LMT #119: Livraria Internacional, Porto Alegre (RS) – Lucas Becker Delwing


Lucas Becker Delwing
Mestre em História pela UFRGS


A Livraria Internacional é um lugar muito importante para a memória da luta operária e antifascista da cidade de Porto Alegre. Fundada em fevereiro de 1925 por Frederico Kniestedt e Elisa Augusta Hedwig, dois imigrantes alemães de ideologia anarquista, a livraria se consolidou como um importante local de difusão de textos e ideias libertárias e antifascistas.  Inicialmente, o endereço da livraria foi na Rua Voluntários da Pátria, n. 1201 e depois do ano de 1927, no n. 1195 da mesma rua, atualmente próximo da Estação Rodoviária.

Esse lugar foi importante para que os trabalhadores da capital gaúcha pudessem se encontrar para organizar as suas lutas. Em 1929, por exemplo, o prédio foi local de reunião do Sindicato dos Marceneiros, Carpinteiros e Classes Anexas, do Sindicato Padeiral, do Sindicato dos Canteiros e Classes Anexas, do Sindicato dos Trabalhadores em Moinhos, do Sindicato dos Oficios Vários. Além disso, nesse mesmo ano, a Livraria foi a sede da Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), sendo sua última sede sob hegemonia dos anarquistas.

Fazendo justiça ao seu nome de Livraria Internacional, o estabelecimento teve um papel importante na circulação de livros, jornais e também de imagens que vinham da Europa, especialmente produtos importados da Alemanha, país de origem da família Kniestedt. Em uma época na qual a comunicação não era tão rápida e ágil como nos dias de hoje, essa livraria representou um importante espaço de intercâmbio cultural, onde as fronteiras nacionais eram permeáveis. Além dos materiais importados, também era possível encontrar textos em português, principalmente jornais de cunho anarquista. Em concordância com a ideologia dos seus proprietários, esse era um espaço primordialmente dos anarquistas, embora outras correntes, especialmente social-democratas, também tenham circulado pelo espaço.  Para os seus frequentadores, a livraria também oferecia um serviço de empréstimo de livros, funcionando de forma semelhante a uma biblioteca.

Por conta disso, a Livraria Internacional se tornaria um símbolo da luta antifascista na cidade nos anos 1930, como comenta Kniestedt em suas memórias: “As vitrines da minha loja há muito tempo representavam uma trava no olho dos nazistas; ali eram expostos os livros de autores que estavam proibidos no ‘Terceiro Reich”. Além disso, nas vitrines da loja haviam inscrições berrantes como “proibido por Hitler” e “Hitler, tuas vítimas acusam”.

Em suas memórias, Frederico Kniestedt relata que uma vez a Livraria Internacional quase foi vandalizada por um grupo de jovens hitleristas.  De acordo com o seu relato, os simpatizantes nazistas se prepararam para quebrar os vidros da vitrine da livraria. Apesar da família Kniestedt não ter origem judaica, esse tipo de ação provavelmente foi inspirada na onda de violência antissemita que ocorria na Alemanha contra os negócios administrados por judeus. Na ocasião, as vidraças da loja foram salvas por um vizinho de Kniestedt que observou a movimentação dos jovens uniformizados e os entregou à polícia antes que tomassem alguma atitude.


Em 1933, a Livraria Internacional passou a ser o local de organização da Liga Für Menschenrecht (Liga dos Direitos Humanos) e da redação do jornal Aktion, tornando- se assim  o principal centro da luta antinazista na capital gaúcha.


A Liga realizava reuniões regulares na Livraria Internacional com o objetivo de discutir a conjuntura do nazismo no Brasil e na Alemanha. Esse grupo agrupava um conjunto heterogêneo de falantes do idioma alemão, cujo objetivo era mobilizar a comunidade germânica contra o regime de Hitler. Inicialmente, o grupo era composto por 20 pessoas, entre elas estavam, além de anarquistas apartidários, alguns democratas, social-democratas e membros do Partido Comunista do Brasil (PCB).

