Yasmin Getirana
Doutoranda em História Internacional na London School of Economics e pesquisadora do LEHMT/UFRJ
Uma das maiores categorias profissionais femininas no Brasil, trabalhadoras domésticas frequentemente desempenham seu serviço sozinhas. Não conseguindo sociabilizar com outras colegas nas casas onde trabalham, elas encontraram em espaços como praças públicas um local não apenas de trânsito, mas também de lazer, convivência e por vezes, de manifestação coletiva.
Antes da criação da Associação Profissional de Empregadas Domésticas do Rio de Janeiro (APED-RJ), em 1961, era comum que reuniões entre trabalhadoras domésticas fossem realizadas em praças. Mesmo após a conquista da sede própria, em 1985 no bairro do Rio Comprido, a prática continuou como uma forma de levar a APED-RJ a locais distantes. A sindicalista Nair Jane de Castro Lima lembra que, entre as décadas de 1960 e 80, praças, mercados, escolas e igrejas, eram locais em que as participantes podiam divulgar a associação, principalmente para babás. A Praça Serzedelo Correia logo se destacou como um desses lugares.
A praça, localizada na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, foi criada em 1893, e inicialmente chamada Malvino Reis. Seu nome atual faz alusão ao militar e político paraense Inocêncio Serzedelo Correia que foi por dois mandatos prefeito da cidade. O local foi remodelado diversas vezes até chegar ao desenho de hoje. A partir da década de 1940, Copabacana passou por um intenso processo de verticalização e urbanização e o bairro tornou-se um dos principais locais de moradia das camadas mais abastadas da sociedade carioca. Como consequência, Copacabana também atraiu muitos trabalhadores prestadores de serviços.
Durante a década de 1970, a Serzedelo Correia passou a ser conhecida como “Praça dos Paraíbas”. O termo era usado na cidade como uma maneira pejorativa de se referir às pessoas oriundas das regiões norte e nordeste do país, maioria dos frequentadores da praça. Operários, porteiros e babás com crianças eram tão presentes que a praça servia não só como ponto de encontro informal, mas também de realização de eventos culturais ligados à cultura nordestina.
O fluxo constante de trabalhadoras domésticas no local pode ter sido influenciado também pela Igreja de Nossa Senhora de Copacabana, ao lado da praça. Lá, funcionou a partir de 1971 um dos núcleos da Pastoral da Doméstica, iniciativa da Igreja Católica que, similar a movimentos como a Juventude Operária Católica, tinha uma relação próxima à APED-RJ.
A praça também é emblemática para a história sindical e política das domésticas, pois foi ali que aconteceu o primeiro ato público realizado pela categoria no Rio de Janeiro.
Anazir Maria de Oliveira, a Dona Zica, relembra que todo dia 27 de Abril, Dia da Empregada Doméstica, era comum que, após a realização da missa na Igreja Nossa Senhora de Copacabana, patroas distribuíssem rosas para suas funcionárias. Por entender essa tradição como superficial, em 1984 ela propôs um evento que, até onde se sabe, foi inédito dentro da mobilização coletiva da categoria a nível nacional. Foram confeccionados bottons e camisetas e decidiu-se em Assembleia realizar um ato público naquele local. A princípio, a proposta foi recebida com receio por aquelas que acreditavam que trabalhadoras domésticas não iriam querer se identificar como tal por vergonha. No entanto, o movimento foi surpreendente. Nair Jane lembra que: “colocamos 500 domésticas na Praça Serzedelo Correia, você não via nada, só via as meninas”. A imprensa logo chegou ao local. Além disso, outros sindicatos e movimentos sociais se uniram ao ato em solidariedade. Certamente, as domésticas eram impactadas pelo clima generalizado de mobilização social e política que o país vivia naquele primeiro semestre de 1984, com protestos, comícios e manifestações demandando democracia e o fim da ditadura, na campanha que ficou conhecida como Diretas Já.
Na imprensa, o Jornal do Brasil noticiava que: “Muitas foram à praça como fazem há anos: com o uniforme de babá, a criança da patroa no carrinho […] Mas ontem foi diferente: afinal, era o Dia da Doméstica”. Por conta disso, “elas esqueceram o horário de voltar, dançaram na Praça Serzedelo Correia, em Copacabana, e reivindicaram melhores condições de trabalho”. Segundo o jornal “eram tão animadas e gritavam tanto, que [era] impossível passar por ali sem parar para ver”. A então vereadora pelo PT, Benedita da Silva, aliada de longa data da categoria e presente no evento, lembrou-se de quando trabalhava como doméstica e das más condições de trabalho dispensada às trabalhadoras, incluindo a questão dos espaços de habitação precários das mensalistas, os “quartinhos de empregada”.
De lá para cá, o movimento sindical das trabalhadoras domésticas continuou a crescer e negociou direitos para categoria em diversos momentos, como na Constituinte, na PEC das domésticas, na Lei Complementar nº 150, e em fóruns multilaterais como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), com a Convenção 189, pela dignidade do trabalho doméstico.
São várias as praças do Rio de Janeiro lembradas pelo movimento das trabalhadoras domésticas, a exemplo da Praça General Osório, em Ipanema, a Sanz Peña, na Tijuca, e o Largo do Machado, no Catete. Neste último, inclusive, um ato similar foi realizado três anos depois, também no dia 27 de abril. No entanto, a Praça Serzedelo Correia se destaca por ser, com frequência, um espaço de referência para a sociabilidade de trabalhadores migrantes e onde trabalhadoras domésticas, muitas delas também de fora do Estado, organizaram uma manifestação pública inédita e importante na história da luta por direitos dessa categoria tão fundamental nos mundos do trabalho no Brasil.
Manchete do Jornal do Brasil sobre manifestações da trabalhadoras domésticas cariocas, 28 de abril de 1984
Para saber mais:
- Barbosa, Fernando Cordeiro. A ritualização do pertencimento: O “paraíba” e seus espaços. Travessia – revista do migrante, n. 38, p. 23-26, 2000.
- Chalhoub, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001.
- Esteves, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
- Fontes, Paulo et al. ‘Eu tinha minha liberdade’: Entrevista de Nair Jane de Castro Lima, liderança histórica das trabalhadoras domésticas do Rio de Janeiro. Revista Mundos do Trabalho, Santa Catarina, v. 10, n. 20, p. 167-189, 2018.
- Getirana, Yasmin. Na casa e na causa: A organização sindical das trabalhadoras domésticas (Rio de Janeiro, 1961-1973). Rio de Janeiro: Editora Telha, 2023.
Crédito da imagem de capa: Praça Serzedelo Correa nos anos 1950. É possível notar a presença de várias babás e trabalhadoras domésticas uniformizadas. Fonte: https://copacabana.com/praca-serzedelo-correia
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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