LMT #119: Livraria Internacional, Porto Alegre (RS) – Lucas Becker Delwing


Lucas Becker Delwing
Mestre em História pela UFRGS


A Livraria Internacional é um lugar muito importante para a memória da luta operária e antifascista da cidade de Porto Alegre. Fundada em fevereiro de 1925 por Frederico Kniestedt e Elisa Augusta Hedwig, dois imigrantes alemães de ideologia anarquista, a livraria se consolidou como um importante local de difusão de textos e ideias libertárias e antifascistas.  Inicialmente, o endereço da livraria foi na Rua Voluntários da Pátria, n. 1201 e depois do ano de 1927, no n. 1195 da mesma rua, atualmente próximo da Estação Rodoviária.

Esse lugar foi importante para que os trabalhadores da capital gaúcha pudessem se encontrar para organizar as suas lutas. Em 1929, por exemplo, o prédio foi local de reunião do Sindicato dos Marceneiros, Carpinteiros e Classes Anexas, do Sindicato Padeiral, do Sindicato dos Canteiros e Classes Anexas, do Sindicato dos Trabalhadores em Moinhos, do Sindicato dos Oficios Vários. Além disso, nesse mesmo ano, a Livraria foi a sede da Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), sendo sua última sede sob hegemonia dos anarquistas.

Fazendo justiça ao seu nome de Livraria Internacional, o estabelecimento teve um papel importante na circulação de livros, jornais e também de imagens que vinham da Europa, especialmente produtos importados da Alemanha, país de origem da família Kniestedt. Em uma época na qual a comunicação não era tão rápida e ágil como nos dias de hoje, essa livraria representou um importante espaço de intercâmbio cultural, onde as fronteiras nacionais eram permeáveis. Além dos materiais importados, também era possível encontrar textos em português, principalmente jornais de cunho anarquista. Em concordância com a ideologia dos seus proprietários, esse era um espaço primordialmente dos anarquistas, embora outras correntes, especialmente social-democratas, também tenham circulado pelo espaço.  Para os seus frequentadores, a livraria também oferecia um serviço de empréstimo de livros, funcionando de forma semelhante a uma biblioteca.

Por conta disso, a Livraria Internacional se tornaria um símbolo da luta antifascista na cidade nos anos 1930, como comenta Kniestedt em suas memórias: “As vitrines da minha loja há muito tempo representavam uma trava no olho dos nazistas; ali eram expostos os livros de autores que estavam proibidos no ‘Terceiro Reich”. Além disso, nas vitrines da loja haviam inscrições berrantes como “proibido por Hitler” e “Hitler, tuas vítimas acusam”.

Em suas memórias, Frederico Kniestedt relata que uma vez a Livraria Internacional quase foi vandalizada por um grupo de jovens hitleristas.  De acordo com o seu relato, os simpatizantes nazistas se prepararam para quebrar os vidros da vitrine da livraria. Apesar da família Kniestedt não ter origem judaica, esse tipo de ação provavelmente foi inspirada na onda de violência antissemita que ocorria na Alemanha contra os negócios administrados por judeus. Na ocasião, as vidraças da loja foram salvas por um vizinho de Kniestedt que observou a movimentação dos jovens uniformizados e os entregou à polícia antes que tomassem alguma atitude.


Em 1933, a Livraria Internacional passou a ser o local de organização da Liga Für Menschenrecht (Liga dos Direitos Humanos) e da redação do jornal Aktion, tornando- se assim  o principal centro da luta antinazista na capital gaúcha.


A Liga realizava reuniões regulares na Livraria Internacional com o objetivo de discutir a conjuntura do nazismo no Brasil e na Alemanha. Esse grupo agrupava um conjunto heterogêneo de falantes do idioma alemão, cujo objetivo era mobilizar a comunidade germânica contra o regime de Hitler. Inicialmente, o grupo era composto por 20 pessoas, entre elas estavam, além de anarquistas apartidários, alguns democratas, social-democratas e membros do Partido Comunista do Brasil (PCB).

Dessa forma, a Livraria Internacional teve um papel importante na circulação de livros, jornais e também de imagens que vinham da Europa. Foi nesse ambiente que o pintor Carlos Scliar teve seu primeiro contato com o expressionismo alemão, quando visitava a Livraria Internacional junto de seu pai, Henrique Scliar, uma das lideranças dos trabalhadores judeus de Porto Alegre. O proprietário da livraria, Frederico Kniestedt, dedicou o resto da sua vida para combater a difusão da ideologia nazista na comunidade germânica. De acordo com a sua nota de óbito de 1947, publicada no jornal Correio do Povo, ele teria dito que “Se o nazismo vai durar mil anos, como afirma Hitler, eu quero viver 1001 anos para assistir à sua derrota”.

Ao que se sabe, a livraria seguiu funcionando até a morte de Frederico Kniestedt. Sua esposa Elisa Augusta Hedwig faleceu alguns anos antes, em 1942.  O restante da família seguiu outros rumos. Hoje em dia, o prédio ainda existe, mesmo que bastante modificado. Infelizmente nele não há nenhuma referência a esse passado de resistência do movimento operário e da luta antifascista em Porto Alegre, o que representa mais um episódio de esquecimento da memória dos trabalhadores.

Prédio da livraria Internacional nos dias atuais. Registro do Google Street View 2022


Para saber mais:

  • KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um imigrante anarquista. Tradução, Introdução, Epílogo e Notas de Rodapé: René E. GERTZ. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. 1989.
  • BARTZ, Frederico Duarte. Os espaços da luta antifascista em Porto Alegre (1926-1937). Revista Cantareira, n. 34, 25 jan. 2021.
  • GERTZ, René. Operários Alemães no Rio Grande do Sul (1920-1937) ou Friedrich Kniestedt também foi um imigrante alemão. Revista Brasileira História. São Paulo: ANPUH/ Ed. Marco Zero, v. 6, nº 11, set. 85/fev. 86.
  • ECKL, Marlen. Entre a Resistência e a Resignação: as atividades políticas do exílio alemão no Brasil. 1933-1945. Projeto História.São Paulo, n. 53, Mai-Ago, 2015

Crédito da imagem de capa: KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um imigrante anarquista. Tradução, Introdução, Epílogo e Notas de Rodapé: René E. GERTZ. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. 1989.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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