Sérgio Carvalho de Lima
Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas
Quem transita hoje pelo cruzamento das avenidas Sete de Setembro e Castelo Branco, confluência dos bairros de Cachoeirinha e Educandos, na zona sul de Manaus, e observa a permanência de uma parte da antiga Usina de Viação dos bondes, talvez não imagine que, durante muito tempo, funcionou ali um dos maiores pontos de comercialização de carvão na cidade. O lugar ficou conhecido como a ‘rua do carvão’, nome pelo qual grande parte dos produtores e vendedores de carvão, os carvoeiros, a ele se referiam. Entre as décadas de 1940 e 2010 foi um espaço de sustento para dezenas de famílias.
Pelo menos desde o início do século XX, em virtude da ausência de carvão mineral no Amazonas e das dificuldades de sua importação, o carvão vegetal, juntamente com a lenha, sustentava a cidade como uma das matérias-primas para a geração de energia, tanto nos mais diferentes ramos de atividades, quanto no ambiente doméstico. Isso contribuiu para que uma parcela significativa da população se dedicasse à produção de carvão vegetal nos arredores da cidade e municípios próximos, assim como a comercialização do produto. Escritores e memorialistas, sobretudo das décadas de 1940 e 1950, como Moacir Andrade, Jeferson Peres e Thiago de Melo, destacam em suas obras a atividade carvoeira nas ruas de Manaus. Também mencionam os locais de produção do valioso item, como Tarumã, Estrada do Aleixo, Colônia Campos Sales, àquela época nos arrabaldes da cidade, hoje bairros populosos.
Foi nesse contexto que se constituiu, nas proximidades da antiga Usina de Viação, um dos maiores pontos de comercialização de carvão na cidade. A partir de 1939, a Usina de Viação tornou-se uma Sub-Usina de luz, ficando responsável também pela geração de parte da energia elétrica da cidade e funcionando à base de carvão vegetal e lenha, o que certamente tornou-se um atrativo para muitas pessoas que trabalhavam com a produção e comercialização destes produtos.
Nesta época, o Amazonas viveu um breve momento de euforia econômica, ocorrido com a chamada “Batalha da Borracha” (1943-1945), quando milhares de migrantes foram mobilizados para os seringais amazônicos a fim de produzir borracha para os aliados na Segunda Guerra Mundial.
Com o fim da guerra, em 1945 Manaus passou a receber um intenso fluxo migratório de nordestinos e ribeirinhos em busca de novas alternativas econômicas de sobrevivência, sendo que muitos deles se dedicarão à atividade da carvoaria.
Neste cenário, a área onde funcionava a Sub-Usina revelava-se estratégica para a comercialização do carvão, pois além da demanda pelo produto oriunda da própria usina, havia ainda as necessidades da população dos bairros próximos. Além disso, segundo relatos de antigos trabalhadores, como Wilton Pereira, a proximidade com o Igarapé do Educandos, um curso d’água que se conecta ao Rio Negro, facilitava os negócios com o produto, sobretudo das cargas vindas do interior, geralmente transportadas em canoas e batelões. A opção por aquele local revelava um senso de racionalidade ao mesmo tempo que desmistifica a ideia de que estes trabalhadores seriam movidos por um mero instinto de sobrevivência.
Embora não haja estatísticas específicas, pode-se afirmar que havia muitos trabalhadores envolvidos nessa atividade, haja vista os relatos que mencionam os diversos pontos de produção e comercialização do produto tanto em pontos fixos, quanto ambulantes. Embora a maior parte dos envolvidos nessa atividade fosse composta por homens, não era incomum haver mulheres comercializando carvão. Além disso, muitas crianças acompanhavam seus pais, fabricando ou vendendo o produto. A partir da década de 1970 o carvão vegetal foi perdendo espaço como fonte energética essencial da cidade, mas não deixou de continuar presente no cotidiano urbano.
Em outubro de 2003 a ‘rua do carvão’ foi alvo do Ministério Público do Amazonas que instaurou um inquérito civil cujo foco era exatamente o comércio de carvão realizado no local. A empresa concessionária de energia elétrica, então denominada Manaus Energia, proprietária do prédio da antiga Usina de Viação, acionou o órgão alegando danos ao seu patrimônio e à saúde dos funcionários, ocasionados, segundo a empresa, pela emissão de poeira gerada com o descarregamento e manuseio de carvão na área. A denúncia ocorreu em um contexto de intervenções urbanas promovidas pelo Estado, que visavam sanear os igarapés, suas margens e promover o ‘embelezamento’ dos entornos. Este projeto, implementado no início dos anos 2000, foi denominado Prosamin (Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus).
Após sete anos de conflitos e resistência dos trabalhadores da “rua do carvão”, a Prefeitura de Manaus conseguiu retirar os carvoeiros do espaço que por décadas ocuparam. Nos últimos anos, a área que atualmente abriga uma das sedes da empresa Amazonas Energia, foi reurbanizada e qualquer referência à histórica presença e trabalho os carvoeiras foi apagada.
Ao longo de pelo menos sete décadas, os carvoeiros fizeram parte do cotidiano da cidade neste local específico, atendendo às demandas econômicas de moradores e diversos setores da economia manauara. Na sua luta diária por trabalho, moradia e sobrevivência, foram testemunhas de diversas transformações sociais e urbanas ocorridas na cidade, sendo que nesse processo acabaram sendo tragados por elas.
Local onde funcionou a rua do carvão na atualidade. Fonte: Google Maps, 2023.
Para saber mais:
- ANDRADE, Moacir. Manaus: Ruas, Fachadas e Varandas. Manaus: Editora Umberto Calderaro,1985.
- LIMA, Sérgio Carvalho de. Carvoeiros – trajetória do trabalho e dos trabalhadores carvoaria em Manaus (1945-1967). Dissertação de Mestrado. Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2017.
- LIMA, Sérgio Carvalho. ‘Não existia emprego e a gente se virava’ A cidade em crise e o trabalho dos carvoeiros e carvoeiras: Manaus (1945-1967). Canoa do Tempo (UFAM), v. 10, p. 153-175, 2018.
- LIMA, Sérgio Carvalho. “Carvoeiros: O trabalho e as relações com o espaço urbano (Manaus: 1945-1967)” Maduarisawa, v. 5, p. 41-53, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/manduarisawa/article/view/9183.
Crédito da imagem de capa: Rua do Carvão em Manaus. Fonte: Jornal Amazonas em Tempo (15/06/2004).
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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