Dessa forma, a Livraria Internacional teve um papel importante na circulação de livros, jornais e também de imagens que vinham da Europa. Foi nesse ambiente que o pintor Carlos Scliar teve seu primeiro contato com o expressionismo alemão, quando visitava a Livraria Internacional junto de seu pai, Henrique Scliar, uma das lideranças dos trabalhadores judeus de Porto Alegre. O proprietário da livraria, Frederico Kniestedt, dedicou o resto da sua vida para combater a difusão da ideologia nazista na comunidade germânica. De acordo com a sua nota de óbito de 1947, publicada no jornal Correio do Povo, ele teria dito que “Se o nazismo vai durar mil anos, como afirma Hitler, eu quero viver 1001 anos para assistir à sua derrota”.

Ao que se sabe, a livraria seguiu funcionando até a morte de Frederico Kniestedt. Sua esposa Elisa Augusta Hedwig faleceu alguns anos antes, em 1942.  O restante da família seguiu outros rumos. Hoje em dia, o prédio ainda existe, mesmo que bastante modificado. Infelizmente nele não há nenhuma referência a esse passado de resistência do movimento operário e da luta antifascista em Porto Alegre, o que representa mais um episódio de esquecimento da memória dos trabalhadores.

Prédio da livraria Internacional nos dias atuais. Registro do Google Street View 2022


Para saber mais:

  • KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um imigrante anarquista. Tradução, Introdução, Epílogo e Notas de Rodapé: René E. GERTZ. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. 1989.
  • BARTZ, Frederico Duarte. Os espaços da luta antifascista em Porto Alegre (1926-1937). Revista Cantareira, n. 34, 25 jan. 2021.
  • GERTZ, René. Operários Alemães no Rio Grande do Sul (1920-1937) ou Friedrich Kniestedt também foi um imigrante alemão. Revista Brasileira História. São Paulo: ANPUH/ Ed. Marco Zero, v. 6, nº 11, set. 85/fev. 86.
  • ECKL, Marlen. Entre a Resistência e a Resignação: as atividades políticas do exílio alemão no Brasil. 1933-1945. Projeto História.São Paulo, n. 53, Mai-Ago, 2015

Crédito da imagem de capa: KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um imigrante anarquista. Tradução, Introdução, Epílogo e Notas de Rodapé: René E. GERTZ. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. 1989.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT #118: Estação Ferroviária de Camocim (CE) – Carlos Augusto Pereira dos Santos


Carlos Augusto Pereira dos Santos
              Professor do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú


Menino da Rua do Egito em Camocim, filho de maquinista,
morando à beira da linha, eu terminei ficando com o trem no
sangue, como diz Rachel de Queiroz.

(Pe. Luís Ximenes, em Paixão Ferroviária, 1984)

A Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, funcionou por quase um século.  Quando da seca de 1877, o Governo Imperial autorizou a análise da viabilidade da ferrovia, no sentido de socorrer os flagelados com postos de trabalho e minimizar a fome que assolava o território cearense. Além disso, a construção da ferrovia seria uma forma de ligar os sertões do norte da província ao porto de Camocim, considerado o de melhor navegabilidade no estado. Os estudos para a construção da estrada de ferro tiveram início em 1878. No ano seguinte, a 26 de março de 1879, realizou-se com solenidade de estilo, o assentamento do primeiro trilho da estrada de ferro em Camocim. Neste mesmo ano, Camocim passou à condição de município se emancipando de Granja. A inauguração do primeiro trecho da Estrada de Ferro de Sobral, entre Camocim e Granja, numa extensão de 24,5 quilômetros, ocorreu no dia 15 de janeiro de 1881, dois anos após o início dos trabalhos.

Construída para ser o ponto inicial que interligava o Porto de Camocim à Sobral, a estação ferroviária apresenta traços da influência europeia no Brasil no que diz respeito às edificações ferroviárias erguidas durante o século XIX. Como se disse anteriormente, a chegada da ferrovia provocou imediatamente a mudança de status administrativo de Camocim alavancando as transações comerciais que já se faziam pelo porto, escoando a produção agropecuária do noroeste cearense. Em pouco tempo, estas atividades demandaram a chegada na cidade da Alfândega, do Banco do Brasil, dos Correios, entre outras repartições públicas e privadas.

