Thompson entre a tradição marxista e a modernidade historiográfica: um testemunho argentino – Omar Acha



Thompson entre a tradição marxista e a modernidade historiográfica: um testemunho argentino



Essas linhas expressam a memória de uma leitura de Thompson no contexto da educação universitária durante os anos 90 do século XX, em um país como a Argentina e, mais especificamente, em uma instituição como o curso de História da Universidade de Buenos Aires. É possível que outras pessoas de minha geração, nascidas entre 1965 e 1975, tenham outras lembranças. A isso acrescentarei uma síntese parcial da recepção de Thompson na historiografia argentina.

O ponto fundamental é o seguinte: para aqueles de nós que foram treinados na teoria crítica marxista durante a década de 1990, Thompson envolveu uma atualidade que outros historiadores marxistas não possuíam. Nem Pierre Vilar nem Eric Hobsbawm ofereceram discussões historiograficamente orientadas sobre o futuro, ou seja, sobre a pesquisa que queríamos realizar como estudantes de História.

Para meu azar ou minha sorte (e sempre acho que foi para minha sorte), minhas leituras do marxismo foram marcadas pela queda do “socialismo realmente existente”. Todo um mundo de ideias estava entrando em colapso. Eu tinha 20 anos de idade e lia O Capital quando a União Soviética caiu como um castelo de cartas. É por isso que nunca compartilhei da nostalgia de um socialismo derrotado ou de uma revolução traída.

Nós estávamos em meio à crise do marxismo, como a reconhecíamos na época. Naquele momento, foi muito relevante o trabalho de um importante filósofo marxista, José Sazbón, que defendeu a natureza de crise do marxismo em suas próprias origens e a possibilidade de reagir de forma produtiva à crise mais recente. Sazbón chamou isso de “desconstrução com reconstrução”. De certa forma, essa formulação, precisamente por causa de sua abstração, tem guiado minhas elaborações teóricas do marxismo até o presente. Entretanto, nas disputas inglesas sobre o marxismo entre Thompson e Perry Anderson, Sazbon ficou do lado de Anderson. Eu não o segui nesse aspecto. De fato, com uma leitura historiográfica ampla, Sazbon sempre foi um filósofo, ou seja, um pensador de conceitos. E os conceitos tendem a se emancipar dos indivíduos, dos conflitos e das opacidades da história. Sem voltar ao período anterior a Kant (ou seja, não ordenamos a empiria sem categorias), era necessário reconhecer a resistência do arquivo.

Esse foi precisamente o valor que E. P. Thompson nos proporcionou, mesmo que seu debate com Louis Althusser tenha sido filosoficamente deficiente: a impureza da formação de classes, o lugar da religião, a primazia da luta de classes mesmo quando as classes não existiam no sentido marxista de ocupar um lugar em um modo de produção, a relevância da cultura na constituição de coletivos sociais, não eram mais dissolvíveis em um economicismo que Marx questionou corretamente como uma “crítica da economia política”.

O problema que víamos com meus amigos estudantes naqueles anos era que Thompson parecia ter sido apropriado por interpretações ortodoxas, para quem o interesse de The Making of the English Working Class era acrescentar uma dimensão cultural sem mudar o pano de fundo de uma conexão determinística entre posição de classe e identidade de classe.

Na Argentina, onde o peronismo, embora em grave crise desde sua derrota eleitoral em 1983, ainda aparecia na década de 1990 como uma identificação popular e da classe trabalhadora sem orientação socialista, esse determinismo encontrou em Thompson uma alternativa que poderia incorporar a análise dos discursos nos quais os atores históricos davam sentido às suas práticas, sem necessariamente derivar em um novo determinismo linguístico que encontramos – erroneamente ou não – na proposta de Gareth Stedman Jones sobre a linguagem de classe ou, em uma chave mais teórica e universal, no pós-marxismo de Ernesto Laclau. Se na época demos mais espaço à teoria de gênero e à psicanálise, foi porque, cada uma a seu modo, ofereceram resistência à “virada linguística” entendida de forma reducionista.

Enquanto isso, a recepção de Thompson na Argentina seguiu um curso complexo. O primeiro a se voltar para suas ideias foi o historiador social Leandro Gutiérrez (1935-1992), que, além de organizar grupos de leitura de textos thompsonianos durante a década de 1970, usou o conceito de experiência para discutir a visão otimista do historiador liberal Roberto Cortés Conde (em seu livro El progreso argentino, de 1979) sobre a entrada decisiva da Argentina exportadora no mercado mundial em um quadro de migração ultramarina no período de 1870 a 1914. E mesmo que os dados factuais de Cortés Conde pudessem ser contestados (em relação ao aumento dos salários com base em séries confiáveis de fábricas e da polícia) a abordagem quantitativa perdia de vista o fato de que, mesmo com o eventual aumento dos rendimentos, a experiência dos trabalhadores poderia ser considerada a partir de outros pontos de vista menos apologéticos do sistema capitalista em termos agregados.

Durante a década de 1980, a entrada de Thompson teve, a meu ver, duas expressões diferentes: no norte global, com a publicação em 1988 de Resistance and Integration. Peronism and the Argentine Working Class (1946-1976), do historiador galês Daniel James, e na Argentina, com Oposición obrera a la dictadura (1976-1982), de Pablo Pozzi. Em James, o Thompson que lhe interessava era, acima de tudo, o da “sociedade inglesa do século XVIII” para dar destaque ao “contra-drama” de 17 de outubro de 1945, no qual a classe trabalhadora mudou as relações de classe por pelo menos uma década. Em Pozzi, o Thompson escolhido era  o autor do célebre prefácio de 1963 sobre a agência dos trabalhadores em sua própria trajetória histórica, especialmente quando Pozi argumentava que o recuo da tirania militar não se deveu tanto à derrota na Guerra das Malvinas com a Grã-Bretanha, mas ao ativismo dos trabalhadores.

Os estudos de Mirta Lobato sobre o século XX, especialmente aqueles sobre Berisso e a indústria da carne, são iluminados por intuições thompsonianas. Por sua vez, Hernán Camarero, de uma geração posterior, recebeu as ideias de Thompson, atento à desvalorização das determinações estruturais vigentes em seus últimos textos. Por outro lado, nutrida pela crítica de Simona Cerutti, nos últimos anos Mariana Garzón Rogé sublinhou até que ponto os “de baixo” de Thompson continuavam aprisionados por uma geografia social onde as subjetividades encontravam seu fundamento aparente.

De alguma forma, com a crise da história social na última parte do século XX, o Thompson de 1963 gradualmente cedeu espaço para aquele reunido mais tarde em Customs in Common (1991). Aqui reside um grande enigma para aqueles que levam o marxismo a sério como uma teoria crítica da sociedade capitalista. De fato, pelo menos na pesquisa sobre os vice-reinados castelhanos dos séculos XVI e XVIII, a eficácia das abordagens de Thompson retrocedeu aos tempos da “transição”, quando a “lógica do capital” não estava totalmente estruturada.

Assim, a recepção mais consistente de Thompson abordou o final do século XVIII e na primeira metade do século XIX no território ao sul do Vice-Reino do Peru. E como naquela época as classes sociais não estavam estruturadas de acordo com as relações de produção capitalistas, é compreensível que o Thompson mais útil não tenha sido o de The Making, mas o que estudou a Lei Negra e os fenômenos da multidão “sem classe”. Assim, as pesquisas de Raúl Fradkin, Ana Frega, Sergio Serulnikov e Gabriel di Meglio tinham Thompson entre seus interlocutores favoritos.

A conclusão a que gostaria de chegar é a seguinte: em um diálogo sobre historiografia de esquerda (história radical), Thompson argumentou que uma história radical deveria ser tão boa quanto a melhor prática histórica. Parece-me que, de acordo com o que pode ser visto na história recente da historiografia argentina,  os historiadores argentinos consideraram que a maneira de Thompson fazer história era suficientemente hábil como uma maneira original de investigar o estranho mundo do passado. O fato de esse trabalho histórico ter se distanciado cada vez mais da perspectiva socialista de Thompson não é algo a ser reprovado em The Making of the English Working Class ou em Customs in Common, mas em nossa própria contemporaneidade em crise. A relevancia de Thompson sobreviveu à crise do marxismo, sem necessariamente se tornar pós-marxista.


Thompson between the Marxist Tradition and Historiographical Modernity: an Argentine Testimony



These lines express the memory of a reading of Thompson in the context of university education during the 1990s in Argentina – more specifically, the History program at University of Buenos Aires. Possibly, other members of my generation, born between 1965 and 1975, have different recollections. I will also include here a partial synthesis of Thompson’s reception in Argentine historiography.

For those of us who were trained in Marxist critical theory during the nineties, Thompson embodied a contemporary relevance compared to other Marxist historians. Neither Pierre Vilar nor Eric Hobsbawm offered discussions that were historiographically oriented to the future, that is, to the type of research in which we wanted to engage as History students.

Fortunately, or unfortunately for me (and I always think it was my luck), my contact with a bibliography on Marxism was marked by the fall of the “actually existing socialism.” A whole world of ideas was collapsing. I was 20 years old and reading Capital when the Soviet Union was dismantled like a house of cards. This is why I have never shared the nostalgia of a defeated socialism or a betrayed revolution.

The crisis in Marxism, as we called it, was passing through us. At that moment, the works of the leading Marxist philosopher José Sazbón turned to be especially relevant. He argued about the nature of the crisis characteristic of Marxism in its very origins, and the possibility of reacting productively to the most recent one. He called it “deconstruction with reconstruction.” Somehow, precisely because of its abstraction, that formulation guided my theoretical elaborations of Marxism until the present day. However, in the English disputes over Marxism between Thompson and Perry Anderson, Sazbón took sides with the latter. I did not follow him in this regard. In fact, despite his ample historiographical knowledge, Sazbón was always a philosopher, that is, a conceptual thinker. And concepts tend to detach themselves from individuals, from conflict, and from the opacities of history. To make a long story short, and without returning to pre-Kant discussions on empiricism, it was necessary to value archive’s resistence.

