Renata Figueiredo Moraes (UERJ/LEHMT)
Em 1922, há cem anos, o mês de novembro iniciara com uma péssima notícia para o mundo das letras: a morte do literato Afonso Henriques de Lima Barreto, aos 41 anos de idade. Seu falecimento ocorrera em sua casa, no bairro de Todos os Santos, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, onde morava junto com seu pai e três irmãos. O pai do literato, João Henriques de Lima Barreto faleceria dias depois, aos 69 anos de idade. O centenário de morte desses dois personagens da história do Rio de Janeiro é um mote para ligarmos literatura e trabalho, principalmente o exercido por homens negros no Império.
João Henriques nascera no Rio de Janeiro, em 1853, filho de uma liberta com um português (que negou a paternidade). Os seus primeiros estudos foram realizados no Instituto Comercial do Rio de Janeiro e completou sua formação, inclusive em Língua estrangeira, no Liceu de Artes e Ofício, recebendo a qualificação da arte tipográfica no Imperial Instituto Artístico.
O ofício em que se especializara João Henriques, a tipografia, era responsável pela impressão de jornais e exigia o conhecimento das letras. Seus praticantes tinham um importante histórico de organização e mobilização por melhores condições de trabalho. No mesmo ano de nascimento de Henriques, foi criada no Rio de Janeiro a Associação Tipográfica Fluminense, que agregaria entre seus quadros de sócios trabalhadores de diversas tipografias interessados no apoio mútuo em caso de necessidades extremas, como falecimento ou adoecimento, nas iniciativas culturais e no apoio ao desenvolvimento da arte tipográfica promovidas pela associação. Em 1858, alguns tipógrafos ligados a essa associação, que recebera o título de Imperial em 1856, organizaram um movimento grevista que paralisou a circulação de três importantes jornais diários da Corte. A partir dessa greve foi criado o Jornal dos Tipógrafos, que serviu para dar esclarecimentos sobre a mobilização à população, informando sobre os constantes atrasos de salário, baixa remuneração e longas jornadas de trabalho vividas pelos trabalhadores das tipografias. Esse jornal diário circulou por 60 edições e influenciou outros periódicos dessa mesma categoria. Nos anos seguintes, os tipógrafos continuaram organizados e mobilizados, surgindo ao longo de toda a segunda metade do século XIX associações mutualistas ligadas a esse ofício e jornais escritos por eles, onde rememoravam o movimento de 1858, discutiam as ações da categoria e o desenvolvimento da técnica tipográfica, principalmente a praticada em outros países.
Foi nesse ambiente de mobilização dos tipógrafos que, na década de 1870, João Henriques entrou para a Tipografia Nacional, responsável por alguns jornais e pela publicação dos órgãos oficiais do Império. Em 1873, tornou-se sócio do jornal O Futuro, órgão que circulou por 20 números, e que tinha entre os assuntos o cotidiano da política e a reprodução de folhetins e poesias, entre elas as de Castro Alves (Vozes d´Africa). Nos textos políticos, sem assinaturas, havia alguns traços de identidade dos seus autores: “filhos do povo”; “educados no trabalho”; “homens livres”.
João Henriques não fugiria da prática comum dos seus pares de se associar. Em 1880 foi eleito como conselheiro da Associação Nacional dos Artistas Brasileiros – Trabalho, união e moralidade e no ano seguinte tornou-se vice-presidente, alternando entre esse cargo e a participação no conselho da Associação. Concomitante a sua participação no quadro diretivo da Associação, João Henriques completava seus estudos no Liceu de Artes e ofício, no curso comercial e na língua francesa. Em 1886 tornou-se presidente da Associação de Auxílios Mútuos dos Empregados da Imprensa Nacional e Diário oficial, tipografia a qual trabalhava, e em 1888 chegou ao cargo de vice-presidente da Imperial Associação Tipográfica Fluminense.
