Thompson aos 100: uma perspectiva anglo-germânica
Stefan Berger (Alemanha)
Diretor do Instituto de Movimentos Sociais da Universidade do Ruhr, Bochum, Alemanha
Com tenros 23 anos de idade, iniciei uma bolsa Rhodes na Universidade de Oxford e me mudei da Universidade de Colônia – onde estudava, entre outros, com Eberhard Kolb, que despertou meu interesse pela história do movimento operário. Foi como adentrar um mundo novo, estranho e fascinante que parecia totalmente diferente do mundo universitário alemão em que havia entrado dois anos antes, e que também parecera um tanto estranho para um jovem que foi o primeiro de sua família a concluir o curso preparatório e a entrar na universidade. Cresci no bairro operário de uma empresa, e a maioria dos meus amigos, como eu, tínhamos origens numa classe operária qualificada. Meu pai era eletricista na gigante química Henkel, em Düsseldorf, onde também era sindicalista e apoiador do Partido Social-Democrata. Por isso, cresci em meio à classe trabalhadora e do movimento operário, e era lógico, portanto, que naquele mundo estranho da universidade eu me sentisse atraído pelo único tema que prometia familiaridade e continuidade com a minha vida anterior.
Em Oxford, iniciei um segundo bacharelado, mas após um semestre, meu então tutor, Tony Nicholls, facilitou minha entrada nos estudos de pós-graduação antes que eu concluísse a graduação. Logo encontrei o tema do doutorado: uma comparação entre o Partido Trabalhista Britânico e os Social-democratas Alemães. Ao mergulhar nessa nova tarefa, pela primeira vez me deparei com o nome E. P. Thompson. A leitura de The Making of the English Working Class e de seus muitos artigos seminais sobre a história do trabalho influenciou bastante meu próprio desenvolvimento intelectual. Fiquei fascinado pelo seu marxismo não ortodoxo, que parecia tão diferente daquele que eu conhecera antes na bibliografia sobre o movimento operário alemão produzida por historiadores da Alemanha Oriental comunista. Sua insistência no fato de as pessoas fazerem história em circunstâncias que não foram escolhidas por elas próprias parecia enfatizar não mais as estruturas descarnadas e as grandes teorias, mas as pessoas comuns em suas provações e tribulações.
Essa característica também o distingue do outro grande historiador marxista da Grã-Bretanha, Eric Hobsbawm, cujo trabalho eu já havia conhecido na Alemanha. Isso não foi coincidência, uma vez que sua forma de escrever história era mais semelhante à história social política que ganhou proeminência na Alemanha durante a década de 1970 e que é, principalmente, associada à chamada Escola de Bielefeld. Tal como alguns de seus integrantes, principalmente Hans-Ulrich Wehler, Hobsbawm estava interessado em estruturas e processos, nas relações entre economia, política e sociedade. Isso tornou suas histórias bem diferentes das de Thompson.
Curioso com o trabalho de Thompson, eu mal havia iniciado o doutorado quando vi o anúncio de uma palestra em Oxford, na qual ele falaria sobre o movimento europeu de desarmamento nuclear que ajudara a criar. Thompson encontrou no movimento pela paz um ideal político que substituiu seu compromisso anterior com o Partido Comunista. Aqui está, obviamente, outra grande diferença entre Thompson e Hobsbawm, que sempre se recusou a romper com o comunismo, enquanto o primeiro abandonou o partido por causa da Hungria em 1956 – como muitos outros membros do grupo de historiadores do Partido Comunista. Posteriormente, Thompson foi influente na Nova Esquerda, e suas escolhas políticas pareciam condizer com sua posição de acadêmico marxista antidogmático. Passei a admirá-lo não apenas como um estudioso inovador, mas também como um intelectual engajado. Seu compromisso com os processos pacifistas de base que iriam derrubar a Cortina de Ferro já me havia me tocado antes de eu conhecer seu ativismo nesse campo. No início da década de 1980, e tal como centenas de milhares de outras pessoas, eu participei nas grandes marchas a favor do desarmamento e contra a instalação de novos mísseis nucleares na Alemanha.
