por sua vez, argumenta que há um foco exagerado na cultura em detrimento da análise das realidades materiais que a tornam possível.4 Como os acadêmicos costumam fazer, podemos discutir esses pontos indefinidamente. O que está claro, porém, é que Thompson ampliou o âmbito do materialismo histórico num momento crucial. Face aos fortes contrastes ideológicos da Guerra Fria, Thompson centrou-se nas experiências dos humanos que antes estavam meramente condenados a se submeter à história escrita para eles por teóricos marxistas e liberais. Afinal, “O homem faz a sua própria história”.

Rastrear a influência de Thompson em todo o campo dos estudos do tempo seria uma tarefa impossível no escopo deste breve ensaio. Para os leitores interessados, o recente artigo de Vanessa Ogle, “Time, Temporality and the History of Capitalism” (2019) pode funcionar como uma excelente introdução ao impacto causado por aquele historiador. É claro, porém, que o artigo de Thompson está presente em muitas outras páginas além daquelas escritas dos historiadores do tempo. Ao ler uma história do trabalho, da disciplina ou do consumismo, seja na Europa ou noutro lugar, qualquer pessoa encontrará referências ao “Tempo” de Thompson. Quer se trate de Jan de Vries escrevendo sobre a Revolução Industrial, ou de Keletso E. Atkins sobre a colonização, bem poucos falarão sobre o tema do tempo de trabalho sem invocar o nome de Thompson. Desde o seu lançamento, historiadores têm questionado e matizado aspectos do artigo de Thompson a partir de muitas perspectivas diferentes. O que têm em comum, contudo, é o desejo contínuo de responder às questões inicialmente postas: como o tempo “se tornou” dinheiro e, mais importante, como a classe trabalhadora veio a internalizar esse novo ideal?

Para Bryan D. Palmer, o impacto de E.P. Thompson – e da Nova Esquerda de forma mais ampla – não deve ser subestimado. Em suas palavras: “não nos apoiamos tanto nos ombros desses historiadores, em sua diversidade coletiva e em termos de suas realizações historiográficas, mas ocupamos suas sombras”.5 Embora, de fato, os historiadores atuais tenham uma grande dívida para com o seu trabalho, não ocupamos simplesmente suas sombras; estamos brilhando com luz própria. A geração atual assumiu o papel de escrever a história a partir de baixo, e está indo mais longe do que nunca. Assistimos à orgulhosa proclamação do “fim da história”, apesar de os mesmos mecanismos de exploração continuarem a dominar a maioria da população mundial. Tal como antes, o intelectual crítico sabe que o único caminho a seguir é examinar mais profundamente os tentáculos de longo alcance da hegemonia cultural, bem como da hegemonia patriarcal e racial. Não para governar, mas para permitir a derrubada democrática de governos injustos.

E. P. Thompson. Imagem do documentário “Rear Window: A Life of Dissent – The Life and Work of E. P. Thompson”, da Telesur. Disponível em: https://www.esquerda.net/artigo/e-p-thompson-contemporaneo/70718

Notas

1 Moishe Postone, Time, Labor, and Social Domination: A Reinterpretation of Marx’s Critical Theory (Cambridge, MA: Cambridge University Press, 1993), 209–16.
2 Thomas R. Bates, “Gramsci and the Theory of Hegemony,” Journal of the History of Ideas 36, no. 2 (1975): 355–60.
3 Alan Dawley, A Preface to Synthesis,” Labor History 29, no. 3 (1988): 372.
4 Wade Matthews, “The Poverty of Strategy: E.P. Thompson, Perry Anderson, and the Transition to Socialism,” Labour / Le Travail 50 (2002): 241.
5 Bryan D. Palmer, “Reasoning Rebellion: E.P. Thompson, British Marxist Historians, and the Making of Dissident Political Mobilization, ” Labour / Le Travail 50 (2002): 187–88.


The making of time and of history: In E.P. Thompson’s shadow



Several years ago, an idle question on the nature of time formed the basis for an obsession which still grips me. Shortly after consulting the historiography of time in search of answers, I first ran into the work of E.P. Thompson – perhaps more accurately, I could not possibly escape it.

Whoever opens a book on time, even outside the niche of time historians, will almost certainly find at least one reference to E.P. Thompson in the footnotes. His seminal article “Time, Work-discipline and Industrial Capitalism” (1967) remains a reference work of almost mythical status to anyone interested in the study of time. Upon discovering this widespread use of Thompson, I was inspired to write my bachelor’s thesis on his impact within this field. Back then, I could not have foreseen the influence that E.P. Thompson would have on me: defining not only my future research agenda, but also helping give shape to my motivation for writing history in the first place.

Few articles are as aptly named as “Time, Work-discipline and Industrial Capitalism,” with the ambitious work drawing a convincing thread between these elements. For Thompson, the mechanical clock allowed for a new form of labour, one oriented on time spent instead of the task to complete. This helped shape the new ideal of time discipline originating among the bourgeoisie and in puritanical circles – the all too common idea that time equals money. In what Thompson calls a “marriage of convenience,” both parties consequently tasked themselves with inculcating the working class with this same time discipline, thus setting the stage for the rise of industrial capitalism in England.

