Um momento com Thompson nos anos 1970
Chitra Joshi (Índia)
Professora do Departamento de História da Universidade de Delhi, Índia
Estou muito feliz por me juntar aos colegas historiadores, amigos e companheiros do Rio e de outros lugares, e contribuir para celebrar o centenário de E.P. Thompson. O convite de Paulo Fontes reavivou memórias de décadas atrás, quando Thompson visitou a Índia em 1976
Para muitos de nós, jovens estudantes em Delhi, a visita de Thompson foi transformadora, uma experiência de vida que ainda carregamos conosco. Sua vinda ocorreu numa conjuntura política importante – uma greve ferroviária nacional de proporções épicas em 1974, seguida pela imposição do Estado de Emergência e pela suspensão das liberdades civis durante dezoito meses, entre 1975-1977. Na Grã-Bretanha, esse foi um momento de crise para o governo trabalhista no poder. Havia uma agitação política palpável no ar, apesar da repressão aos atos da oposição nos dias de Emergência na Índia.
Há três eventos em particular que me ficaram gravados na memória: a palestra de Thompson no espaço que ficou conhecido como auditório L-7, no antigo campus da Universidade Jawaharlal Nehru (JNU); duas palestras na Universidade de Delhi; uma pequena reunião social com ele, fora do campus. Sua palestra pública sobre o marxismo de Althusser na JNU foi um tour de force. Thompson estava performático, andando pelo palco enquanto falava animadamente, jogando seu cabelo, gesticulando, levantando a voz enquanto lançava sua crítica a Althusser (infelizmente, isso foi nos tempos pré-smartphone – quando só podíamos saborear imagens em nossa mente – por isso não tenho fotos da sua visita). Àquela época na JNU, líamos tanto Thompson quanto Althusser, pois ofereciam uma crítica ao reducionismo, e tentávamos extrair insights de ambos para o desenvolvimento de nossas ideias. Embora a palestra de Thompson na L-7 tenha sido instigante e agradável, não estávamos dispostos a aceitar a sua rejeição radical de Althusser sem antes levantarmos questões. Seguiu-se uma discussão intensa e acalorada que continuou muito após o término da palestra. Em outro evento, agora no Centro de Estudos em Sociedades em Desenvolvimento (CSDS), Thompson falou sobre Whigs and Hunters, recriando o mundo dos caçadores clandestinos e habitantes das florestas reais da Inglaterra. Lembro-me de como a palestra abriu tantos campos de estudo para nós. Alguns sentiram-se atraídos pela história do direito e dos crimes; outros começaram a explorar a história social da silvicultura.
EP Thompson speaking, Youth CND rally Coventry 1984. © Stefano Cagnoni/reportdigital.co.uk, 26/05/1984. Disponível em: https://www.reportdigital.co.uk/search?s=ep+thompson
No encontro informal que alguns de nós tivemos fora do campus com Thompson, ficamos surpreendidos e impressionados com seu anseio em nos ouvir, em ponderar sobre nossa situação em tempos de Emergência na Índia. Estávamos ávidos por novas ideias, por formas de lidar com aquilo. Escutamos com atenção enquanto ele falava sobre os novos movimentos na Grã-Bretanha – protestos de mulheres, migrantes, enfermeiros e outras pessoas que trabalham fora das indústrias tradicionais. Meu diálogo com Thompson continuou, em âmbito mais pessoal, quando Neeladri e eu visitamos Dorothy e Edward em Wick Episcopi (Worcester) na década de 1980, onde eles mantinham a casa aberta, um ponto de encontro caloroso e animado para acadêmicos e camaradas visitantes. Nessa época, Thompson estava finalizando o rascunho da correspondência de seu pai com Rabindranath Tagore, e queria a opinião de seus amigos indianos. Também tivemos a oportunidade de participar de discussões com David Montgomery, Harvey Kaye e outros acadêmicos visitantes.
Para jovens historiadores na Índia, a compreensão thompsoniana da classe como processo e seu esforço em resgatar as experiências e a agência dos sujeitos tinham um apelo especial, pois ecoavam fluxos de nossos próprios pensamentos. Muitas publicações do final da década de 1970 foram profundamente influenciadas pelas ideias de Thompson. Historiadores exploraram então questões a respeito das origens sociais da força de trabalho, das tradições comunitárias e religiosas, da cultura de trabalho e da disciplina temporal, e do contraste entre a Índia e o mundo anglo-europeu. Claramente, os historiadores do trabalho já não poderiam mais ignorar aspectos da cultura, mas as abordagens variavam. Na Índia e em noutros lugares surgiram diferenças entre aqueles que defendiam um ponto de vista culturalista, ressaltando a necessidade de se compreender a cultura nos seus próprios termos; outros davam ênfase aos determinantes econômicos da cultura. Mas não era fácil romper com as abordagens teleológicas que ainda marcavam as discussões em torno da classe e da consciência de classe, e que assistiram a um amadurecer lento dessas categorias ao longo do tempo, com identidades religiosas e comunitárias se enfraquecendo sob a pressão das forças econômicas.