Conhecer Thompson pessoalmente no evento de Oxford em 1987 foi uma experiência arrebatadora. Nunca fui um grande fã da ideia de liderança carismática – tanto enquanto categoria analítica como conceito político – mas ele me pareceu uma personalidade verdadeiramente carismática, a única que conheci em minha vida até agora. Ele irradiava um magnetismo encantador e estabelecia uma ligação quase imediata com o seu público, o que não se devia apenas ao brilho intelectual, mas a um tipo de presença física que atingia instâncias emocionais e afetivas da audiência tanto quanto o intelecto dela.
E. P. Thompson discursando durante uma manifestação antinuclear em Oxford, 1980. Disponível em: https://controversia.com.br/2017/12/11/edward-palmer-thompson-uma-vida-extra-muros/
Saí daquele encontro convencido de ter encontrado ali um dos meus grandes modelos entre os historiadores, aos quais acrescentaria mais tarde Georg G. Iggers e Alf Lüdtke. Na verdade, eu ainda não tinha lido muito de Lüdtke quando descobri Thompson, mas depois disso inicie-me em seu estudo sobre os trabalhadores fabris e sua oposição fracassada à ditadura fascista na Alemanha. Logo descobri que a recepção inicial de Thompson no país se deu precisamente através de um grupo de historiadores do cotidiano – mais tarde os fundadores da antropologia histórica na Alemanha – que à época trabalhavam no Instituto Max-Planck de História, em Göttingen. Lüdtke foi um de seus representantes mais proeminentes. Eles se opunham à Escola de Bielefeld como os primeiros críticos de uma história social estrutural que deixava de fora os sujeitos, e encontraram em Thompson um aliado intelectual não apenas por seu marxismo antidogmático, mas também por seu esforço em contar a história das pessoas comuns e suas lutas quotidianas. A noção de Eigensinn de Lüdtke tornou-se um conceito-chave para todos aqueles que querem estudar o desejo das pessoas comuns de agir por conta própria e de maneira independente, contra todas as tentativas de controle sobre comportamento vindas de cima para baixo. Quando eu era um jovem aluno em Colônia, estudando com Kolb, encontrei uma história política que era historicista em sua perspectiva metodológica e voltada para os partidos e os acontecimentos políticos, sobretudo as revoluções. Como a maioria dos estudantes da minha geração, orientei-me “ideologicamente” para Bielefeld e admirava autores como Jürgen Kocka e o já mencionado Wehler.
Através de Thompson descobri então um mundo diferente, em que a política formal desempenhava um papel secundário; um mundo em que as estruturas e os processos não estavam ausentes, mas deixavam de ser o centro análise, ou o único fator de explicação da história. Assim, em meu próprio estudo sobre o Partido Trabalhista e os social-democratas, procurei incluir as vozes dos membros de base do partido, também atentando ao papel dos indivíduos na formação dos programas de seus respectivos partidos. No debate entre Alf Lüdtke e Marcel van der Linden sobre o papel da política formal na vida da classe trabalhadora, tomei o partido de van der Linden ao argumentar que não havia necessidade de se jogar fora a criança junto com a água do banho. A história do cotidiano e a antropologia histórica vinham desnecessariamente ignorando as organizações políticas, como partidos, sindicatos e sociedades cooperativas. A nova história do trabalho – eu estava convencido – tinha de equilibrar as contas, incorporando ideias como as de Thompson e Lüdtke ao estudo da política trabalhista formal. Essa história deveria combinar os insights da história social política e da antropologia histórica. Afinal de contas, o próprio Thompson havia estudado as primeiras organizações da classe trabalhadora em seu The Making, particularmente a Sociedade Londrina de Correspondência.
Mas a nova história do trabalho que eu estava ajudando a promover não deveria apenas combinar duas vertentes diferentes da historiografia, mas ser também comparativa e transnacional. Em relação a isso, Thompson em nada ajudou – em contraste com Hobsbawm! Em todas as suas obras e perspectivas, Thompson permaneceu um tanto inglês de coração, apesar de seu interesse pela Índia e de seu compromisso com a Iugoslávia, onde o irmão mais velho lutara e morrera ao lado dos comunistas. Esse viés constante em seus temas de pesquisa e predileções teóricas não poderia, assim, oferecer inspiração ao meu próprio desejo de afastar a profissão do nacionalismo metodológico.
