Lugares de Memória dos Trabalhadores #63: Encruzilhada Natalino, Ronda Alta (RS) – Bernardo Mançano Fernandes



Bernardo Mançano Fernandes
Professor do Departamento de Geografia da Universidade Estadual Paulista



Na luta pela terra, a encruzilhada é um espaço de tomada de decisão, de escolher qual caminho construir. Foi na Encruzilhada Natalino que famílias sem-terra montaram um acampamento que se tornou uma das principais referências da história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No dia 8 de dezembro de 1980, uma família de colonos expulsa da Reserva Indígena Nonai acampou próximo ao encontro das estradas que levam a Ronda Alta, Sarandi e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul.

O local do acampamento era conhecido como Encruzilhada Natalino, pois tinha como ponto de referência uma casa comercial, cujo dono era Natálio. Coincidentemente, o colono que lá acampou também se chamava Natálio. Logo, juntaram-se outras famílias também expulsas da Reserva e remanescentes de um acampamento da região. Num contexto de crise econômica e política da ditadura militar, rendeiros, parceiros, agregados, peões, assalariados e filhos de pequenos proprietários voltavam a se organizar coletivamente na luta pela terra e por justiça social.

O governo gaúcho enviou uma comissão para oferecer empregos aos sem-terra. Acompanhada do bispo de Passo Fundo, D. Claudio Colling, os representantes do governo procuraram convencer os trabalhadores rurais, que se recusaram a desmobilizar o acampamento.  Um levantamento dos latifúndios nos municípios da região, realizado pela Comissão Pastoral da Terra e pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos mostrou que havia 4.000 hectares de terras à venda, contrariando os argumentos do governo que afirmava não haver terras disponíveis no Rio Grande do Sul e, portanto, era preciso transferir os trabalhadores rurais acampados para outros estados do Centro-Oeste, Norte ou Nordeste.

Em abril de 1981, havia 50 famílias acampadas. Em junho já eram 600 famílias, reunindo mais de 3 mil pessoas que habitavam em barracos de lona, capim, madeira, sacos de cimento ou adubo. Os barracos ocupavam quase dois quilômetros da beira da movimentada estrada, o que ampliava muito a visibilidade pública do movimento. Formou-se uma forte rede de solidariedade aos acampados, com doação de alimentos e manifestações públicas que contavam com a participação das Igrejas Católica e Luterana, de sindicatos da região, de políticos de oposição ao regime militar e do movimento estudantil, entre outros. 

O apoio da paróquia local foi particularmente importante, tanto na organização do espaço do acampamento quanto na mística construída para as famílias resistirem na luta pela terra. Na festa da Páscoa, por exemplo, após uma caminhada, foi fincada uma grande cruz na terra, sustentada com escoras que tinham os nomes das entidades que apoiavam a luta. A cruz ganhou grande simbolismo e sempre que havia uma manifestação era transportada, sendo mantida em pé pelas escoras. Durante o período do acampamento morreram cinco crianças e as famílias colocaram cinco faixas brancas na cruz, representando as suas presenças na luta pela terra. Nos meses de junho e julho, missas de solidariedade celebradas pelos bispos D. Pedro Casaldáliga, de São Felix do Araguaia (MT) e Dom Tomás Balduino, de Goiás Velho (GO) reuniram milhares de pessoas, ampliando a repercussão nacional do acampamento. D. Tomas chegou a dizer que a Encruzilhada Natalino representava para o campo o que as greves do ABC significavam para os trabalhadores da cidade


A luta e resistência em comum, o amplo apoio social e a construção de processos de organização interna no acampamento com realização de assembleias, manifestações e atividades religiosas e de formação política geraram uma forte senso coletivo articulado em torno da identidade de trabalhadores rurais sem terra.


O regime militar reagiu com truculência. Declarou o acampamento como área de segurança nacional e o cercou com tropas militares, isolando e dificultando o acesso. Ao mesmo tempo, apresentou a proposta de transferir as famílias para projetos de colonização em Roraima, Acre, Mato Grosso e Bahia. Sebastião Rodrigues Moura, o “Coronel Curió”, membro do Serviço de Inteligência do Exército e conhecido agente da repressão na Guerrilha do Araguaia e em Serra Pelada (PA), foi enviado ao acampamento Encruzilhada Natalino. Os acampados criaram a frase: “em terra de quero-quero, Curió não canta”. A missão do major era desmanchar o acampamento e levar as famílias para os projetos de colonização. Apesar da intensa propaganda e pressão governamental poucas famílias migraram para outros Estados. Ao estado de terror instalado no acampamento, os sem-terra responderam com impressionante resiliência e coragem. As mulheres, em particular, tiveram papel destacado. Com seus filhos no colo, postavam-se diante da polícia militar e do Exército, fazendo-os recuar. Em 31 de agosto de 1981, Curió e as tropas militares retiraram-se do acampamento.

Com a saída dos interventores, os acampados, com apoio de várias instituições, conquistaram o assentamento Nova Ronda Alta. A vitória dos acampados da Encruzilhada Natalino demarcou a história das lutas camponesas e foi fundamental para a fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 1984. Foi uma prova concreta de que a resistência e a persistência eram as armas contra a modernização conservadora e o modelo do agronegócio da ditadura militar. Na Encruzilhada Natalino, os trabalhadores rurais sem-terra escolheram o caminho da luta e da dignidade. Um lugar de memória e de orgulho.

Marcha de trabalhadores rurais da Encruzilhada Natalino em 1981.
Acervo do MST.


Para saber mais:

  • FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Vozes: Petrópolis, 2000.
  • FERNANDES, Bernardo Mançano. 20 anos da encruzilhada Natalino e o Exército continua espionando o MST. Fatos da Terra, v.6, 2001.
  • MARCON, Telmo. Acampamento Natalino: história da luta pela reforma agrária. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 1997.
  • MÉLIGA. Laerte Dorneles e JANSON, Maria do Carmo. Encruzilhada do Natalino. Porto Alegre: Vozes, 1982.
  • Documentário: Terra para Rose. Direção de Tetê Moraes, 1987.

Crédito da imagem de capa: Vista parcial do acampamento na Encruzilhada Natalino, 1981. Fonte Acervo do MST.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Paulo Fontes

One thought on “Lugares de Memória dos Trabalhadores #63: Encruzilhada Natalino, Ronda Alta (RS) – Bernardo Mançano Fernandes

  1. Memoria da luta pela terra. Resgate importante sobre o que mais tarde veio a se tornar um dos maiores movimentos sociais do Brasil.

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