Daniel Horta Alvim
Doutor em História pela UFF
Durante o ano de 1983, a economia brasileira apresentava uma persistente alta inflacionária e um alarmante nível de desemprego, fatores advindos da crise pela qual minguava o chamado “milagre econômico” Brasileiro. Os drásticos efeitos sociais promovidos por esta crise econômica podem ser medidos pelos dados divulgados pelo DIEESE, em setembro daquele ano. De acordo com aquele órgão sindical, o salário mínimo era, naquele momento, incapaz de garantir a alimentação adequada para uma única pessoa. E como consequência deste irrisório poder de compra, a maior parte das famílias conviviam com o drama da fome e subnutrição, em um cotidiano cada vez mais marcado pela carestia e crescimento da pobreza extrema. Cerca de 67% da população brasileira estava subnutrida e 48% estavam abaixo da linha da pobreza.
Foi diante deste cenário que os grandes jornais de circulação nacional passaram a divulgar notícias a respeito de uma série de mobilizações populares, realizadas em diversas regiões do território nacional. Homens, mulheres e crianças adentravam os supermercados e armazéns públicos para obter (à força) a comida necessária para a sua alimentação, no fenômeno que ficaria conhecido como “saques de 1983”. Somente no mês de setembro, mais de 50 saques ocorreram na região metropolitana do Rio de Janeiro e São Paulo. No Nordeste, as grandes capitais e as cidades do interior sofreram diversos saques sucessivos, ao longo de todo ano.
De fato, a prática de saquear supermercados e armazéns públicos para sanar a própria fome disseminou-se por todo o país. No interior do Nordeste, em algumas cidades, até cinco mil pessoas aglomeraram-se e buscaram alimentos. No Sudeste, os saques se concentraram nas periferias e regiões metropolitanas das grandes cidades. Ali chamavam a atenção o grau de violência e politização dos confrontos sociais, despertando bastante atenção da imprensa, pois frequentemente envolviam participantes mais organizados politicamente. Por este motivo, foram mais duramente reprimidos pelas forças policiais e por seguranças privados. De fato, é no noticiário dos grandes jornais de circulação do Rio de Janeiro e de São Paulo que encontramos o maior número de informações sobre intensos conflitos abertos (agressões, tiros, mortes) gerados pelos saques a supermercados destas capitais. Já no Nordeste, houve uma tendência para maior tolerância por parte das autoridades públicas e setores privados, havendo muitos exemplos de negociações e entregas de alimentos às populações famintas no próprio momento dos saques.
Uma explicação para essas diferenças de tratamento estaria no fato do maior temor que a organização política dos trabalhadores nas grandes capitais do Sudeste gerava nas autoridades públicas e nos grupos empresariais, bloqueando a abertura de qualquer tipo de concessão às lutas populares. No caso dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, que haviam acabado de eleger governadores da oposição (Franco Montoro e Leonel Brizola, respectivamente), a politização da questão dos saques tornou-se ainda mais aguda. Muitos acusavam as esquerdas de inflamarem as massas para apenas desestabilizar a ordem social da ditadura. Outros argumentavam tratar-se de turbas imersas numa histeria coletiva ou impulsos descontrolados de uma multidão faminta.
Na verdade, os saques de 1983 foram resultados de um contexto histórico bastante específico, embora contando com os elementos das contradições já estruturais e históricas da desigualdade social brasileira. É preciso ressaltar, no entanto, que a prática dos saques remonta a antigas tradições culturais populares, sobretudo no interior do país e na região Nordeste. Nesses lugares, historicamente marcados pela desigualdade social e por severas conjunturas de fome, a população mais pobre criou a prática social de exigir comida dos governos locais ou dos grupos de comerciantes privados, quando a carestia atingia níveis críticos de miséria generalizada.
Um exemplo foi a mobilização popular ocorrida em Tabira, Pernambuco, em setembro de 1983. Mil e quinhentas pessoas chegaram ao centro da cidade carregando sacolas vazias e exigindo comida. Após investirem contra as barracas das feiras locais, foram dispersados pela polícia. Diante da pressão popular, a prefeitura resolveu distribuir comida à população pedinte.
Para além do reconhecimento desta tradição, algumas questões importantes ainda ficam: afinal, qual era a legitimidade subjetiva que impulsionava a população em direção aos centros detentores de comida? Por que os grupos de trabalhadores, chefes de família e donas de casa acreditavam poder adentrar os supermercados e armazéns públicos para pegar comida à força, superando, não apenas a crítica moral da sociedade, mas também ressignificando seus próprios princípios éticos de justiça? Dito de outra forma, uma vez que estes grupos não se enxergavam como quadrilhas organizadas para o crime, mas sim, em geral, como trabalhadores, quais foram os elementos subjetivos que impulsionaram e legitimaram os atos famélicos, para além das tradições populares já existentes até então?