Em 13 de maio de 1881 nasceu seu primeiro filho, Afonso Henriques, que ganhou o primeiro nome possivelmente em homenagem ao senador Afonso Celso de Assis Figueiredo (Visconde de Ouro Preto), padrinho de casamento de João Henriques e Amália Augusta, pais do literato. O apadrinhamento de Ouro Preto a João Henriques e aos seus estudos permitiu que um homem negro, filho de uma ex-escrava, alcançasse um prestígio profissional. João Henriques levou seu filho no dia do seu aniversário de 7 anos para testemunhar os festejos da abolição, entre eles o que ocorreu no Largo do Paço na ocasião da assinatura da lei que decretou o fim da escravidão. A imprensa fluminense foi a responsável pela organização dos festejos pela abolição e a classe tipográfica, tida como “homens do progresso, representantes da rainha das artes”, também fez parte dessas celebrações, tendo João Henriques como representante dos tipógrafos da Imprensa Nacional na comissão dos festejos. Na mesma ocasião, a categoria decidiu criar uma sociedade tipográfica para celebrar o “dia da liberdade”, surgindo assim o Centro Tipográfico 13 de maio, com João Henriques como sócio e conselheiro, reforçando entre os tipógrafos a antiga causa da abolição. Ainda em 1888, sairia publicado o Manual do aprendiz compositor, de Jules Claye, traduzido do francês para o português por João Henriques, sendo a primeira obra sobre o tema no Brasil, preenchendo uma lacuna sobre o conhecimento da arte tipográfica e suas técnicas, até então inexistentes em língua nacional. Além da atuação na tipografia, João Henriques ainda ocupava seu tempo como examinador de português da escola noturna gratuita do Congresso Operário de Beneficência, em 1887.
Seus últimos momentos na tipografia foram como mestre da oficina de composição da Imprensa Nacional e paginador da Tribuna Liberal, jornal de propriedade do seu padrinho, o Visconde de Ouro Preto. Nos meses seguintes, o Brasil mudara. O Gabinete presidido por Ouro Preto fora derrubado pelos militares, dando início ao período republicano em 15 de novembro de 1889. O destino da família Lima Barreto seria afetado por esse golpe, perdendo João Henriques seu posto de trabalho e indo para um emprego longe da cidade, na Colônia dos Alienados na Ilha do Governador. Essa mudança de regime e de emprego afetaria para sempre a sua saúde, e após alguns anos administrando a Colônia a piora da sua saúde não permitiu que ele continuasse em atividade, indo assim com a família para o Todos os Santos, no subúrbio, em uma espécie de exílio, que afetaria também o destino do seu filho, o jovem Lima, que se tornaria um burocrata do funcionalismo público (e talvez, por isso, escritor), ao invés de completar seu curso de engenharia.
A literatura de Lima Barreto fala do cotidiano de homens como ele e seu pai. Homens negros vivendo as intempéries dos regimes políticos e sem garantias seguras de sobrevivência, mesmo na posse de alguns ofícios. A atuação de João Henriques em associações mutualistas refletia as incertezas do mundo do trabalho no Império, ainda sob a vigência da escravidão. A valorização do ensino técnico e sua performance como examinador e divulgador de técnicas tipográficas, que melhorariam o ofício como um todo, demonstram o quanto esse homem estava ciente dos limites que os trabalhadores livres tinham naquele contexto. A República ainda renderia muitas decepções à família, principalmente ao literato, que em seus escritos versava, dentre outros temas, sobre as condições de trabalho dos homens e de mulheres, principalmente negras, sem deixar de mencionar a trajetória do pai como um exímio tipógrafo, mas com poucas referências à atuação política e social de João Henriques. Na ocasião do seu falecimento, João já se tornara apenas o pai do grande literato Lima Barreto.
Referências bibliográficas:
Vitorino, Artur José Renda. Máquinas e operários. Mudança técnica e sindicalismo gráfico (São Paulo e Rio de Janeiro, 1858-1912). São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000
Schwarcz, Lilia Moritz. Lima Barreto, triste visionário. São Paulo: Companhia das letras, 2017
Moraes, Renata Figueiredo. “A defesa do trabalho e a construção da nação: tipógrafos, industriais e autoridades da Corte por uma ordem no mundo do trabalho (1870)”. In: Silva, Ana P. B. Br; Terra, Paulo; Pereira, Ana Carolina H. Narrativas de formação da nacionalidade. Nação, identidade e memória no Brasil e na Ibero-América (do século XIX ao XX). Rio de Janeiro: Mauad X, 2020
Créditos da imagem de capa: João Henriques de Lima Barreto, s/d, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindli