Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

LMT #122: Avenida Cairú, 688, Navegantes, Porto Alegre (RS) – Guilherme Machado Nunes


Guilherme Machado Nunes
Pós-Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF/FAPERJ)


O endereço, por si só, não significa muito: trata-se de um prédio residencial antigo, de quatro andares, razoavelmente preservado e com comércio no térreo. Muito parecido com uma dezena de outras construções na Zona Norte de Porto Alegre que remetem à primeira metade do século XX. O local chama mais a atenção quando percebemos que se encontra em um cruzamento muito movimentado: a esquina das avenidas Cairú e Farrapos. Em uma de suas frentes fica o Terminal Cairú, de onde saem os ônibus intermunicipais que conectam a capital aos municípios do Vale do Gravataí; na outra, fica a Avenida Farrapos, uma das maiores da cidade.

O que pouca gente sabe é que foi de um dos apartamentos desse prédio que a operária Julieta Battistioli viu a Avenida Farrapos ser construída na primeira metade dos anos 1940. Eleita a primeira vereadora da história de Porto Alegre, boa parte de sua atuação parlamentar teve como foco amenizar os efeitos excludentes produzidos pelo processo de crescimento e modernização da região que expulsou muitos moradores dali.

Não sabemos exatamente quando Julieta passou a morar ali, mas segundo todos os relatos, inclusive os seus, ela morou no Navegantes desde que chegou à capital, vinda de Palmares, interior do Rio Grande do Sul, no início dos anos 1920. Sempre viveu próxima à Fábrica A. J. Renner, onde trabalhava, o que lhe proporcionava ir a pé ao trabalho todos os dias. Assim conheceu o operário e depois verdureiro Fortunato Battistioli, com quem se casou em fevereiro de 1926. Foi através de Fortunato que Julieta ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCB) e, arrisco, foi depois de casados que passaram a morar no apartamento da Cairú.

O que sabemos com certeza, pelas fichas da cooperativa da Renner e pelos materiais da Câmara de Vereadores de Porto Alegre é que, no mínimo, desde 1943 até se aposentar e mudar-se para o IAPI (entre o fim dos anos 1950 e o início dos anos 1960), Julieta morou em um cruzamento muito movimentado da capital, onde pode observar as transformações que a cidade sofria e como isso impactava a classe trabalhadora local.


Liderança fabril e responsável por atividades sindicais do Partido, Julieta foi candidata a vereadora no final de 1947 pelo PSP – o PCB já estava na ilegalidade desde maio. Marino dos Santos e o metalúrgico Eloy Martins foram eleitos, com Julieta na suplência. Ao longo da legislatura, porém, ela assumiu a tribuna por diversas vezes.


Se em um primeiro momento sua atuação destacou-se pelos discursos inflamados e pela repetição das palavras de ordem do Partido, uma análise mais detalhada nos ajuda a compreender como aquela operária conseguiu ligar os grandes temas nacionais para os comunistas – carestia de vida, defesa do petróleo, etc. – com as condições de vida e trabalho do operariado da capital. E tudo isso em um ambiente bastante hostil à presença de uma mulher operária, como as constantes interrupções registradas em ata deixam evidente.

O Navegantes e o 4º Distrito como um todo estavam no cerne de sua atuação. O debate acerca da gentrificação da região é bastante atual, mas não é novidade. Durante o mandato parlamentar de Julieta (1948-1951), a região passou por um processo de suposta modernização que vinha em curso desde 1939, com o início das obras para a criação da mencionada Avenida Farrapos. Nesse processo, ocorreram diversas obras de saneamento que, ao mesmo tempo em que melhoravam as condições de vida na região, encareciam os alugueis. Junte-se a isso uma série de desapropriações ocorridas para a abertura da avenida e temos o surgimento das “cidades-dormitório” – o principal destino do operariado da zona norte àquela altura foi a cidade de Gravataí.

Na Câmara de Vereadores, Julieta propôs e conseguiu que a prefeitura realizasse obras como bicas d’água, iluminação e até mesmo a criação da escola Dolores Alcaraz, no Passo D’Areia, bairro vizinho ao Navegantes. Em mais de uma vez foi possível encontrá-la reclamando do preço dos aluguéis e até mesmo enviando um ofício exigindo explicações das companhias de ônibus acerca dos preços das passagens.

Depois das pessoas, foram as próprias fábricas que paulatinamente foram migrando do 4º Distrito para os vales do Gravataí e do Sinos, em um processo que se acentuou ao longo dos anos 1970 e que começou a conferir os ares de abandono que temperam a região atualmente. O prédio de Julieta ainda está lá: continua com comércio térreo e moradores nos andares de cima, mas sem qualquer menção a sua provável mais ilustre moradora. Julieta esteve na Comissão que recebeu Luiz Carlos Prestes em Porto Alegre em 1945, teria o Cavaleiro da Esperança visitado esse apartamento? Teriam outros militantes frequentado o imóvel?  Além de um espaço de observação das mudanças urbanas, do sofrimento e das lutas de trabalhadores e trabalhadoras, é possível imaginar que a moradia de Julieta também foi um espaço de reflexão e decisões políticas coletivas.

As experiências de Julieta a partir daquele ponto impactaram sua forma de agir – e sua agência, ao mesmo tempo, ajudou a moldar e amenizar os efeitos colaterais daquele projeto de modernização excludente. Esse lugar, nenhum pouco deslocado do clima decadente do entorno, além de ponto privilegiado de observação das mudanças da cidade – que seguem em curso –, certamente foi importante na constituição das ações da primeira vereadora da cidade. É, portanto, um esquecido lugar de memória dos trabalhadores e trabalhadoras de Porto Alegre.

Foto atual do prédio onde morou Julieta Battistioli. Foto do autor, 2023.


Para saber mais:


Crédito da imagem de capa: Carteira sindical de Julieta Battistioli. Acervo do autor.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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