Contribuição especial #15: Cidade, Trabalho e Política: o pensamento vivo de Lucio Kowarick

Contribuição especial de Vera Telles¹, Daniel Hirata² e Gabriel Feltran³

Lucio Kowarick, professor aposentado do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, faleceu aos 82 anos, em 25 de agosto deste ano. Deixou um imenso legado aos estudos urbanos e do trabalho. Como professor e pesquisador, formou várias gerações de intelectuais, mas também de ativistas e de figuras políticas empenhadas na construção de agendas democráticas e igualitárias para a sociedade brasileira. Sua obra ultrapassou fronteiras ganhando enorme repercussão na América Latina. Suas pesquisas de campo, sua capacidade de síntese teórica e, sobretudo, seu modo inovador, polêmico e sempre politicamente engajado de pensar ofereceu a pauta para todos que, nas últimas décadas, dedicaram-se aos nexos entre cidade, trabalho e política.

Nas décadas de 1960 e 70, os pesquisadores que então conformavam a sociologia latino-americana testemunhavam um crescimento urbano acelerado sob o impacto das migrações rurais e mudanças de uma estrutura ocupacional que mobilizava massas crescentes de trabalhadores pobres, oscilando entre as ocupações assalariadas e formais com as instáveis, o desemprego e as alternativas precárias dos então expansivos mercados informais. Nos termos da época, evidencias que pareciam dar razão à uma grade analítica permeada de dualismos: na contraposição entre a urbanização dos países centrais e os países ditos periféricos, em desenvolvimento, essas dinâmicas eram descritas e assim tematizadas como contraposição entre um setor moderno que se espelhava nos países centrais e um dito setor atrasado, resquícios do “arcaico” ou do “pré-moderno” que haveriam de ser superados pela modernização da economia e sociedade.

Os debates na época foram acalorados, para dizer o mínimo. O que então era visto como dualismo o foi equacionado como relação, e se percebeu que a singularidade latino-americana não era uma “deformação”, “anomalia” ou “disfunção” em relação a um padrão normativo associado aos países centrais. Ao invés de uma dicotomia entre centro e periferia, entre modernidade e atraso, um conjunto de relações sociais concretas que articulam riqueza e pobreza, formalidade e informalidade. As raízes históricas dessas relações foram apontadas por Lucio Kowarick no livro Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil, no qual o legado escravista e suas complicações na transição ao trabalho livre foram apontadas de forma bastante contundente.

A natureza dessas relações de trabalho foi tratada em diferentes escalas analíticas, com níveis variáveis de articulação, partindo de processos de grande amplitude histórica e geográfica e chegando às trajetórias de vida dos habitantes das cidades latino-americanas. Em um nível macrossociológico, essas relações seriam a expressão do subdesenvolvimento ou de um capitalismo dependente, termos que pautaram o debate em boa parte daqueles anos. Neste vasto campo de debates e controvérsias, Lucio Kowarick foi dos poucos que trataram dessa relação entre pobreza e riqueza na escala das cidades, sobretudo das metrópoles.

Em 1975, junto com Vinicius Caldeira Brandt, Lucio organizou um livro que teve imensa repercussão e impacto na época. Eram os anos de chumbo da ditadura militar e a obra questionava diretamente os apologistas do chamado “milagre econômico” brasileiro. Sob o título São Paulo, crescimento e pobreza, com capítulos escritos por pesquisadores do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), contando com o apoio da Pontifícia Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, o livro trazia ao debate público o engendramento expansivo da pobreza urbana sob a lógica de um padrão de “modernização” (leia-se: acumulação econômica e urbanização) que só fazia aumentar as desigualdades e segregações urbanas, precariedade nas condições de vida, trabalho e moradia.

“A lógica da desordem” é o título do artigo de Lucio neste livro, formulação sintética e expressiva de questão que ele irá desdobrar em suas pesquisas e escritos posteriores, fio condutor de uma investigação empírica e reflexão teórica que busca deslindar os nexos entre superexploração da força de trabalho e precariedade das condições urbanas de vida. Em 1979, Lucio cunhou a expressão “espoliação urbana” em livro com este título, que até hoje é referência para quem queira entender e pesquisar as desigualdades e segregações plasmadas nos espaços de nossas cidades. Se no “chão de fábrica” a dinâmica da exploração do trabalho há muito havia sido caracterizada como produtora das desigualdades sociais e da dominação no mundo do trabalho, a “espoliação” seria o seu par analítico para entender a reprodução dessas desigualdades por meio da questão urbana. Ali, nosso mestre demonstra que não há crescimento desordenado, nem caótico, nas cidades brasileiras. Se esse crescimento fosse desordenado, nossas urbes não cresceriam em um mesmo padrão em todo o território nacional: padrão concêntrico e por expansão das periferias pobres. A aparente desordem tinha, de fato, uma lógica evidente: crescimento e pobreza retroalimentavam-se em nosso modelo de crescimento econômico e urbano. Crescimento, nesse modelo, era sinônimo de produção de pobreza e, portanto, máquina de produção de desigualdades.

Lucio Kowarick foi quem primeiro demonstrou esse mecanismo, sua lógica interna coerente. Seu trabalho foi fundamental para gerações de estudiosos da cidade e das desigualdades urbanas, em toda a América Latina. E, deveria ser lido por políticos e homens públicos. A ideia de crescimento econômico como solução para a pobreza nunca esteve tão em voga hoje: estima-se que quanto mais dinheiro circular, por cima ou por baixo na economia, menor será nossa desigualdade e nosso conflito urbano. Mas o Brasil se torna mais rico e mais violento, sem falar das nossas desigualdades persistentes, desde os anos 1970.

