Lugares de Memória dos Trabalhadores #07: Cobrasma, Osasco (SP) – Marta Rovai



Marta Rovai
Professora de História da Universidade Federal de Alfenas


Fiz uma poesia do que senti nesses vinte e três anos de Cobrasma. Todos os dias, às seis horas da manhã, o que sentia ao ouvir o seu apito. Da minha cama eu ouvia!



As palavras do operário-poeta Inácio Gurgel, ao lembrar da sirene da fábrica em que se empregou por longo tempo, procura traduzir a importância daquele lugar na memória dos trabalhadores da cidade de Osasco, durante os anos 1960. O apito, tocado três vezes ao dia, marcava o início, as trocas de turno e o encerramento das atividades de fundição e montagem de vagões de trem. Mais do que organizar o tempo e disciplinar o espaço fabril, a sirene também se tornou um símbolo da chamada “cidade trabalho” para a qual migraram italianos, armênios e também nordestinos e interioranos paulistas.

A Companhia Brasileira de Material Ferroviário, a Cobrasma, fundada no ano de 1944 por Gastão Vidigal, membro da elite industrial e financeira paulista, tornou-se referência de modernidade, atraindo trabalhadores de diferentes lugares. Em pouco tempo, a Vila Operária construída no terreno da Cia. Territorial de Osasco, em 1948, ficou pequena para abrigá-los. A expansão da fábrica foi rápida e, em 1956, a Cobrasma foi ampliada com a criação da Cobrasma Rockwell Eixos S.A. (popularmente conhecida como Braseixos), que produzia eixos de carros e caminhões, no projeto de desenvolvimento automobilístico do governo de Juscelino Kubitschek. Nesse momento, o número de trabalhadores já chegava a cerca de 2 mil.

Foi ali, nesta fábrica, que eles compreenderam as relações de desigualdade e organizaram lutas trabalhistas, forjando a si mesmos politicamente. A memória do apito fabril, tão presente em seus relatos, evidencia não apenas o tempo do labor na fábrica que se agigantava, mas principalmente as ações de resistência que realizaram. Em 1962, após o acidente e a morte de um operário em uma das caldeiras da Cobrasma, os trabalhadores tocaram a sirene e paralisaram os trabalhos, em protesto contra a falta de segurança. Esse dia tornou-se evento fundador na trajetória coletiva desses homens (o número de mulheres ainda era muito pequeno), quando então eles subverteram o sentido do toque fabril. Neste mesmo dia decidiram criar a primeira comissão de fábrica, que ficou conhecida como a Comissão dos Dez, a fim de exigirem negociações com seus patrões por seus direitos. Dela participavam dois grupos: os estudantes-operários – como José Ibrahim, Antônio Roberto Espinosa, Roque Aparecido e José Campos Barreto – jovens que estudavam à noite no Colégio Antônio Raposo Tavares (o Ceneart) e que, após o golpe de 1964, ingressariam na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organização de luta armada contra o regime ditatorial; e os membros das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica – como Inácio Gurgel, José Groff, João Cândido e João Joaquim – católicos que deram origem à Frente Nacional do Trabalho (FNT).


Ali, no chão da fábrica, apesar de suas diferenças, esses grupos se encontraram e se uniram, organizando os trabalhadores para lutar contra o arrocho salarial e combater a ditadura. Juntos, com suas referências políticas e religiosas, fizeram nascer na Cobrasma o grupo de teatro, o Sindicato dos Metalúrgicos (para a direção do qual concorreram e ganharam, em 1967, com a Chapa Verde) e as lutas que atingiram seu auge com a famosa greve que paralisou a cidade no ano de 1968. Foi quando tocaram o apito mais uma vez, sinalizando a ocupação da fábrica e resistindo à repressão que se seguiu, com a invasão da cidade pelas tropas da Força Nacional.


Se, de um lado, a greve de 1968 tornaria Osasco uma referência nacional e internacional de resistência operária, por outro seu impacto afetaria famílias inteiras, uma vez que muitos trabalhadores foram presos e entraram para “listas negras” nas empresas, enquanto outros ingressaram na guerrilha e na clandestinidade. Seus familiares passaram a ser vigiados e suas casas invadidas, estendendo a mobilização política ao cotidiano fora da Cobrasma. Mulheres, em especial, criaram redes de proteção aos seus entes queridos, nas vizinhanças e nas prisões. A imprensa, por sua vez, associou a cidade de Osasco ao crime, imaginário que permaneceu por anos nos noticiários, deslegitimando a luta operária. Ainda assim, na onda grevista que varreu o cinturão industrial de São Paulo no final dos anos 1970, os trabalhadores da Cobrasma paralisariam suas atividades mais uma vez, tendo papel importante na luta por democracia e direitos sociais daquele período.

No contexto da crise econômica que afetou a indústria nacional no início dos anos 1990, a Cobrasma encerrou suas atividades em 1994. Além de ruínas, uma fábrica de menor porte e um empreendimento imobiliário ocupam o espaço da outrora poderosa indústria que foi simultaneamente um símbolo do desenvolvimento econômico e da luta dos operários de Osasco. No entanto, as memórias da fábrica como lugar de trabalho e de solidariedade permanecem nos eventos organizados pelo Sindicato dos Metalúrgicos e nas narrativas orgulhosas de trabalhadores e moradores da cidade contra todo tipo de esquecimento.

Anúncio publicitário sobre fabricação de reboques para caminhão na Cobrasma, 1953.
Fonte: Acervo de Jorge A. Ferreira Jr.


Para saber mais:

  • COUTO, Ari Marcelo M. Greve na Cobrasma: uma História de luta e resistência. São Paulo: Annablume, 2003.
  • MIRANDA, Orlando. Obscuros Heróis de Capricórnio, São Paulo: Global, 1987.
  • MOTTA, Antônio C.C.R. Cobrasma: trajetória de uma empresa brasileira. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, 2006.
  • ROVAI, Marta G.O. Osasco 1968: a greve no masculino e no feminino. São Paulo: Letra e Voz, 2014.
  • Filme: 1968: Memórias de uma História de Luta. Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, 2009 – disponível em https://www.youtube.com/watch?v=B-nqv9NYq0s

Crédito da imagem de capa: Prisão dos operários que ocupavam a Cobrasma durante a greve dos metalúrgicos de Osasco, 17 de julho de1968. Acervo: Folhapress


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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