Thompson, o ovo e a escravidão no Brasil – Silvia Lara



Thompson, o ovo e a escravidão no Brasil



O primeiro artigo de Thompson que li foi “Time, Work-Discipline, and Industrial Capitalism”, numa tradução espanhola de 1979, que circulava em fotocópia entre os alunos da pós-graduação em História Social, na Universidade de São Paulo. O autor estava fora das listas bibliográficas dos cursos e seminários, que continham muitas referências de obras francesas ligadas aos Annales ou à ortodoxia marxista das décadas de 1660 e 1670. Eram outros tempos.

Logo nas primeiras páginas, aprendi que, para cozinhar um ovo, era preciso rezar uma ave-maria em voz alta. A receita chilena do século XVII, citada em meio a muitos exemplos de formas antigas de medir o tempo, resolveu um problema prático: os três minutos que me haviam recomendado deixavam a gema dura e, naquela época, eu não conseguia acertar o ponto. Associei os ensinamentos católicos da minha infância com meu gosto pela época moderna e deu certo.

Também aprendi que prestar atenção nas pequenas coisas que afetam o cotidiano das pessoas era um bom jeito de desvendar as circunstâncias das relações de dominação. Thompson investigou a mudança na maneira de contar o tempo para esmiuçar as formas da exploração do trabalho e entender como elas estavam ligadas a todos os aspectos da vida social. Em um momento em que todos discutiam os modos de produção, este era um bom jeito de deslocar o foco para os modos da dominação. Além disso, a escrita lidava com um entramado de fontes que permitia ir do particular ao geral sem recorrer a conceitos abstratos e pré-definidos. Um jeito diferente de fazer história e de argumentar em defesa de uma interpretação: um belíssimo texto.

Li, em seguida, os outros artigos da coletânea espanhola e descobri um novo autor, que passou a ser uma grande referência para meus estudos sobre a escravidão dos africanos e seus descendentes no Brasil dos séculos XVII e XVIII. Fui atrás de outros artigos sobre o século XVIII inglês que ainda não tinham sido traduzidos para uma língua latina (entre eles o magistral “Eighteenth-Century English Society: Class Struggle Without class?” – até hoje inédito em português) e passei para os livros: The Poverty of Theory (traduzido para o português em 1981), Whigs and Hunters e, por último, The Making of the English Working Class (ambos traduzidos em 1987). Os resultados foram muito mais duradouros do que no campo culinário, já que logo abandonei os ovos moles no café da manhã.

Pode parecer estranho que um autor que estuda a história do trabalho e dos trabalhadores na Inglaterra do século XVIII possa ter influenciado as pesquisas sobre a escravidão no Brasil. As referências à escravidão são raras nos textos de Thompson, mas sua maneira de investigar as relações sociais e interpretar a documentação abriram um campo de reflexões sobre o modo como a história dos escravizados vinha sendo analisada e esteve na base de uma virada historiográfica importante na história do Brasil. Esta virada teve aspectos interpretativos e metodológicos, e também esteve ligada ao uso de novas fontes.

Colocar o ponto de vista dos escravizados no centro da análise das sociedades escravistas foi algo tão relevante quanto construir conceitos a partir das experiências dos sujeitos sociais. Para isso foi preciso mergulhar nas fontes para entender o passado em toda a sua complexidade, sem visitar os arquivos com esquemas explicativos pré-definidos em busca de exemplos e ilustrações. Se os registros tinham sido majoritariamente produzidos pelos grupos mais poderosos da sociedade, onde e como encontrar a perspectiva dos escravos? Isto só pode ser feito, no caso do Brasil, recorrendo a fontes e procedimentos analíticos capazes de abrir as senzalas e o universo fechado das fazendas e casas senhoriais para os historiadores. Mais que tudo, no entanto, foi a relevância que as tensões e os conflitos sociais ganharam na maneira de compreender a sociedade em períodos anteriores ao século XIX, cronologia tradicional do exame das lutas de classe.

Este não foi um movimento exclusivo da historiografia brasileira. Olhando retrospectivamente, é fácil perceber que mudanças semelhantes ocorreram (até com certa antecedência) nos estudos sobre a escravidão (e, claro, sobre o movimento operário) nos Estados Unidos, no Caribe e nas áreas de colonização espanhola. Minhas pesquisas, desde aquelas sobre as relações entre escravizados e seus senhores numa zona açucareira do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII até a mais recente, sobre os mocambos de Palmares, nas matas de Pernambuco no século XVII, sempre se aproveitaram dos insights de Thompson e de tantos outros historiadores que nele se inspiraram. 

