O Grande Impacto e o Rico Legado de Edward Thompson
Neville Kirk (Reino Unido)
Professor Emérito de História Social e História do Trabalho da Manchester Metropolitan University, Reino Unido
Edward Palmer Thompson reforçou minha crença, forjada durante minha criação na classe operária, de que não era suficiente ver o presente e a história apenas ou principalmente a partir da perspectiva dos ricos, da elite dominante, do establishment, da(s) classe(s) dominante(s). Pelo contrário, para se obter uma visão mais precisa, equilibrada e abrangente, também era necessário e vital descobrir os de baixo, pagar-lhes o devido respeito e influência, e divulgar seus pontos de vista e experiências. São os pensamentos e ações dos governados – a(s) classe(s) operárias(s), os trabalhadores, camponeses e escravizados, homens e mulheres – e especialmente suas visões e ações radicais e progressistas que desafiam seus “superiores”, principalmente aqueles mais conservadores. Isso foi o que fez Thompson não apenas em sua obra mais famosa, The Making of The English Working Class (1963), mas ao longo de sua vida como historiador radical. Na década de 1960, ele desempenhou um papel fundamental na concretização do movimento da história vista de baixo, que se espalhou como um incêndio pelo Reino Unido, pela América do Norte, Europa, Austrália e Nova Zelândia, pelo Brasil e outras partes do Sul Global. Desde então, tornou-se um fenômeno mundial, e que assim seja por muito tempo! Outras figuras-chave no movimento da história vista de baixo no Reino Unido e na América do Norte durante as décadas de 1960 e 1970 incluíam Dorothy Thompson – esposa de Edward, companheira, e ilustre historiadora por mérito próprio – Raphael Samuel, Sheila Rowbotham, John Saville, David Montgomery, Herbert Gutman, Greg Kealey e Bryan Palmer.
O movimento da história vista de baixo influenciou muito meu próprio trabalho como historiador. Após meu bacharelado em Birmingham com Dorothy Thompson (1965-1968) e meu mestrado em Warwick com Edward e seus colegas (1968-1969), tornei-me um doutorando em Pittsburgh com David Montgomery (1970-1974). Desde então tenho ensinado e pesquisado no Reino Unido, principalmente em Manchester, nos EUA, no Canadá e na Austrália. Durante esses anos, procurei escrever estudos sobre as pessoas da classe trabalhadora – seus modos de vida, suas crenças, relações com outros grupos sociais, sua política. Minha pesquisa concentrou-se na região de Manchester (onde nasci e cresci), na Grã-Bretanha, no Reino Unido, na América do Norte e na Austrália. O estudo da classe, incluindo a consciência de classe radical e formas de classe mais defensivas, conservadoras e populistas, é uma característica central do meu trabalho publicado sobre a Grã-Bretanha moderna e o Reino Unido, e de meu trabalho comparativo e transnacional sobre a Grã-Bretanha, os EUA e Austrália. O incentivo e a inspiração vindos de Edward e Dorothy Thompson e de David Montgomery, que foi pioneiro como historiador do trabalho organizado nos EUA, foram as principais influências responsáveis por meu envolvimento de longa data com a história das classes e do trabalho em geral.
Talvez também interesse aos leitores saber que a descoberta da história do trabalho e da classe trabalhadora (iniciada em Birmingham com Dorothy), permitiu-me compreender muito melhor minha própria educação de classe. Meu pai era carpinteiro e minha mãe era operária numa fábrica de algodão antes de se tornar dona de casa. A família nuclear votava no Partido Trabalhista, mas a família extensa incluía conservadores, bem como trabalhistas e socialistas. Grande parte da história que aprendi na escola e na universidade fazia pouco sentido e não me atraía. Foi assim até conhecer Dorothy, em meu último ano de graduação, e devorar avidamente fontes primárias sobre a vida e a política da classe trabalhadora, sob a forma do movimento cartista que exigia direito de voto para homens adultos durante as décadas de 1830 e 1840. De repente a história da classe trabalhadora passou a ter importância para mim, e então tomei a decisão consciente de desenvolver meus estudos. O passado, aparentemente enfadonho e remoto, começou a fazer sentido. Fiquei até emocionado ao estudar a história da natureza e do apelo do conservadorismo popular e do populismo de direita. Estes, é claro, continuam a atrair um grande número de trabalhadores e pequenos produtores, incluindo membros de minha própria família extensa.