Hoje, como presidente da Associação Alemã de História do Trabalho (GHLA), se eu comparar o desenvolvimento da história do trabalho britânica e da alemã durante os últimos trinta anos (que se passaram desde a publicação do meu doutorado, em 1994), percebo que a fusão eclética entre diferentes vertentes teóricas e metodológicas foi exatamente o que se revelou mais inovador para a história do trabalho, contribuindo para seu revigoramento nas últimas décadas. Tal ecletismo permitiu a construção de pontes entre a história do trabalho e uma variedade de outras histórias, como, entre outras, a história das mulheres, do gênero, a história das emoções, a antropologia histórica, a história dos conceitos, da memória, a história da desindustrialização e amplo campo da história cultural. Aprendi a desenvolver esse ecletismo principalmente em função de meu envolvimento com E. P. Thompson. A leitura de suas obras, bem como tê-lo encontrado ao vivo, foram eventos seminais em minha formação como historiador.
Tradução: Eneida Sela
Thompson at 100: an Anglo-German view
Stefan Berger (Germany)
Director of the Institute for Social Movements, Ruhr University Bochum, Germany
When, at the tender age of 23, I started a Rhodes scholarship at the University of Oxford and moved from the University of Cologne, where I had been studying, among others, with Eberhard Kolb, who kindled my interest in the history of the labour movement, it was like entering a new, strange and fascinating world that seemed entirely different from the German university world I had entered two years before. And that German world had also been rather strange for a young man who was the first in his family successfully to complete his Abitur and enter university. I came from a world where I had grown up on a working-class company estate and where most of my friends, like myself, came from skilled working-class backgrounds. My father was an electrician at the chemical giant Henkel in Düsseldorf, where he was also a trade unionist and a supporter of the Social Democratic Party. Hence, I grew up with the working class and the labour movement, and it was only logical that in the alien world of the university I felt drawn to the one topic that promised familiarity and continuity with my previous life.
At Oxford I had started off doing a second BA, but after one term, my then-time tutor Tony Nicholls facilitated my entry into postgraduate studies, without having yet finished a first degree. The topic for my PhD was quickly found: a comparison of the British Labour Party and the German Social Democrats. As I plunged myself into this new task, I, for the first time, came across the name of E. P. Thompson. Reading The Making of the English Working Class and his many seminal articles on labour history became a major influence on my own intellectual development. I was fascinated by his unorthodox Marxism that seemed so different from the orthodox Marxism that I had encountered before in the literature on the German labour movement produced by historians of Communist East Germany. His insistence on the fact that people made history in circumstances that were not of their own choosing seemed to me to put the emphasis not on bloodless structures and grand theories, but on ordinary folk and their trials and tribulations.
This made him also different from the other great Marxist historian in Britain, Eric Hobsbawm whose work I had already encountered in Germany. This was, by no means coincidence, as Hobsbawm’s way of writing history was much more akin to the political social history that had risen to prominence in Germany during the 1970s and that is, above all, associated with the so-called Bielefeld School. Like some of the Bielefelders, notably Hans-Ulrich Wehler, Hobsbawm was interested in structures and processes, in the interaction between economics, politics and society. This made his histories quite different from those of Thompson.
Intrigued by Thompson’s writings, I had barely embarked on my PhD, when I saw that a talk was announced in Oxford, in which Thompson would speak about the European Nuclear Disarmament movement which he had helped to found. Thompson had found, in the peace movement, a political movement which replaced his earlier commitment to the Communist Party. This was, of course, another big difference between Thompson and Hobsbawm. The latter had always refused to break with Communism, whereas Thompson had left the party over Hungary in 1956 – like many others in the Communist Party’s Historians’ group. Subsequently, Thompson was influential in the New Left, and his undogmatic political position seemed to befit an undogmatic Marxist scholarly position. I came to admire Thompson not only as an innovative scholar, but also as an engaged intellectual. His commitment to bottom-up peace processes that would bridge the Iron Curtain had already touched me before I knew of his activism in this field. In the early 1980s, I, like hundreds of thousands of others, attended the big marches in favour of disarmament and against the deployment of new nuclear missiles in Germany.