A virada linguística após a década de 1980 e o deslocamento em direção à análise discursiva tiveram seu impacto na Índia, tal como em outros países, e os historiadores criticaram então análises anteriores da história social, questionando antigos pressupostos. As concepções thompsonianas de classe e experiência sofreram críticas, assim como a ausência de uma perspectiva de gênero nos trabalhos do autor, especialmente em The Making. Mas para muitos da minha geração, isto não significou romper o vínculo com a tradição thompsoniana. Os engajamentos críticos que se seguiram permitiram-nos repensar e aprofundar muitas das categorias fundadoras do conhecimento histórico. É verdade que a ideia de uma classe coesa emergente na década de 1830, em The Making, aparece como uma espécie de anticlímax ao processo fluido e aberto de formação de classe traçado no livro. É igualmente verdade que ele usou muitas vezes a noção de experiência de forma pouco simplista, como se esta estivesse disponível para o historiador recuperá-la e acessá-la. Também não se pode negar que as questões de gênero não são priorizadas no livro, embora muitos dos ensaios de Thompson se concentrem nas formas como o patriarcado funcionava através de rituais e práticas consuetudinárias. No entanto, sua crítica ao determinismo econômico, a ênfase na cultura como elemento constitutivo, seu foco na religião, na comunidade e nos costumes, a concepção da classe como categoria historicamente moldada foram ideias que continuaram a ter uma profunda influência na historiografia.
A heterogeneidade da formação de classes evidenciada nas formulações de Thompson tem uma ligação especial com nosso próprio contexto no Sul da Ásia. Sua visão da classe trabalhadora como elástica e inclusiva, abarcando uma variedade de grupos com interesses divergentes (artesãos, trabalhadores rurais, tecedores de malhas, tecelões manuais) ajudou-nos a refletir sobre a situação indiana. Seu enfoque nos destituídos, nos marginalizados, nos perdedores é útil para dar sentido à pluralidade de formas que caracterizam a formação de classes na Índia e noutros locais do Sul Global. No contexto atual, quando as indústrias tradicionais de grande escala se desmantelam e há uma crescente informalização e precarização do trabalho, muitas das formulações de Thompson adquiriram uma importância renovada. O conceito de economia moral oferece uma lente através da qual se podem ver novas formas de luta num cenário onde os antigos sindicatos estabelecidos estão em declínio. Desnecessário dizer que existem problemas com a conceitualização thompsoniana, que nivela as diferenças e supõe existir uma estrutura única e homogênea mediando as relações entre patrícios e plebeus. Segundo Thompson, os conflitos surgiram quando a estrutura das relações recíprocas entre patrícios e plebeus se desintegrou. Em vez disso, é necessário olhar para a pluralidade de economias morais que mediam as relações entre os trabalhadores pobres e aqueles que estão no poder, e compreender como as noções de justiça e de salário justo funcionam na contemporaneidade.
Hoje, numa época de guerra e violência, continuamos a nos lembrar de pessoas como Edward e Dorothy Thompson, que fizeram campanha incansável pela paz e por uma ordem mundial justa.
Tradução: Eneida Sela
A Thompson Moment in the late 1970s
Chitra Joshi (India)
Department of History, University of Delhi, India
I am really happy to join fellow historians, friends and comrades in Rio and elsewhere in contributing to the commemoration of EP Thompson on his centenary year. The invitation from Paulo Fontes brought back a rush of memories from decades ago, from the time Thompson visited India in 1976.
For many of us young students in Delhi those days, Thompson’s visit was momentous; it was a life time experience that we still carry with us. His visit came at an important political conjuncture – a nationwide railway strike of epic proportions in 1974, followed by the imposition of Emergency and a suspension of civil liberties for 18 months between 1975-1977. In Britain, this was a time of crisis for the Labour Government in power. There was a palpable political churn in the air despite the clamp down on oppositional activity in Emergency days in India.