Além disso, o ilustre historiador de esquerda John Saville aconselhou-me que não bastava apenas estudar a história a partir de baixo, e que para se compreender a sociedade de forma mais abrangente, e para agir de acordo, é necessário reunir e conectar as histórias “de baixo e de cima”. Isso envolve um olhar para o “povo” da classe trabalhadora e suas relações com o Estado, os principais partidos políticos, os empregadores e outros grupos sociais. Assim podemos desenvolver uma compreensão mais ampla da sociedade e das nossas posições nela. Essa é a lição que nos ensinou Saville, e o ainda mais famoso historiador Eric Hobsbawm, tão popular no Brasil. Dessa forma, minhas duas publicações recentes (sobre a Grã-Bretanha e o Reino Unido assolados pela crise desde a “revolução reacionária” de Thatcher na década de 1980) prestaram muito mais atenção às opiniões e ações “dos de cima” se comparadas a meu trabalho anterior. O primeiro, A Nation in Crisis, foi publicado pela Bloomsbury em outubro de 2023; o segundo, Britain and its Three Crises, será publicado pela Liverpool University Press em março de 2024.
De outubro de 1988 a junho de 1989, Edward foi pesquisador sênior do programa Simon Fellowship na Universidade de Manchester. Àquela altura ele já era muito famoso, em parte por seu excelente trabalho e reputação como historiador radical, mas principalmente por seu papel fundamental na criação e desenvolvimento do movimento pacifista da década de 1980, especialmente no Desarmamento Nuclear Europeu (END). Certa noite do início de maio de 1989, ele veio de Manchester para jantar comigo, com minha companheira Kate, e com nossos dois filhos pequenos Bob e Ella, em nossa casa em New Mills. A cidade é um antigo centro industrial em Derbyshire, com cerca de oito mil habitantes apenas, situada umas quinze milhas a leste de Manchester, em direção a Sheffield, e nos limites do Peak District, uma área para trilhas e caminhadas, com charnecas e afloramentos rochosos. Edward sentou-se em nosso pequeno gramado no quintal e se começou a ler provas de um trabalho. Acho que comentei que ele estava trabalhando demais e o aconselhei a relaxar um pouco. Não me lembro da resposta, mas quando Kate anunciou que estava saindo para distribuir panfletos do Partido Trabalhista para as próximas eleições locais, ele imediatamente se levantou e foi animado panfletar com ela. Ele estava ansioso para falar com a população local do conjunto habitacional da vizinhança.
Depois do jantar, Edward e eu nos aventuramos num pub local. Achei que seria tudo tranquilo, mas de alguma forma havia-se espalhado a notícia de que uma pessoa muito famosa estava entre nós (eu não tinha contado a ninguém de fora da família). Poucos minutos depois de pedirmos uma bebida, uma turma composta em sua maioria por jovens locais se reuniu ao nosso redor e perguntou se poderiam se sentar. Edward e eu esperávamos ter uma conversa tranquila sobre sua pesquisa, mas ele logo foi cercado por um grupo ávido por saber tudo sobre ele, especialmente seu trabalho pela paz. Edward, muito cortês e generoso, conversou com eles por cerca de uma hora. Parecia cansado, mas não hesitou em responder perguntas, em beber uma cerveja e contar uma piada; perguntou-lhes sobre seus próprios interesses e os incentivou a abraçarem, se já o tivessem feito, a causa da paz. Foi uma ótima noite para todos. Nos dias e semanas que se seguiram, vários dos envolvidos contataram-me e me pediram que agradecesse a Edward seu tempo com eles. Sua vontade de panfletar, de conversar com as pessoas no pub, e sua amizade comigo e com minha família eram típicas de sua generosidade, sua natureza gregária e seu desejo de não se refugiar na academia, mas sim de interagir com o público. Por fim, sua coragem, modéstia e generosidade foram reveladas quatro anos mais tarde quando, embora muito doente, ele ainda encontrou tempo para escrever uma carta cumprimentando-me pela crítica ao “subjetivismo e idealismo” pós-modernos, em comparação com seu “resmungo de protesto” contra eles.