Meeting Thompson in person at this event in Oxford in 1987 was truly mind-blowing. I can honestly say that I never was a big fan of the idea of charismatic leadership, as an analytical scholarly category or as a political concept, but Thompson struck me as a truly charismatic personaliy, the only one I have met in my life so far. There was a magneticism that radiated off him which was spell-binding. He had an almost immediate link with his audience which was not just due to intellectual brilliance but to a kind of physical presence that touched the emotions and affective sides of his audience just as much as their intellects.
E. P. Thompson speaking at an anti-nuclear demonstration in Oxford, 1980. Available at : https://controversia.com.br/2017/12/11/edward-palmer-thompson-uma-vida-extra-muros/
I came away from that meeting more convinced than ever that I had found here one of my great models among historians to whom I would later add Georg G. Iggers and Alf Lüdtke. In fact, I had not yet read much Lüdtke at the time I discovered Thompson, but in the wake of reading Thompson I began reading Lüdtke’s work on factory workers and on their failure to oppose successfully the fascist dictatorship in Germany. I soon learnt that the early reception of Thompson in Germany was precisely through the group of everyday historians, later the founders of historical anthropology in Germany, who were, at the time, working at the Max-Planck Institute for History in Göttingen. Lüdtke was one of their prominent representatives. They had been adversaries of the Bielefelders as early critics of a structural social history that left out the people. Instead they found in Thompson an intellectual ally not just in their undogmatic Marxism, but also in their search for telling the story of ordinary people and their everyday struggles. Lüdtke’s notion of Eigensinn became a key concept for all those wanting to study the desire of ordinary people to be with themselves and do their own thing against all attempts to channel their behaviour from above or outside. As a young student in Cologne, studying with Kolb, I had encountered a political history that was historist in its methodological outlook and oriented towards a history of political parties and political events, notably revolutions. Like most students of my generations, I oriented myself ‘ideologically’ towards Bielefeld and admired the works of the likes of Jürgen Kocka and the aforementioned Wehler.
Through Thompson I now discovered a different world – in which formal politics played less of a role, in which structures and processes were not absent but in which they ceased to be the centre of attention and the only factor in explaining history. Hence, in my own study of the Labour Party and the Social Democrats, I sought to include the voices of ordinary party members and I also paid attention to the role of individuals in shaping the politics of their respective parties. In the debate between Alf Lüdtke and Marcel van der Linden about the role of formal politics in working-class lives, I sided with van der Linden in arguing that there was no need in pouring the baby out with the bath water. Everyday life history and historical anthropology had been ignoring political organizations, such as political parties, trade unions and cooperative societies unnecessarily and the new labour history, I was convinced, did have to balance the books by integrating the insights of the likes of Thompson and Lüdtke into the study of formal labour politics. The new labour history would have to merge the insights of political social history and historical anthropology. After all, Thompson himself had studied early working-class organizations in his The Making, notably the London Corresponding Society.
But the new labour history that I was trying to help nurse along should not only combine two different strands of historiography, it should also be comparative and transnational. Here, Thompson was no help at all – in contrast to Hobsbawm! In all of his works and in his outlook, Thompson remained a little Englander at heart, despite his interest in India and despite his commitment to Yugoslavia, where his elder brother had fought alongside the communist partisans and lost his life. In his themes as a historian and his theoretical predilections, Thompson stayed essentially English, and here I could find no inspiration for my own desire to move the profession away from methodological nationalism.
Today, as president of the German Labour History Association, if I look back at the development of British and German labour history during the thirty years that passed between the publication of my dissertation as a book in 1994 and today, I can see that it was precisely the eclectic merger between different theoretical and methodological strands that proved most innovative for labour history and contributed to its revival over the last decades. Such eclecticism allowed bridge-building to happen between labour history and a variety of other histories, such as, among others, women’s history/ gender history, the history of emotions, historical anthropology, the history of concepts, memory history, the history of the broad field of cultural history. I learned to develop such eclecticism not the least out of my engagement with E.P. Thompson and reading his works as well as meeting the man himself were, for me, seminal events in my own making as a historian.