Desde os primeiros artigos e livros, Thompson recebeu críticas e participou de muitos debates. Alguns fizeram parte de um tempo que já se foi, ligados às contendas no interior das hostes marxistas. Outros chamaram a atenção para a necessidade de incorporar as relações de gênero ou dar a devida importância ao colonialismo, por exemplo. No campo específico da história da escravidão, isso significava conhecer melhor a experiência dos africanos antes da escravização e saber mais sobre como ela havia guiado suas ações e o modo como conseguiram sobreviver no outro lado do Atlântico. Significava também prestar mais atenção para as diferenças entre os escravizados: entre homens e mulheres, entre crianças e mais velhos, entre gente que vivia nas fazendas e nas cidades, tinha religiões diferentes, tinha vindo de sociedades diversas ou havia chegado primeiro. E assim os estudos sobre as experiências escravas foram se tornando cada vez mais sofisticados, aproveitando-se também do desenvolvimento da historiografia africanista, da antropologia e da linguística histórica.

Hoje, são poucos os historiadores que ainda insistem em adotar um olhar macroeconômico e focalizar apenas os aspectos estruturais e sistêmicos do escravismo. Ou tratam “o” escravo como se fosse uma entidade abstrata, sem carne e osso. O fato é que as novidades presentes nas obras sobre a escravidão produzidas nos anos 1980, sob inspiração thompsoniana, tornaram-se lugares comuns nas décadas seguintes. A metáfora do ovo de Colombo descreve muito bem os avanços na história da escravidão no Brasil desde que ele entrou em cena.

Nos últimos anos, as pautas identitárias ganharam proeminência historiográfica, impulsionadas pelo necessário combate ao racismo que, frequentemente, tem sido chamado de “estrutural”. As relações entre raça, classe e gênero são examinadas sob novos nomes, importados da sociologia norte-americana e, às vezes, as análises tendem a enfatizar as tensões advindas mais das questões raciais e de gênero que das de classe. Os fenômenos parecem ter tomado o centro do palco, no lugar das relações sociais e dos modos de dominação. O contexto é particularmente importante para os estudos sobre a escravidão, pois recoloca em pauta seus vínculos com o racismo.

Mas será que a questão pode ser resolvida buscando-se o nexo “estrutural” entre os dois fenômenos? Não seria o caso de voltar a ler Thompson e olhar as imensas desigualdades sociais e os modos de discriminação e exclusão que caracterizaram o Brasil ao longo de sua história sob novos prismas? Novos é maneira de dizer, pois creio que as observações sobre o conceito de classe e sobre a luta de classes (com a famosa imagem das limalhas de ferro agrupando-se nos polos magnetizados) que fazem parte do artigo sobre a sociedade inglesa do século XVIII, publicado em 1978, não perderam seu viço. Como seria pensar diversos campos de força a atrair as limalhas no caso dos múltiplos nexos entre a escravidão e o racismo? Como as pessoas e o modo como viveram e se relacionaram umas com as outras construíram as experiências da escravidão, da liberdade e do racismo? Como suas ações e valores mudaram ao longo do tempo, ao lidarem com as tensões e os conflitos inerentes a estas experiências?

O desafio é grande. Mãos à obra! Quem será o primeiro a colocar o ovo em pé?

Link: https://openroadmedia.com/contributor/e-p-thompson

 E. P. Thompson, the Egg, and Slavery in Brazil  



The first of E. P. Thompson’s articles that I ever read was a 1979 Spanish translation of “Time, Work-Discipline, and Industrial Capitalism”, whose photocopies were circulating among graduate students in Social History at the University of São Paulo. The author was not to be found in any bibliography of disciplines and seminars, which listed many references either to French works related to the Annales school or to the 1960s and 1970s Marxist orthodoxy. Those were other times.

Right in the first few pages of the article I learned that to cook an egg, one had to say a Hail Mary out loud. The seventeenth-century Chilean recipe, mentioned among many examples of ancient ways of measuring time, served to solve a practical problem: the three minutes that I had been recommended would make the yolk hard, and, at that time, I couldn’t get it right. So, I combined the Catholic teachings of my childhood with my penchant for the Modern Age, and it worked.

I also learned that paying attention to the small things that affect people’s daily lives was a good way to unveil the circumstances in which relations of domination occur. Thompson investigated the change in the manner of counting time in order to scrutinize the forms of labor exploitation and understand how they were linked to all aspects of social life. In a moment when everyone else was discussing the modes of production, this was a good way to shift the focus to the modes of domination instead. Furthermore, his writing dealt with an interweaving of sources that allowed transition from particular to general scales without resorting to abstract and pre-defined concepts. It was a different way of doing history and arguing in defense of an interpretation: a splendid text.

