Laboratório de Estudos da História dos Mundos do Trabalho

LMT#134: Rampa da Imperatriz, Manaus (AM) – Caio Giulliano Paião


Quem chegasse de vapor na Manaus dos anos 1880 veria o navio fundear um tanto distante da orla. Um silvo estridente dava início a uma confusão a bordo. Os passageiros reuniam suas bagagens e a marinhagem preparava o desembarque. Esse serviço era feito no meio do rio. Encostar o barco arriscaria um encalhe. Sem demora, os botes chegavam para o traslado. Eram as catraias. Tinham em torno de oito metros, eram pintadas de branco e suas toldas protegiam os passageiros do sol inclemente. Esse calor amazônico parecia desafiado pelo remador – o catraieiro – que usava boné de lã, camisa quadriculada de manga comprida, calça de brim e tamancos. Remava de pé, com um par de remos compridos. Na popa, uma placa semicircular trazia o nome da catraia, geralmente uma distante cidade natal dos catraieiros; a maioria vinha de Portugal. Ela tomaria o rumo da única entrada da cidade naquele tempo: a rampa da Imperatriz. Em 1884, os catraieiros fariam ali a primeira greve que se teve notícia em Manaus. Uma greve em tons abolicionistas que mudou para sempre aquela vida portuária.

Os passageiros que desembarcavam na rampa eram envolvidos por uma explosão de sensações: o aroma de peixes frescos, frutas, legumes e ervas misturava-se ao vozerio das vendeiras, ambulantes, carroceiros, carregadores, estivadores, marítimos. Esse cenário de intenso movimento humano era relativamente recente. Décadas antes, não se via tamanha aglomeração, com tantas profissões, nacionalidades, cores de pele, origens étnicas e diferentes condições jurídicas. Mulheres e homens, livres e libertos, conviviam e ajustavam suas diferenças com a população negra escravizada, cuja presença seria ampliada se dependesse do tráfico interno. Na região, o número de escravizados crescia entre as décadas de 1870 e 1880, contrastando com a redução vista em outras partes do país. Manaus concentrou boa parte desse contingente em atividades urbanas e domésticas, enquanto outras levas eram enviadas para os seringais e propriedades rurais. O tráfico interprovincial beneficiava não apenas os senhores, mas gente que lucrava com os fundos de emancipação. Falando em economia, o Amazonas gozava da boa recepção da borracha amazônica e de outros produtos no mercado internacional. Havia um frenesi de vapores que não paravam de aportar na capital.


Tudo passava pela rampa da Imperatriz, dominada pelos catraieiros e seu sistema de desembarque. Esse controle já vinha incomodando as autoridades e logo se tornaria uma grande dor de cabeça para os senhores e traficantes de escravizados.


Em 1883, havia 113 catraias para 159 catraieiros, quase todos portugueses. Muitos deles eram originários de Póvoa de Varzim, onde aprenderam a construir e manejar embarcações. Eles chegaram a Manaus e Belém após uma crise no setor pesqueiro, provocada pela expansão de empresas britânicas que gerou uma onda de desemprego na pesca artesanal de Portugal. Muitos jovens solteiros acabaram seduzidos para imigrarem ao Brasil. Familiarizados com a lida marítima, eles se estabeleceram nos portos das “capitais da borracha” em vez do trabalho nos seringais. Foi assim que os catraieiros se depararam com o tráfico interprovincial realizado pelos vapores. 

Em julho de 1883, um grupo de abolicionistas de Belém publicou nos jornais o caso de um escravizado que resistiu para embarcar no vapor Pará, em direção à Manaus, para não ficar afastado de um familiar. Sua resistência conseguiu chamar a atenção de autoridades portuárias, que vetaram seu embarque. Essa publicação visava sensibilizar os catraieiros para que, seguindo exemplo dos jangadeiros do Ceará, se recusassem a transportar escravizados/as dos vapores.

A ação dos jangadeiros foi crucial para que o Ceará se tornasse a primeira província a abolir a escravidão, em 25 de março de 1884. Na Amazônia, o ativismo abolicionista via nos catraieiros um papel semelhante. Os de Belém foram os primeiros a aderirem, integrando a Sociedade Abolicionista 28 de Setembro. Já em Manaus, o fechamento do porto veio por uma ação conjunta com abolicionistas brancos.

Os catraieiros fizeram o seu cálculo: com a alta do fluxo de navios, esses escravizados poderiam vir a substituí-los, o que favoreceria negociantes do setor portuário e de exportação. Ocupar a rampa da Imperatriz paralisaria a cidade, destacaria a defesa de seus postos de trabalho e consolidaria uma aliança estratégica com abolicionistas brancos e políticos locais. Além disso, como responsáveis por esses desembarques desumanos, certamente razões humanitárias também motivaram a adesão ideológica ao abolicionismo.

No dia 7 de maio de 1884, os catraieiros enviaram um ofício ao presidente da província do Amazonas, anunciando a greve. É provável que o movimento tenha contado com o apoio de embarcadiços e demais trabalhadores negros. Embora os detalhes da parede sejam desconhecidos, sua eficácia foi incontestável: dois dias depois foi decretado o fechamento do porto de Manaus para o tráfico interprovincial. Os abolicionistas e os catraieiros declararam a rampa da Imperatriz como território livre. No dia 10 de julho de 1884, possivelmente eles estavam no largo 28 de Setembro (atual praça Heliodoro Balbi), comemorando a Abolição, agora concretizada no Amazonas. Sua mobilização tinha parcela nessa conquista, evidenciando a força organizativa de trabalhadores imigrantes imersos nas disputas políticas e no movimento abolicionista local, mas também preocupados em proteger seus próprios interesses.

Até que, em 1900, a Lei do Beneficiamento da Borracha exigiu uma infraestrutura adequada para o escoamento do produto, o que levou à adaptação do porto de Manaus à economia de exportação. O domínio dos catraieiros foi minado de uma vez por todas. Entre 1903 e 1907, foi construído o novo porto, e a rampa da Imperatriz deu lugar ao imponente prédio da Alfândega, hoje um marco arquitetônico da capital. Esse foi o soterramento literal do lugar de memória da greve de 1884, e de outras agências nas lutas contra a escravidão. 

George Huebner. Rampa da Imperatriz [fotografia], Manaus, c.1890-c.1902. Acervo: Coleção particular.  


Para saber mais:


Crédito da imagem de capa: Huebner & Amaral [estúdio]. Manáos – Porto de desembarque [cartão postal], Manaus, c.1901. Acervo: Coleção particular.


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