Certamente, o contexto histórico do ano de 1983 é uma importante chave para se chegar a estas respostas. Uma série de mobilizações populares pela redemocratização do país ocorridas naquele período criavam um ambiente extremamente favorável para que os grupos populares entendessem como legítimas as suas exigências pelo direito à garantia da alimentação, ainda que sob a forma de saques a supermercados e armazéns públicos.
As lutas nacionais pelo fim da ditadura, a reorganização do pluripartidarismo, a retomada do sindicalismo autônomo e de movimentos sociais em larga escala, o surgimento da CUT, as greves generalizadas, a eleição de governos estaduais oposicionistas na região Sudeste, e o prenúncio do movimento das Diretas Já, entre outros, forjaram um contexto histórico no qual se constituíram legítimas as lutas pela retomada e busca de novos direitos. E inegavelmente, como consequência deste ambiente histórico, os saques de 1983 estavam inseridos em um movimento político que os tornavam amplamente legítimos dentro do imaginário popular.
Mas qual era o perfil dos chamados “saqueadores”? Através dos noticiários de jornais é possível reconhecer que os saques foram promovidos por pessoas das classes mais miseráveis e pobres do país, trabalhadores desempregados e assalariados, contando com grande participação de mulheres e, até mesmo crianças, em diversos atos e lutas em busca de alimentos. Em geral, as multidões entravam nos armazéns e supermercados e pegavam os alimentos para, em seguida, fugir em direção às ruas e comunidades em que viviam.
Os Saques no Rio de Janeiro, setembro de 1983″. Referência: Veja, Edição 784, Setembro de 1983. p. 42.
E ainda que seja plausível questionamentos éticos a respeito da legitimidade daqueles atos, sem nenhuma sombra de dúvida, as populações saqueadoras tiveram um importante papel histórico em pautar a fome como um problema fundamental. A intensidade e a quantidade de saques em 1983 estimularam cada vez mais as autoridades públicas, os partidos políticos, boa parte da imprensa e a população em geral a reconhecer a existência do problema, exigindo as soluções necessárias para resolvê-lo.
Os saques representaram o ponto mais extremo de um conjunto de mobilizações populares, intensificadas durante a década de 1980, que chamavam a atenção para o problema da fome brasileira. E uma de suas principais consequências políticas foi inserir o problema da fome nas pautas de lutas populares no combate à ditadura. Naquele momento, além de lutarem pela autonomia sindical, pela anistia, pela defesa do pluripartidarismo, das Diretas- já, entre outras, as organizações políticas e sindicais ligadas aos trabalhadores passaram a combater a fome no país.
Se antes dos saques de 1983 já existiam mobilizações neste sentido – como por exemplo, a criação, em 1981, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso Nacional para averiguar as causas da fome brasileira – logo após os saques, os debates sobre a questão se expandiram rapidamente por diversos meios institucionais. Diretamente ou indiretamente ligados aos efeitos políticos e sociais advindos dos saques, uma série de denúncias sobre a fome brasileira passaram a ser realizadas por diversas instituições, ao longo daquele período. Alguns exemplos foram:
– A Semana Josué de Castro, organizada pela PUC/SP em 1983, divulgando os índices oficiais e os estudos acadêmicos a respeito da fome nacional;
– O documento “Genocídio do Nordeste”, produzido pela Comissão Pastoral da Terra e pelo Instituto IBASE – sob a organização do sociólogo Hebert de Souza (o Betinho), denunciando o número de mortos por fome no Nordeste e as condições extremas de miséria e fome vivida pela população brasileira, em geral;
– A Campanha da Fraternidade – “Pão para quem tem fome” – Conduzida pela CNBB, entre 1984 e 1985;
– As séries de reportagens nos jornais de grande circulação do país e na televisão, como o programa “Globo Repórter” (1983), chamando a atenção para existência da miséria extrema no Nordeste brasileiro.
– A Carta aberta (1983) enviada pela CUT/CONCLAT ao presidente João Figueiredo, denunciando entre outras mazelas, a existência da fome entre as famílias trabalhadoras brasileiras;
– A introdução consistente dos debates sobre a fome nas Comissões e Subcomissões do Congresso Nacional (1986), durante a elaboração da Constituinte de 1988.