That was precisely the asset with which E. P. Thompson provided us, even though his debate with Louis Althusser was philosophically deficient. The impurity of class formation, the role of religion, the primacy of class struggle even when classes did not exist (in The Marxist sense, of occupying a position within a given mode of production), the significance of culture to the constitution of social groups: Thompson claimed that these problems could no longer be “dissolved” within an economism that Marx precisely questioned as a “critique of political economy.”

In those years, however, my young colleagues and I noticed that Thompson’s notions seemed to be misappropriated by some orthodox interpretations, whose interest in The Making of the English Working Class consisted of adding a cultural dimension to the analysis, without modifying the background of a deterministic connection between class position and class identity.

In the 1990s, Peronism in Argentina – although in severe crisis since the electoral defeat in 1983 – still appeared to have a working-class and popular identification, with no traces of socialist orientation. Thus, that determinism found in Thompson an alternative that could incorporate the analysis of discourses in which historical actors gave meaning to their own practices, without necessarily leading to a new linguistic determinism that we found – wrongly or not – in Gareth Stedman Jones’s formulations on class language, or, in a more theoretical and universal key, in the post-Marxism of Ernesto Laclau. If at that time we prioritized gender theory and psychoanalysis it was because both, in different ways, resisted a reductionist understanding of the linguistic turn.

Meanwhile, Thompson’s reception in Argentina had followed a rather complex course. The first to respond to his proposals was the social historian Leandro Gutiérrez (1935-1992), who, in addition to organizing reading groups of Thompsonian texts during the 1970s, used the concept of experience to discuss the optimistic vision of the liberal historian Roberto Cortés Conde (in his book El progreso argentino, from 1979), about the decisive enrollment of Argentina into the world market as an exporting country, in the context of overseas migration between 1870-1914. And although one may contest Cortés Conde’s factual data (regarding the increase in salaries based on reliable data from a factory and the police), the quantitative approach lost sight of the fact that even with increasing numbers, the workers’ experience could be considered from different and less apologetic points of view about the capitalist system as a whole.

During the 1980s Thompson’s influence can be noticed, in my opinion, through two different expressions: in the Global North, with the publication, in 1988, of Resistance and Integration. Peronism and the Argentine working class (1946-1976), by the Welsh historian Daniel James; and in Argentina, with Oposición obrera a la dictadura (1976-1982), by Pablo Pozzi. James was mostly interested in Thompson’s “Eighteenth-Century English Society” to understand the “counter-theatre” of October 17, 1945, in which the working class modified class relations for at least one decade. Pozzi was more inclined to incorporate Thompson’s considerations found in the preface to the 1963 famous work, regarding the worker’s agency within their own historical trajectory, particularly because he sustained that the withdrawal of military tyranny was due to the workers’ activism, more than to the defeat in the Falklands War against Great Britain.

Mirta Lobato’s studies on the twentieth century, especially those on Berisso and the meat industry, are also illuminated by some Thompsonian insights. Hernán Camarero, from a younger generation, received Thompson’s ideas, attentive to the depreciation of structural determinations in force in his latest texts. Encouraged by the Simona Cerutti’s criticism, in recent years Mariana Garzón Rogé has pointed out that Thompson’s actors “from below” continue to be imprisoned by a social geography where subjectivities find their apparent foundation.

Somehow, with the crisis of social history in the last decades of the twentieth century, the 1963 Thompson gradually gave way to that of Customs in Common (1991). Here is a major enigma for those who take Marxism seriously as a critical theory of capitalist society. Indeed, at least in the research about the Castilian viceroyalties from the sixteenth to the eighteenth century, the effectiveness of Thompson’s approaches went back to the times of the “transition,” when the “logic of capital” was not fully structured.

Therefore, the works expressing a more consistent reception to Thompson’s formulations are those related to the late eighteenth century and the first half of the nineteenth century in the territory to the south of the Viceroyalty of Peru. And since social classes were not yet structured according to capitalist relations of production, it is understandable that the most “useful” Thompson was not that of The Making, but rather the historian of the Black Act and the phenomena of “class struggle without class.” Thus, the investigations of Raúl Fradkin, Ana Frega, Sergio Serulnikov, and Gabriel di Meglio had Thompson among their favorite interlocutors.

To conclude: in a lecture on left-wing historiography (radical history), Thompson had proposed that it should be as good as the best historical practice. It seems to me that, according to what can be seen in the recent history of Argentine historiography, whatever it is worth, Argentine historians considered that Thompson’s way of doing history was skillful enough to be praised as an original way to investigate the strange world of the past. That this historical work increasingly distanced itself from Thompson’s socialist perspective is not something to be blamed on The Making of the English Working Class or Customs in Common, but rather on our own contemporaneity in crisis. Thompson’s relevance has survived the crisis of Marxism, without necessarily becoming post-Marxist.