José Marcelo Ferreira Filho
Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)
O Engenho Matapiruma localiza-se em Escada, município da chamada Zona da Mata Sul de Pernambuco. Em diversos sentidos, é um típico exemplar das centenas de unidades produtivas dispersas no que podemos chamar “mundo dos engenhos” no Nordeste açucareiro do Brasil.
Os engenhos foram as unidades básicas que sustentaram a economia dessa região por meio milênio. Eles eram domínios quase completamente fechados a qualquer interferência do “mundo externo”: possuíam suas próprias regras, moralidade, linguagem, economia e, em alguns casos, até sua própria moeda. Os engenhos eram a essência a uma só tempo prática e simbólica do poder secular da classe patronal latifundiária. Eles eram projeções de poder sobre o espaço.
Moradores de engenho eram todos aqueles, que além de trabalhar, nasciam e moravam (viviam), praticamente toda sua vida, no interior dessas comunidades; e morar, nesse contexto, não significava apenas o fato de “habitar” uma casa, mas, sobretudo, estar totalmente à disposição dos senhores de engenho.
A morada, enquanto modelo dominante de organização da força de trabalho, remete ao período que marcou o fim da escravidão legal; foi uma etapa intermediária que sucedeu a escravidão e antecedeu o momento atual da plantation em que os canavieiros são assalariados que vivem fora dos engenhos. A abolição transformou os escravos em moradores. Sem qualquer opção fora dos limites da cana, a maior parte dos libertos permaneceu nos engenhos porque não havia qualquer outro lugar para ir, seja em razão do monopólio sobre a terra nas mãos dos senhores, seja por falta de oferta de empregos nas cidades.
Como para a maioria dos engenhos, sabe-se muito pouco sobre detalhes específicos da vida no Matapiruma. Erguido ainda no período colonial às margens do rio homônimo, o engenho foi adquirido por Henrique Marques Lins, grande proprietário de uma das mais proeminentes famílias de Escada, em 1841. Ao longo do século XIX, anúncios de escravos fugidos do Matapiruma aparecem no Diario de Pernambuco, mas sem detalhes sobre a quantidade total de cativos, a área produtiva ou o cotidiano de trabalho. Famosa por ter sido uma das residências do Barão de Suassuna, a casa-grande do Matapiruma hospedou, em 1859, o próprio imperador D. Pedro II e sua comitiva, fato que dá certa dimensão de sua importância no contexto local.
As relações de trabalho e os níveis de violência não eram exatamente as mesmas em todos os engenhos; e ainda que tudo que se passasse em seu interior fosse alvo das tentativas de controle patronal – como as práticas religiosas; o ensino escolar (nos raros casos em que havia escolas); as atividades de lazer e festas; as rodas de conversas entre os homens nos finais de semana; a organização das mulheres durante a lavagem de roupa ou qualquer outro ato banal do cotidiano – eles foram lugares de lutas por parte de uma classe trabalhadora perspicaz, criativa e autoconsciente. Em Matapiruma, como em outros engenhos, foram frequentes as resistências e solidariedades cotidianas, que afloravam depois de um acidente de trabalho mais grave; partos mais complicados; em greves espontâneas, entre outras situações percebidas como intoleráveis.
Ao longo da segunda metade do século XX, insatisfações como essas foram muitas vezes expressas na constituição de organizações como as Ligas Camponesas. Após a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), em 1963; da fundação dos sindicatos de trabalhadores rurais e da instalação das Juntas de Conciliação e Julgamento (JCJs), ligadas à Justiça do Trabalho, os proprietários de engenhos de fogo morto passaram a expulsar os moradores para as “pontas de rua” (periferias das pequenas cidades) a fim de, com a ajuda dos “gatos” (empreiteiros de mão-de-obra), explorá-los com mais segurança jurídica e sem inconvenientes legais. Esse também foi o destino dos moradores do Matapiruma.
Foi nesse contexto, que em 5 de outubro de 1972, no auge da ditadura militar, o engenho foi palco do célebre “Massacre de Matapiruma”, quando policiais do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS/PE), abriram fogo contra moradores que trabalhavam no corte da cana. O resultado foram dois mortos, vários feridos e um clima de medo e terror crescente. Um ano antes, uma ação coletiva – aberta na JCJ de Escada por setenta e dois trabalhadores que reclamavam férias, 13º salário e outros direitos estabelecidos no ETR, mas descumpridos pelos patrões – havia sido o motivo para a escalada de terror promovida por vigias e capangas armados que passaram a ameaçar os reclamantes para que retirassem os processos que haviam sido julgados procedentes pelo órgão do Tribunal Regional do Trabalho. Prevendo o pior, os trabalhadores encaminharam um documento pormenorizando o caso à Delegacia Regional do Trabalho; Polícia Federal; Secretaria de Segurança Pública e outras autoridades civis e militares. Nada disso, entretanto, evitou o massacre que faria do Engenho Matapiruma ao mesmo tempo um símbolo da luta e resistência de uma classe trabalhadora rural capaz de se organizar em um território tão fechado e violento (cujas formas, pode-se dizer, compunham padrões espaciais de longa duração) e do arbítrio patronal na mitológica “civilização do açúcar”.
Hoje, imagens do antigo Engenho Matapiruma podem sem vistas em blogs e site de turismo rural. Suas ruínas escondem uma longa e invisível história de trabalho, exploração, lutas e solidariedades.
Para saber mais:
- ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1963.
- DABAT, Christine Rufino. Moradores de engenho: estudo sobre as relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco, segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. 2ª Ed. Recife: Editora da UFPE, 2012.
- FERREIRA FILHO, José Marcelo Marques. Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, século XX). Recife: Editora da UFPE, 2020.
- ROGERS, Thomas D. As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil. São Paulo: UNESP, 2017.
- SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas cidades, 1979.
Crédito da imagem de capa: Engenho Matapiruma. Escada, PE. Foto de Julien Mandel. 1930-1940. Coleção Gileno de Carli. Acervo Fundação Joaquim Nabuco. Ministério da Educação.
MAPA INTERATIVO
Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:
Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.