Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Contribuição Especial #22: Qual é a verdadeira origem do Dia Internacional das Mulheres?



Gabriela Mitidieri
Historiadora feminista da Universidade de Buenos Aires e
Integrante da Associação Argentina para a Pesquisa sobre a História das Mulheres e Estudos de Gênero (AAHIMEG)


Um incêndio em uma fábrica têxtil em Nova York? Tudo começou assim? Nesse pequeno artigo procuramos não apenas revisar o mito fundacional do Dia Internacional das Mulheres como também analisar as disputas para que fosse esse e não outro o acontecimento que terminou sendo recordado. Quais foram os motivos, os interesses políticos? Que sujeitos e que lutas ficaram nos bastidores quando se definiram os contornos precisos de uma efeméride? Bem vindos e bem vindas a uma história global conectada em que se entrelaçam as andanças de costureiras e sufragistas norte-americanas, rebeldes russas, socialistas reunidas na Dinamarca e muito mais.

Cada 8 de Março ativa um sentimento de irmandade feminista internacional que, além de nos conectar com lutas contemporâneas ao redor do mundo, nos torna herdeiras de uma rica história de pioneiras que nos precederam. Sem dúvida, na hora de responder à pergunta sobre a origem da efeméride, até a mais aguerrida e embasada militante começa a balbuciar.

É difícil entender o que tem a ver um incêndio em uma fábrica têxtil, uma greve de operárias, a luta pelo sufrágio feminino, as andanças da socialista alemã Clara Zetkin e até a Revolução Russa com as origens do 8 de Março. Vamos examinar as costuras da fabricação de um mito e as disputas que levaram a que um relato histórico em particular saia vitorioso quando nos perguntam o que aconteceu no 8 de março. Comecemos.

O incêndio da Triangle Shirtwaist Company

Esta é uma das origens favoritas: o 8 de março de 1857. Logo após uma poderosa greve por melhores condições de trabalho, centenas de operárias teriam sido brutalmente assassinadas em um incêndio provocado pelos próprios donos da fábrica em que trabalhavam. As historiadoras que reconstituíram esse episódio chegaram a conclusão que a) o incêndio aconteceu e b) a greve ocorreu. Mas não ocorreram juntos em 1857 e nem em um 8 de março.  O incêndio foi no dia 25 de março de 1911 e ceifou a vida de 146 trabalhadorxs, em sua maioria mulheres. A greve foi anterior, em setembro de 1909. Começou na Triangle Shirtwaist e contou com a adesão de cerca de 40 mil trabalhadorxs do setor de confecção de Nova York durante 13 semanas. Não foi uma greve vitoriosa, mas mostrou a capacidade de coordenação e perseverança das operárias da cidade.

Quais significados dessa origem sobreviveram? Nem sempre nesse mito se menciona a greve que precedeu ao incêndio. Talvez haja aí uma disputa conhecida: como conseguir que não seja o status de vítima o único que se diga de nós. E também e exercício de recordar que, juntas, é possível sustentar uma greve de quase 100 dias.

Um Woman’s Day sufragista

Contar a história desse outro marco do dia das mulheres requer conectar alguns pontos do hemisfério norte que mostram a existência de sólidas redes internacionalistas no começo do século XX. Em agosto de 1907 ocorreu em Stuttgart a I Conferência Internacional das Mulheres Socialistas. Ali, Clara Zetkin argumentou sobre a importância de apoiar a luta pelo sufrágio feminino em todo o mundo. Em maio do ano seguinte, militantes socialistas dos Estados Unidos adotaram a iniciativa de Zetkin e definiram o último domingo de fevereiro para realizar manifestações para difundir a causa das sufragistas socialistas num grande Woman’s Day. O sucesso foi tanto que a iniciativa se repetiu em 1909. Repercutindo o sucesso, Zetkin redobrou a aposta. Em 1910, na II Conferência Internacional, desta vez em Copenhague, ela apresentou uma moção para organizar a celebração de um Dia Internacional da Mulher com a intenção de amplificar a luta pelo direito ao sufrágio feminino. Um 8 de Março? Bem, ainda não. Naquele ano e nos seguintes a data foi variando de país a país entre o 19, o 12 e o 2 de março.

Um 8 de Março que desembocou em Revolução

Um dia internacional da Mulher que caiu em um 8 de março foi o que ocorreu em 1917, em Petrogrado. Claro que o calendário juliano vigente na Rússia czarista marcava para aquelas mulheres o dia 23 de fevereiro, de modo que até o primeiro 8 de Março de que temos notícia documentada poderia ser questionado por quem estiver em busca de efemérides precisas. Aqui se combinaram dois processos históricos simultâneos: as reuniões anuais de mulheres socialistas da Rússia, que desde 1913 ocorriam a fins de fevereiro, e o mal estar generalizado causado pela carestia de alimentos e pela participação russa na Primeira Guerra Mundial.

Protestos massivos protagonizados por mulheres naquele 8 de março (ou 23 de fevereiro?) levaram à queda do Czar, à Revolução de Fevereiro, e depois à mais famosa Revolução de Outubro. A participação de uma das mais destacadas líderes da insurreição popular, a bolchevique Alexandra Kollontai no Zhenotdel – uma espécie de ministério de gênero daquele momento – foi prova do engajamento feminista nos inícios da revolução. 

Escrever e re-escrever a história

A história do 8 de Março é um exemplo perfeito de como o passado é um território em disputa e de como os apagamentos e apropriações nunca são inocentes. A historiadora espanhola Isabel Álvarez González nos conta que pouco restou dessa marca de origem insurgente, em parte por obra do stalinismo que buscou enaltecer as russas só como mães, e em parte porque depois da Segunda Guerra Mundial, por iniciativa da recém criada ONU, o 8 de Março se impôs como o dia para lembrar o trabalho das mulheres pela conquista da paz mundial. Também pode ser que, em tempos de Guerra Fria, fosse mais palatável nos Estados Unidos a comemoração de um incêndio numa fábrica têxtil  do que as gigantescas manifestações das socialistas no começo do século XX. De qualquer forma, a parte linda de uma lembrança é como ela brilha em um instante de perigo. Anos depois, o feminismo da Segunda Onda dos anos 1960 e 70 ia tomar em suas próprias mãos a data para transformá-la, de novo, em dia de luta.  Mas essa é uma outra história….


Tradução de Cristiana Schettini e Paulo Fontes.
Publicado originalmente em Diario com vos, 8/3/2022.


Crédito da imagem de capa: O crédito da imagem é: Festa do Dia do Trabalho no Clube de Regatas Vasco da Gama, Rio de Janeiro, RJ. 01/05/1942. Fundo Agência Nacional. Arquivo Nacional. Notação: BR_RJANRIO_EH_0_FOT_EVE_02721_d0025de0030

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