O trabalho de Edward ainda constitui um ponto essencial de referência e incentivo a todos aqueles interessados em tradições radicais progressistas, em humanismo socialista, igualdade, paz internacional, oposição à guerra, atrocidades e genocídio, e na relevância contínua da consciência de classe radical e de vozes e forças radicais alternativas – especialmente dos de baixo – opostas à globalização capitalista e ao neoliberalismo. Recordar, chamar a atenção dos jovens e, em geral, acatar os legados de Edward é uma forma de revitalizar as forças de libertação, transformação e paz no mundo de hoje, tomado pela crise capitalista tardia. Em particular, penso que existe uma necessidade internacional premente de criar e desenvolver novas formas de organização e comunicação de esquerda, capazes de desafiar o enorme e assustador poder e a influência dos canais autoritários de comunicação e “informação” da direita. Por Thompson. O fator humano e os valores e práticas humanistas foram centrais em sua vida e obra. E continuam mais válidos ainda nas sociedades fraturadas, anômicas, repugnantemente desiguais, violentas e reificadas em que somos forçados a viver, mas que esperamos mudar.
Disponível em : https://www.marxists.org/portugues/thompson/index.htm
Tradução: Eneida Sela
Edward Thompson’s Major Impact and Rich Legacy
Neville Kirk (UK)
Emeritus Professor of Social and Labour History at Metropolitan Manchester University (UK)
Edward Palmer Thompson strengthened my belief, forged during my working-class upbringing, that it was not enough to see present reality and history solely or mainly from the perspective of the rich, the ruling elite, the establishment, the ruling class(es). Rather, to get a more accurate, balanced and comprehensive view, it was necessary and vital also to discover, afford due respect and influence to, and publicise views and experiences ‘from below’. The latter are the thoughts and actions of the ruled, the working class (es), of workers, peasants and slaves, of men and women, especially their radical and progressive views and actions which challenge in one way or another those of their mainly conservative ‘betters’. This was what Edward Thompson did, not only in his most famous work, The Making of The English Working Class (1963), but throughout his life as a radical historian. In the 1960s he played a key role in bringing into life the ‘history from below’ movement. From that decade onwards that movement spread like wildfire across the UK, North America, Europe, Australia and New Zealand, Brazil and other parts of the Global South. It has since become a global phenomenon, and long may it be so! Other key figures in ‘history from below’ movement in the UK and North America in the 1960s and 1970s included Dorothy Thompson, Edward’s wife, partner and distinguished historian in her own right, Raphael Samuel, Sheila Rowbotham, John Saville, David Montgomery, Herbert Gutman, Greg Kealey and Bryan Palmer.
The ‘history from below’ movement has greatly influenced my own work as a historian. Following my BA in Birmingham, with Dorothy Thompson (1965-8), my MA at Warwick, with Edward and his colleagues (1968-9), I became a PhD student in Pittsburgh with David Montgomery (1970-4). Since then I have taught and researched in the UK, mainly in Manchester, the USA, Canada and Australia. During these years I have tried to write studies of working-class people- their ways of life, beliefs, relations with other social groups and their politics. My research has focussed on the Manchester region (my place of birth and upbringing), Britain, the UK, North America and Australia. The study of class, including radical class awareness and more defensive, conservative and populist forms of class, has been a central feature of my published work on modern Britain and the UK, the USA and my comparative and transnational work on Britain, the USA and Australia. Edward and Dorothy Thompsons’ encouragement and inspiration, and that of David Montgomery, who was the foremost historian of organised labour in the USA, have been the main formative influences of my longstanding engagement with class and labour history in general.
Readers may also be interested to know that discovering labour and working-class history, first at Birmingham with Dorothy, enabled me to make far more sense of, my own working-class upbringing. My father had been a carpenter and my mother a cotton operative turned housewife. The family was Labour voting, but the extended family included Conservatives as well as Labourites and socialists. Much of the history I had been taught at school and university had made little sense and appeal to me. That was the case until I met Dorothy in my final year as an undergraduate and eagerly devoured the primary sources on working-class life and politics, in the form of the Chartist movement demanding the vote for adult men during the 1830s and 1840s. Suddenly, history-of a working-class type-mattered– and I made a conscious decision to develop my studies. The ‘personal’ and seemingly somewhat boring and remote ‘past’ became connected. I was even moved to study the history of the nature and appeal of the popular Conservatism and right-wing populism. These, of course, continue to attract large numbers of workers and small producers, including members of my own extended family.