Saque a supermercado no Jardim São Luís, na periferia sul de São Paulo, 1983. Foto de Jorge Araújo/Folhapress
Foi justamente o grande impacto causado pela experiência histórica dos saques famélicos e a proporção social tomada pelos debates em torno da fome que fizeram, a partir dos anos 80, uma diversa gama de instituições – não apenas partidárias, mas também ligadas à sociedade civil – assumirem o combate contra a fome enquanto uma fundamental pauta de luta da política nacional.
Foi exatamente aproveitando as experiências adquiridas na luta contra a fome, no contexto dos saques de 1983, que o sociólogo Betinho (Hebert de Souza) passou a promover a campanha “quem tem fome tem pressa”, realizada durante a década de 1990. Na década anterior, no auge dos conflitos gerados pelos saques, Betinho havia colaborado para organização da obra “Genocídio do Nordeste”, denunciando a expansão da fome naquela região. Na década seguinte, a partir de 1993 com a “Ação da Cidadania”, passou a arrecadar fundos e doações de alimentos para distribuir entre a população faminta brasileira: cerca de 32 milhões de pessoas (aproximadamente 20% da população). Com apoio do próprio Herbert de Souza, foi elaborado o “Mapa da Fome: Subsídios à Formulação de uma Política de Segurança Alimentar”, culminando com a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (1993) e com a realização da I Conferência Nacional de Segurança Alimentar (1994).
Outro líder de destaque nacional a aproveitar as experiências políticas vividas no contexto dos saques de 1983 foi Luis Inácio Lula da Silva. Enquanto líder sindical, na década de 1980, atuou nas greves que criticavam o arrocho salarial imposto pela ditadura, indicando este fator como uma das causas de expansão da fome nacional. E durante a década de 1990, junto com Hebert de Souza, amadureceu ainda mais sua percepção sobre a importância da luta contra a fome, em particular nas chamadas “Caravanas da Cidadania” que percorreram diversas regiões do país. Já na campanha presidencial das eleições de 2002, apresentou o Programa “Fome Zero” como proposta política e social para garantir a adequada alimentação da população brasileira.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU), os resultados históricos obtidos pelo programa Fome Zero e as políticas sociais de transferência de renda, como o Bolsa Família, foram bastante contundentes. O Brasil conseguiu reduzir a fome severa de 10,6% de sua população total (cerca de 19 milhões de pessoas) no início dos anos 2000 para menos de 2,5% no triênio 2008-2010.
Os saques de 1983 tiveram uma forte contribuição histórica na luta pela conquista do direito à alimentação no Brasil recente. Lideranças políticas e sociais foram amplamente impactadas pela força das lutas populares e perceberam a importância de consolidar a garantia da alimentação entre os mais pobres e necessitados, seja através de campanhas ou de programas de políticas públicas. Porém, 40 anos depois, a fome voltou a crescer no Brasil. De acordo com a FAO, em 2022, cerca de 21 milhões de pessoas conviveram com a fome em nível severo. E considerando esta persistência do problema, torna-se fundamental revisitar e reconhecer as lutas pelos direitos de cidadania, em especial, o direito de alimentar-se adequadamente. Afinal, foi este o objetivo último dos grupos famintos e – forçadamente – saqueadores de 1983.
“Através da imprensa, os saques de 1983 foram incorporados ao imaginário coletivo”. Referência: Charge do Gê. Folha de São Paulo, abril, 1983.
PARA SABER MAIS:
ALVIM, Daniel. Mobilizações contra a fome: 1978-1988. Tese de Doutorado, UFF, 2005.
CASTRO, Josué de. Geografia da fome. Antares, 1976.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org). Raízes da Fome. Petrópolis: Vozes, 1983.
SADER, Eder. Quando os novos personagens entram em cena. Paz e Terra: Rio de Janeiro,1982.
THOMPSON, E. P. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras. 1998.
Crédito da imagem de capa: Imagem que se tornaria famosa em 1983 como símbolo da fome que assolava o nordeste retratava um sertanejo com um “calango”, que seria o seu único alimento naquele dia. Foto de Delfim Vieira. Acervo Cpdoc/JB
Parabéns pelo texto e pela publicação de parte de nossa história que ficou silenciada.
Abaixo deixo o link para outro texto, de minha autoria, que trata dos saques de 1983.
Abraços
https://lehmt.org/contribuicao-especial-26-o-quebra-quebra-de-1983-e-a-luta-dos-trabalhadores-desempregados/amp/