LMT #115: Núcleo fabril de Pedra, Delmiro Gouveia (AL) – Telma de Barros Correia

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Telma de Barros Correia
Arquiteta, professora aposentada do IAU-USP



Nos anos iniciais do século XX, depois de desentendimentos com o vice-presidente da República, o governador de Pernambuco e o prefeito do Recife, o que inviabilizou seus negócios naquela cidade, o comerciante Delmiro Gouveia se transferiu para o sertão de Alagoas. Entre 1912 e 1917, construiu nas proximidades do rio São Francisco uma fábrica de linhas de costura, o núcleo fabril de Pedra, para abrigar seus operários e gerentes e uma usina de eletricidade junto à cachoeira de Paulo Afonso, além de estradas e outras obras de infraestrutura. O empreendimento logo se tornou objeto de admiração de intelectuais, entre os quais Oliveira Lima, Oliveira Vianna e Assis Chateaubriand, que o interpretaram como um indício das potencialidades econômicas do sertão. Além da técnica e da ousadia da iniciativa, assinalou-se a “ordem” e o “irrepreensível” asseio da fábrica, das ruas e casas Pedra e de seus moradores.

Confinada em um espaço cercado, às margens da Estrada de Ferro Paulo Afonso, Pedra reunia cerca de 250 casas, escola, hotel, prédio destinado a bailes e sessões de cinema, pista de patinação e campo de futebol. Não tinha templo religioso e o comércio era feito em feira semanal e na localidade vizinha de Pedra Velha, separada do núcleo fabril por uma cerca e pela linha de trem.

A quase totalidade dos moradores de Pedra era composta por famílias do seu entorno, atraídas por trabalho e moradia. Essa massa de sertanejos pobres engajada no emprego fabril e vivendo em condições de higiene avaliadas como impecáveis foi vista por Assis Chateaubriand como uma vigorosa resposta à revolta de Canudos às dúvidas acerca das possibilidades de levar o progresso ao sertão. Havia, ainda, famílias de técnicos especializados, gerentes e do proprietário, algumas provenientes do Recife, como a do próprio Delmiro Gouveia.

O ordenamento espacial de Pedra foi o ponto de partida de um amplo esforço realizado no sentido do controle e do recondicionamento físico e mental dos moradores. As baixas densidades, os grandes vazios e a regularidade das construções foram as características definidoras de seu plano. As casas eram de alvenaria, cobertas com telhas de barro do tipo canal e tinham piso de tijolo. As casas-padrão, compunham-se de duas salas, dois quartos e cozinha, além de cômodo para banhos e sanitário na extremidade do quintal. Para os funcionários mais graduados eram destinadas casas maiores. Essas eram providas de água encanada, enquanto as casas-padrão eram abastecidas através de chafariz. As moradias agrupavam-se em compridos blocos percorridos por uma galeria, que se abria para ruas retas e largas, ao mesmo tempo grandiosas e singelas. Para alcançar a dispersão e as condições sanitárias almejadas, também contribuíam vias sanitárias, amplos quintais e vastas extensões de terras desocupadas entre os blocos de moradias.


Pedra também se notabilizou pelo rígido controle imposto sobre os moradores. Regulamentos, vigilância severa, multas, castigos e humilhações eram os instrumentos básicos utilizados na imposição de disciplina no trabalho e de novos padrões de higiene, vestuário e comportamento.


Tratados como problema de ordem pública, os rapazes solteiros sem família moravam fora do núcleo e estavam proibidos de frequentar as casas das famílias operárias. Os acessos eram controlados por fiscais, que chegavam a realizar rondas noturnas para surpreender casais de namorados que conseguissem burlar as rígidas normas do lugar. No cinema, homens e mulheres sentavam-se em locais separados, mesmo que fossem casados. Formas usuais de divertimento, como jogos de azar, caça e jogo do bicho, eram proibidas. Exigia-se a caiação regular das casas, punindo-se com multas os que se descuidavam de sua conservação e limpeza. Aos funcionários graduados, eram reservadas casas situadas nas extremidades dos blocos e a função de “inspetores de quarteirão”.

Esse controle rigoroso parece ter impedido não apenas a ocorrência de greves e movimentos reivindicatórios, quanto de qualquer tipo de organização autônoma dos trabalhadores de Pedra, enquanto o lugar esteve sob a direção de Delmiro Gouveia. Há notícias de operários espancados ou amarrados em um tronco sob a acusação de roubos ou de brincadeiras em serviço, assim como de outro expulso da área cercada em torno do núcleo fabril e obrigado a embarcar no primeiro trem de carga a deixar o lugar.

 Em 1917, Delmiro Gouveia foi assassinado, crime atribuído a pistoleiros a serviço de um fazendeiro da região envolvido em disputas de terras com o industrial.  Após a morte de Gouveia, a fábrica, seu núcleo fabril e demais anexos foram comprados pela família Menezes, proprietária de indústrias em Pernambuco. Sob os novos donos foi erguida uma igreja em Pedra, mas o conjunto de moradias pouco cresceu. Contudo, fora dos limites das propriedades da fábrica, do lado oposto aos trilhos do trem, a povoação denominada Pedra Velha, ampliou-se continuamente. Em 1952, Pedra foi desmembrada da cidade de Água Branca, convertendo-se em sede de um novo município, batizado de Delmiro Gouveia.

A partir da década de 1960, a fábrica começou a vender as casas aos operários, no âmbito de acordos trabalhistas envolvendo indenizações por tempo de serviço. À venda, seguiu-se um movimento de reformas internas e nas fachadas das casas. A cerca que confinava o conjunto foi retirada e o núcleo operário e a localidade de Pedra Velha se integraram. No final da década de 1990 o prédio do cinema foi inteiramente reformado para abrigar a rádio Delmiro AM e FM, de propriedade dos donos da fábrica. Em março de 2016 a fábrica encerrou suas atividades, após o corte no fornecimento de energia elétrica, devido a débito vultuoso com a empresa de distribuição de eletricidade de Alagoas.

Do núcleo fabril que lhe deu origem, a cidade de Delmiro Gouveia guarda a disposição de algumas ruas e quarteirões e raras casas dotadas do alpendre original, além da igreja dos anos vinte e das instalações industriais, essas muito alteradas. O industrial é homenageado no nome da cidade e sua obra é celebrada em um museu instalado na antiga estação de trem. Ao trabalho, que ergueu e habitou o núcleo fabril e movimentou as máquinas da fábrica, é reservado um papel secundário na narrativa de pioneirismo industrial construída em torno da trajetória de Delmiro Gouveia e da localidade de Pedra.

Rua 13 de Maio, em Pedra. Sem data.
Fonte: Museu Regional Delmiro Gouveia, Delmiro Gouveia, Alagoas.

Para saber mais:

  • CHATEAUBRIAND, Assis. Uma resposta a Canudos. In: Resposta a Canudos: reportagens e ensaios. Recife: COMUNICARTE; Brasília: Fundação Assis Chateaubriand, 1990.
  • CORREIA, Telma de Barros. Pedra: plano e cotidiano operário no Sertão. Campinas: Papirus, 1998.
  • MENEZES, Hildebrando. Delmiro Gouveia: vida e morte. Recife: CEPE, 1991.

Crédito da imagem de capa: Pedra em 1929, vendo-se os blocos de casas e, à esquerda, o prédio destinado ao cinema. Fonte: Museu Regional Delmiro Gouveia.


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