Os patamares contemporâneos de violência criminal e de Estado jamais foram vistos no Brasil. Setores criminalizados se estruturam na regulação de mercados ilegais altamente rentáveis – o tráfico de drogas, os veículos roubados e os grandes assaltos – e transferem boa parte dos lucros ali gerados à economia formal, por meio de consumo e lavagem de dinheiro. Enquanto esse mesmo dinheiro gera postos de trabalho legais, formais, informais, ilegais, ilícitos, uma parte relevante dos descendentes das famílias dos trabalhadores migrantes analisadas por Lucio Kowarick, sobretudo os negros, lotam as cadeias e povoam com seu perfil estatístico as taxas de homicídio nas mesmas periferias. Relação, portanto, entre mundos aparentemente distantes que alimenta a produção da violência urbana. A violência criminal e a revanche policial violenta, já previstas e depois estudadas empiricamente por Lucio Kowarick, mudaram a face de nossas cidades. É por elas que se ergueram grades e depois muros de condomínios, aumentando ainda mais nossa segregação.

Essas duas linhas do conflito urbano contemporâneo são mais nítidas quando a equação teórica de A Espoliação Urbana nos oferece um diagrama de fundo para a compreensão conjunta das relações entre economia, política e produção do espaço urbano. A centralidade teórica do conflito nessa equação, substrato do livro de Lucio Kowarick, facilita nossa tarefa. Esse conflito, pensado sob influência da historiografia inglesa, sobretudo da obra de E.P. Thompson, abria as fendas da indeterminação histórica através da rica noção de experiência, que foi fundamental para a coletânea de textos As lutas sociais e a cidade: São Paulo passado e presente, parte de uma renovação dos estudos dos chamados movimentos sociais.

Capa do livro A Espoliação Urbana, 1979.

Mas há uma outra dimensão no trabalho de Kowarick que inspira ainda mais a bibliografia contemporânea. Já nos anos 1970, o autor assinalava a necessidade de autoritarismo político (expresso então na ditadura) para manter essa máquina de crescimento econômico e produção de desigualdades funcionando. Só a repressão a permitiria se reproduzir, dada a potencialidade de revolta advinda da transferência dos custos de reprodução social às próprias famílias trabalhadoras (a começar pela moradia autoconstruída), mas também pelo acoplamento até mesmo da infraestrutura de mobilidade urbana à lógica de acúmulo de desvantagens entre os mais pobres.

A violência estatal se tornaria moeda corrente justamente por ser preciso conter assim, agressivamente, o conflito gerado pelas desigualdades. A noção de violência para Lucio Kowarick compunha o quadro conceitual da espoliação urbana, e, portanto, integrava o (e não se opunha ao) problema político-econômico para a compreensão da cidade. Nos tempos que correm, seguramente de menos esperança na superação das desigualdades do que havia na virada para os anos 1980 em São Paulo, quando Lucio surgiu como uma voz intelectual e militante contra as desigualdades urbanas, essa cobrança é ainda mais necessária. O brilhantismo inovador de suas pesquisas sempre foi exercitado sob a perspectiva engajada e politicamente comprometida com o “direito à cidade”.

É esse um legado que será preciso reativar agora sob novos termos, termos afinados com os desafios imensos postos pelos tempos sombrios em que estamos mergulhados, sob uma constelação política de governo que faz da destruição de direitos, garantias e serviços públicos um programa, mas também se empenha no apagamento dos rastros e memória dessa história. Por isso mesmo, esse legado é chave para as novas gerações de pesquisadores, que neste momento se empenham em compreender a urgência do momento em que vivemos na economia política das cidades e na lógica dos mundos do trabalho: o brilho da inteligência de Lucio, a radicalidade de sua generosidade e, sobretudo, seu saber comprometido com os desafios políticos (e incertezas, imensas) de cada época, segue iluminando o cenário do pensamento sobre as nossas cidades, cada vez mais desiguais.

Lucio Kowarick nos anos 1980. Acervo da família.

¹ Professora do Departamento de Sociologia da USP
² Professor do Departamento de Sociologia da UFF
³ Professor do Departamento de Sociologia da UFSCar

Referências:

Kowarick, Lucio (1975). Capitalismo e marginalidade na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Kowarick, Lucio et alii (1976). São Paulo 1975: crescimento e pobreza. São Paulo: Edições Loyola.
Kowarick, Lucio (1979). A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Kowarick, Lucio (1987). Trabalho e vadiagem. A origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense.
Kowarick, Lucio (org) (1994) As lutas sociais e a cidade. São Paulo passado e presente. São Paulo: Paz e Terra. 2a. Edição.
Kowarick, Lucio (2000). Escritos Urbanos. São Paulo: Editora 34.

Crédito da imagem de capa: Lucio Kowarick em evento no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2012. Fotografia: Cecília Bastos/USP Imagens.

LEHMT

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Next Post

Lugares de Memória dos Trabalhadores #64: Casa de Caboclo, Praça Tiradentes, Rio de Janeiro (RJ) – Flavia Veras

qui dez 17 , 2020
Flavia Veras Doutora em  História pela FGV e pesquisadora do LEHMT-UFRJ A Casa de Caboclo foi o nome dado ao espaço montado nos escombros preservados do famoso Teatro São José após um incêndio devastador em 1931. As ruínas em nada lembravam o pomposo teatro que era parte do complexo de […]

Você Pode Gostar