Thompson was not the first to make these connections. In his “Temps de l’Église et temps du marchand” (1960), Jacques Le Goff similarly theorized on the connections between religion and commerce in the construction of the modern time regime. Yet Thompson maintains a unique position due to his attempts at tackling the issue from a Marxist perspective. Such studies had mostly not been attempted since the time of Marx, despite the centrality of time for Marx’ theory of surplus value. In it, value depends not on the amount of concrete time spent producing a commodity, but on the “labour-time socially necessary for its production.” According to Moishe Postone, this forms an invisible, seemingly objective standard of productivity for the labourer, working to the advantage of the capitalists who employ them.1

For Thompson however, such theoretical considerations did not take centre stage. Instead, “Time” seems to be implicitly based on the work of Antonio Gramsci. Thompson’s story of time is in essence that of a cultural hegemony. Gramsci theorized this as intellectuals cultivating “spontaneous consent” among the population, to complement the physical forms of coercion maintaining the capitalist status quo. Thomas Bates considers Gramsci’s theory as a critique of the overly positivist historiography of his time, by instead centring social and cultural factors.2 Hegemony was meant to explain the “apparent ‘indifference’ of the masses” which had led to the indefinite postponement of revolution. The task of the Marxist intellectual, then, was to uncover the hidden structures of hegemony, and to help shape a new identity for the working class.

It’s not hard to see how Gramsci would influence Thompson far beyond his article on time. In 1959, Thompson himself would similarly rail against “the decade of the Great Apathy” he had just lived through. Only through a new class consciousness, based on understanding the hegemonic structures surrounding them, could labourers come to emancipate themselves. With conviction, Thompson took on the mantle of the Marxist intellectual, and became a figurehead of the British New Left. Just as Gramsci before him, Thompson would shy away from viewing capitalism solely through an overly dogmatic materialist analysis of economics. Instead, he centred culture in his analysis of class struggle.

In this sense, Thompson’s work existed in an overt antagonism with the Marxism of his time. In the shadow of the Cold War, the New Left resisted Stalinism as well as the anti-communist sentiment which had gripped the West.By going back to the writings of a younger Marx, Thompson attempted to conceptualise a new form of socialism which governed from the bottom up, thus resisting the centralised state’s tendency to authoritarianism. For Thompson, the role of the New Left was not to govern, but to allow the working class itself to unite in its struggle to dismantle the state. Just as Gramsci before him, he would focus on the cultural and ideological obstacles on the road to socialism.

In practice, this meant writing the history of the working class through their lived experiences and their culture. At the core was always the agency of labourers, “the degree to which they contributed, by conscious efforts, to the making of history.” According to Alan Dawley, this allowed Thompson to utilize a historical materialist lens to tackle social themes which had been treated reductively previously.3 Wade Matthews, on the other hand, argues an exaggerated focus on culture goes at the cost of analysing the material realities which make it possible.2 As academics are wont to do, we can argue these points endlessly. What is clear however, is that Thompson had broadened the scope of historical materialism at a pivotal moment. In the face of the stark ideological contrasts of the Cold War, Thompson had centred the experiences of the humans who were beforehand doomed to merely undergo the history written out for them by both Marxist and liberal theoreticians. After all: “Man makes his own history.”

To trace the influence of Thompson throughout the field of time studies would be an impossible task to accomplish within the scope of this short essay. For the interested reader, Vanessa Ogle’s recent review article, “Time, Temporality and the History of Capitalism” (2019) can function as an excellent introduction into his impact. What is clear, however, is that Thompson’s article reaches far beyond the pages of time historians. Whoever reads a history of labour, of discipline or of consumerism, whether in Europe or elsewhere, will find references to Thompson’s “Time.” Whether it’s Jan de Vries writing on the Industrious Revolution, or Keletso E. Atkins on colonization: very few will speak on the subject of labour time without invoking Thompson’s name. Since its release, historians have questioned and nuanced many aspects of Thompson’s article from many different perspectives. What they share in common however is the continuing desire to answer the questions first put forth in it: how did time become money, and more importantly, how did the working class come to internalize this new ideal? 

For Bryan D. Palmer, the impact of E.P. Thompson, and the New Left more broadly, cannot be underestimated. In his words: “We do not so much stand on the shoulders of these historians, in their collective diversity and in terms of their historiographic accomplishment, as we occupy their shadows.”5 While yes, current historians do owe a great deal of debt to their work, we do not simply occupy their shadows – we are shining our own lights. The current generation has taken up the mantle of writing history from below, and is pushing it further than ever before. We have seen the proud proclamation of the end of history, despite the same mechanisms of exploitation continuing to grip a majority of the world’s population. Just as before, the critical intellectual knows that the only way forward is to further examine the far-reaching tentacles of cultural, as well as patriarchal and racial hegemony. Not to govern, but to allow for the democratic dismantling of unjust government.

E. P. Thompson. Imagem do documentário “Rear Window: A Life of Dissent – The Life and Work of E. P. Thompson”, da Telesur. Available at: https://www.esquerda.net/artigo/e-p-thompson-contemporaneo/70718

Notes

1 Moishe Postone, Time, Labor, and Social Domination: A Reinterpretation of Marx’s Critical Theory (Cambridge, MA: Cambridge University Press, 1993), 209–16.
2 Thomas R. Bates, ‘Gramsci and the theory of hegemony,’ Journal of the History of Ideas 36, nr. 2 (1975): 355–60.
3 Alan Dawley, ‘A Preface to Synthesis,’ Labor History 29, no. 3 (1988): 372.
4 Wade Matthews, ‘The Poverty of Strategy: E.P. Thompson, Perry Anderson, and the Transition to Socialism,’ Labour / Le Travail 50 (2002): 241.
5 Bryan D. Palmer, ‘Reasoning Rebellion: E.P. Thompson, British Marxist Historians, and the Making of Dissident Political Mobilization,’ Labour / Le Travail 50 (2002): 187–88.