There are three events in particular, that have remained etched in my memory. One, Thompson’s lecture, at what was known as the L-7 auditorium, in the Old Campus in JNU; the second, a set of two lectures in Delhi University; and the third, a smaller interactive meeting with him outside the campus. His public lecture on Althusser’s Marxism at JNU was a tour de force. Thompson was in a performative mode, pacing across the stage as he talked animatedly, tossing his mop of hair, gesticulating, raising his voice as he launched into his critique of Althusser (Unfortunately, this was in the pre-smart phone days – a time when we could only savour images in our mind’s eye – so I have no photos of his visit). In JNU those days, we were reading both Thompson and Althusser, because they offered a critique of reductionism, trying to draw insights from both in developing our ideas. Though Thompson’s lecture at L-7 was thought provoking and enjoyable, we were unwilling to accept his radical dismissal of Althusser without raising questions. An intense and heated discussion followed which continued long after the lecture was over. At another event (at the Centre for Studies in Developing Societies) Thompson spoke on Whigs and Hunters, recreating the world of poachers and hunters, foresters in the Royal forests in England. I remember how the lecture opened up so many fields of study for us. Some of us were drawn to the history of law and crime, others began exploring the social history of forestry.
EP Thompson speaking, Youth CND rally Coventry 1984. © Stefano Cagnoni/reportdigital.co.uk, 26/05/1984. Available at: https://www.reportdigital.co.uk/search?s=ep+thompson
In the informal engagement that some of us had with Thompson outside the campus, we were surprised and overwhelmed by his eagerness to listen, to ponder over our situation in Emergency time in India. We were hungry for new ideas, for ways in which to grapple with our situation. We listened eagerly to him as he talked about new movements in Britain – protests by women, migrants, nurses and others working outside traditional industries. My interaction with Thompson continued at a more personal level when Neeladri and I visited Dorothy and Edward at Wick Episcopi (Worcester) in the 1980s, where they kept an open house, a warm and lively meeting ground for visiting scholars and comrades. Around this time Thompson was finalizing the draft of his father’s correspondence with Rabindranath Tagore and wanted feedback from his Indian friends. We also had the opportunity to engage in discussions with David Montgomery, Harvey Kaye and other visiting scholars.
For young historians in India, Thompson’s ideas of class as process, his emphasis on recovering experience and agency had a special appeal; they resonated with the flow of our own thinking. Many publications from the late 1970s were deeply influenced by Thompson’s ideas. Questions around the social origins of the workforce, community and religious traditions, work culture and time-discipline and the contrast between India and the Anglo-European world, were explored by historians. Quite clearly, historians writing on labour could no longer ignore questions of culture but the way in which these were addressed varied. In India, as elsewhere, differences emerged between those who argued from a culturalist standpoint, emphasizing the need to understand culture in its own terms and others who laid emphasis on the economic determinants of culture. But it was not easy to break out of teleological frames that continued to underline discussions around class and class consciousness and saw a slow maturing of class over time, with religious and community identities weakening under the pressure of economic forces.
The linguistic turn after the 1980s and the shift to discursive analysis had its impact on India, as in other countries, and historians critiqued earlier social history frames and questioned old assumptions. Thompson’s understanding of ‘class’ and ‘experience’ were critiqued, as was the absence of a gendered perspective in his writings especially in the Making. But for many in my generation, this did not mean the snapping of a link with the Thompsonian tradition. The critical engagements that followed allowed us to rethink and deepen many of the founding categories of historical understanding. It is true that the idea of a cohesive class emerging by the 1830s in Thompson’s Making appears as a bit of an anti-climax to the fluid and open-ended process of class formation traced in the book. It is equally true that he often used the notion of experience somewhat unproblematically, as if it was out there for the historian to recover and access. Nor can one deny that questions of gender are not foregrounded in the Making, even though many of his essays focus on the ways patriarchy worked through rituals and customary practices. Yet his critique of economic determinism, his emphasis on culture as constitutive, his focus on religion, community and custom, his understanding of class as not already formed but as historically fashioned, were ideas that continued to have a profound shaping influence on history writing.
The heterogeneity of class formation in Thompson’s formulation has a special connect with our own context in South Asia. His idea of the working class as elastic and inclusive, enfolding within it a variety of groups with divergent interests, artisans, field labourers, stockingers, handloom weavers helped us to reflect on the Indian situation. His focus on the displaced, the marginalized, the losers, is helpful in making sense of the plurality of forms that characterized class formation in India and elsewhere in the Global South. In today’s context when traditional large-scale industries are dismantled and there is increasing informalization and precariatization of labour, many of Thompson’s formulations have acquired a renewed significance. The concept of moral economy offers a lens through which to view new forms of struggle in a scenario where old established unions are in decline. Needless to say, there are problems with Thompson’s conceptualization of a moral economy; it flattens differences and assumes there is a single homogenous structure mediating relations between patricians and plebians. In his framework, it was when the structure of reciprocal relations between patricians and plebians broke down that there were conflicts. Instead, one needs to look at the plurality of moral economies that mediate relations between the labouring poor and those in power, and understand how notions of justice and fair wage play out in contemporary times.
In a time of war and violence today, we keep remembering individuals like Edward and Dorothy Thompson, who campaigned tirelessly for peace and a just world order.