I then read the other articles of the Spanish compilation and discovered a new author, who would become a major reference for my studies on slavery of Africans and their descendants in seventeenth- and eighteenth-century Brazil. I sought out other articles about eighteenth-century England that had not yet been translated into any Latin language (among them, the masterful “Eighteenth-Century English Society: Class Struggle Without Class?” – as yet unpublished in Portuguese), and proceeded on to the books: The Poverty of Theory (translated into Portuguese in 1981), Whigs and Hunters, and finally The Making of the English Working Class (both translated in 1987). The results were much longer lasting than in the culinary field, as I soon quit soft-boiled eggs for breakfast.

It may seem odd that an author who studies history of labor and workers in eighteenth-century England could have influenced research on slavery in Brazil. References to slavery are scarce in Thompson’s works, but his modes to investigate social relations and interpret documents opened up a field of considerations about the way in which the history of the enslaved was being approached. It represented the groundwork of an important historiographical turn in Brazil. This turn comprised interpretative and methodological aspects, and was also related to the use of novel sources.

Placing enslaved people’s own perspectives at the center of the analyses of slave societies was as relevant as building concepts based on the experiences of social actors. For that, it was necessary to delve into the sources to understand the past in all its complexity, and reject, when approaching the archives, pre-defined explanatory schemes simply in search of examples and illustrations of them. If the records had primarily been produced by the most powerful groups in society, where and how could we find the enslaved’s own perspectives? In Brazil’s case, this can only be done by using sources and analytical procedures capable of opening up, to historians, the slave quarters and the shuttered world of farms and manor houses. More important, however, was the relevant role designated to social tensions and conflicts to understanding society in periods prior to the nineteenth century, the traditional chronology for the study of class struggles.

This shift did not occur, however, exclusively within Brazilian historiography. Looking retrospectively, it is easy to observe that similar changes took place, sometimes even slightly ahead of Brazil, in studies on slavery (and, of course, on the labor movement) in the United States, the Caribbean, and in areas of Spanish colonization. My own research – from that on the relations between enslaved people and their enslavers in a sugar-growing area of Rio de Janeiro in the second half of the eighteenth century, to the most recent, on the Palmares’ mocambos1 in the forests of Pernambuco in the seventeenth century – has always benefited from insights by Thompson and so many other historians he has inspired.

From his first articles and books, Thompson was object of criticism and participated in many debates. Some of these belong to times past, and were related to disputes within the Marxist legions; others would draw attention to the need for incorporating gender relations, or give colonialism its due relevance, for instance. In regard to the history of slavery as a specific field, this meant learning more about the experience of Africans before their enslavement, and knowing more about how that guided their actions, as well as how they managed to survive on the other side of the Atlantic. It also meant paying closer attention to the differences among enslaved people: between men and women, children and older people; between those who lived on farms and in cities, had different religions, had come from various societies, or arrived first. Studies on slave experiences thereby became increasingly sophisticated, also benefiting from the development of Africanist historiography, from anthropology, and historical linguistics.

Today, few historians still insist upon adopting a macroeconomic perspective exclusively focused on structural and systemic aspects of slavery, in which they treat the enslaved [singular form], as if an abstract entity without flesh and bones. The fact is that the novelty of works on slavery produced in the 1980s under Thompsonian inspiration would become commonplace in the following decades. The metaphor of Columbus’s egg describes very well the advances in history of slavery in Brazil after E. P. Thompson arrived on the scene.

In recent years, identity politics have gained historiographical prominence driven by the necessary fight against racism, which has often been called “structural” or “systemic”. The relations between race, class and gender have now been examined under new terms imported from North American sociology, and sometimes these analyses tend to emphasize tensions arisen from issues related to race and gender, rather than to class. Phenomena seem to have taken the center stage, replacing social relations and modes of domination. This context is particularly important for slavery studies, as it highlights its connections with racism.

But can the issue be resolved only by seeking the “systemic” link between the two phenomena? Wouldn’t it be the case of returning to Thompson’s works, and approaching through new lenses the immense social inequalities and forms of discrimination and exclusion that have characterized Brazil throughout its history? “New”, so to speak, for I believe that the observations on the concepts of class and class struggle – with the famous image of iron filings grouping together at magnetized poles – that are part of the Thompson’s article on the eighteenth-century English society published in 1978 have not lost their vitality. How would it be to think of that image, applying it to the multiple connections between slavery and racism? How have people and the way they lived and related to each other constructed experiences of slavery, freedom, and racism? How have their actions and values changed over time as they dealt with the tensions and conflicts inherent in these experiences?

The challenge is large. Let’s get to work! Who will be the first to stand the egg upright?

Link: https://openroadmedia.com/contributor/e-p-thompson

Notes

1Word of Kimbundu origin, meaning “hideout”, used in various seventeenth-century Portuguese sources to refer to maroon communities in Brazil, of which Palmares was the longest-lasting one.