The distinguished left historian, John Saville, furthermore, advised me and others that it was not enough solely to study history ‘from below’ and that in order to understand society more comprehensively and act accordingly, it is necessary to bring together, to engage, history ‘from below’ and history ‘from above’. This involves looking at the working-class ‘people’ and their relations with the state, mainstream political parties, employers and other social groups. As a result, we may develop a more ‘total’ understanding of society and our positions in it. This is the lesson that not only Saville but even more so, the famous historian Eric Hobsbawm, so popular in Brazil, taught us. My two current publications on crisis-ridden Britain and the UK since the Thatcher ‘reactionary revolution’ of the 1980s, accordingly have paid far more attention to views and actions ‘from above’ than those of my previous work. The first, A Nation in Crisis, was published by Bloomsbury in October 2023, while the second, Britain and its Three Crises, will be published by Liverpool University Press in March 2024.
From October 1988 to June 1989 Edward was a Senior Simon Research Fellow at the University of Manchester. By this time he had become very famous, in part because of his outstanding work and reputation as a radical historian, but mainly because of his key role in creating and developing the 1980s peace movement especially European Nuclear Disarmament (END). One evening, in early May 1989, he came from his Manchester base to have a meal with myself, my partner, Kate, and our two young children, Bob and Ella, in our home in New Mills. New Mills is a former industrial centre in Derbyshire, a small town of around 8, 00 people some 15 miles east of Manchester towards Sheffield and on the edge of the Peak District, a walking and climbing area of moorland and rocky outcrops. Edward sat on our small back lawn and busied himself reading proofs. I think that I told him that he was working too hard and advised him to relax a bit. I can’t remember his response, but when Kate announced that she was popping over the road to deliver Labour Party leaflets for the upcoming local elections, he immediately sprang to his feet and eagerly went off to leaflet with her. He looked forward to speaking with local people on the nearby housing estate.
After a meal, myself and Edward ventured out to a local pub. I thought that it would be very quiet, but, somehow, word seemed to have got around that the very famous person was in our midst (I hadn’t told anyone outside the family). Within minutes of ordering a drink, a crowd of mainly young local people gathered around us and asked if they could sit down. Edward and I had expected to have a quiet chat about his research, but he was soon surrounded by this group eager to know everything about him, especially his work for peace. Edward, very courteously and generously, engaged with them for an hour or so. He looked tired, but didn’t hesitate to answer questions, to enjoy a pint and share a joke, to ask them about their own interests and to encourage them to take up, if they had done so already, the cause of peace. A great evening was had by all. In the days and weeks that followed a number of those involved contacted me and asked me to thank Edward for his time. His eagerness to leaflet, to talk to people in the pub and his friendship towards myself and my family were typical of Edward’s generosity, gregariousness and his keenness not to retreat into academia but to enjoy engaging with members of the public. Finally, his courage, modesty and generosity were revealed four years later when, although very ill, he took time to write me a letter of congratulation on my critique of postmodernist ‘subjectivism and idealism’ in comparison with his ‘expostulatory squawk’ against them.
Edward’s work still constitutes an essential point of reference and encouragement for all those interested in progressive radical traditions, socialist humanism, equality, international peace, opposition to war, atrocities and genocide and the continuing, relevance of radical class consciousness and alternative, oppositional radical voices and forces to capitalist globalisation and neoliberalism, especially ‘from below’. Remembering, bringing to the attention of young people and generally taking on board Edward’s legacies is a way of re-energising the forces of liberation, transformation and peace in today’s late capitalist crisis-driven world. In particular, I think that there is a pressing international need to create and develop new, left-wing forms of organisation and communication capable of challenging the massive and frightening power and influence of authoritarian right-wing channels of communication and ‘information’. For Thompson. The ‘human factor’ and humanist values and practices were central to his life and work. This remains the case, even more so, in the ‘broken’, anomic, grossly unequal, offensive and reified societies in which we are forced to live, but hope to change.
Available at : https://www.marxists.org/portugues/thompson/index.htm