A ferrovia para Camocim e região promoveu não somente a economia regional, mas, um interessante espaço para se compreender o mundo do trabalho naquela época. O complexo ferroviário, no auge de suas atividades, chegou a ter em média 800 trabalhadores entre a administração e o pessoal alocado nas oficinas de manutenção de trens. Estas oficinas foram importantes para a formação de várias categorias profissionais como mecânicos, torneiros, carpinteiros, ferreiros, dentre outras. A maioria destes trabalhadores era de Camocim e da região noroeste do estado. Grande parte dos ferroviários se estabeleceram em ruas próximas da estação e os funcionários mais graduados, como os engenheiros e agentes de estação, tinham moradia dentro do pátio de manobras de trens ainda hoje preservadas e habitadas por descendentes destes.


A presença de uma massa de trabalhadores na ferrovia e no porto acabou por despertar as ideologias políticas da época.


Com efeito, a cidade de Camocim foi a primeira do interior cearense a organizar uma célula comunista em 1928 e por conta de seu histórico de lutas na própria ferrovia, acabou por obter o epíteto de “Cidade Vermelha” na imprensa comunista. Por outro lado, o integralismo, embora em menor número, esteve presente entre os trabalhadores ferroviários no contexto da polarização ideológica dos anos 1930.

Um exemplo dessa militância pode ser observado no episódio que ficou conhecido como “A Rebelião da Ferrovia”. Entre novembro de 1949 e janeiro de 1950 uma greve de ferroviários tomou conta da cidade em um protesto contra o fechamento das oficinas de manutenção e a tentativa de transferir funcionários da ferrovia para outros locais. A greve ganhou ares de revolta popular, envolvendo várias categorias e lideranças sindicais. O leito da ferrovia foi interditado pela população com paus, pedras e caldeiras velhas evitando assim a saída dos trens. A tensão durante a rebelião foi muito intensa, a ponto de ser instalada uma espécie de sirene na Estação Ferroviária que era acionada para chamar os manifestantes a qualquer hora do dia quando se percebia algum movimento da direção da ferrovia em desobstruir a via férrea. As mulheres, muitas delas organizadas pela União Feminina Camocinense ligada ao Partido Comunista, tiveram uma participação particularmente significativa na greve e na rebelião popular.

Apenas a vinda de um representante do Ministro de Obras e Viação e do próprio Governador do Estado acalmou os ânimos. Em um grande comício, essas autoridades terminaram por atender ao clamor popular e as oficinas e os funcionários foram mantidos na cidade.

No entanto, o processo de desmonte do ramal ferroviário Camocim a Sobral se acelerou a partir de 1950. Os funcionários foram sendo paulatinamente transferidos para outras estações e praticamente não houve substituição do material rodante neste período até o fechamento do ramal.

Em 24 de agosto de 1977, o último trem partiu de Camocim rumo à Sobral, pondo fim a 96 anos de serviços prestados pela ferrovia à população da então zona norte do Ceará, e de muitas histórias do mundo do trabalho e dos trabalhadores da “estrada”.  Hoje, tombada pelo patrimônio público estadual, a estação ferroviária sedia a Secretaria da Educação Municipal.

Ferroviários em greve e população obstruem a ferrovia. Camocim.  Fonte: Arquivo particular da Sra. Elda Aguiar.

Para saber mais:

  • CARVALHO, Cid Vasconcelos de. O Trem em Camocim: Modernização e Memória. 2001. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós-Graduação em Sociologia) – Universidade Federal do Ceará.
  • OLIVEIRA, André Frota de. A Estrada de Ferro de Sobral. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 1994.
  • SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. Entre o porto e a estação. Cotidiano e cultura dos trabalhadores urbanos de Camocim-CE. 1920-1970. Fortaleza: INESP, 2014.

Crédito da imagem de capa: Estação Ferroviária de Camocim. s/d. Fonte: IBGE.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#113: Cais do Porto Salgado, Parnaíba, (PI) – Pedro Vagner Silva Oliveira


Pedro Vagner Silva Oliveira
Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense


O sol ainda nem apareceu no horizonte e já se via a labuta no antigo Porto Salgado, hoje Porto das Barcas. Como sugere o primeiro nome, o lugar ficou assim conhecido pelo comércio de carne salgada realizado no século XVIII. Em mais de duzentos anos, trabalhadores e trabalhadoras protagonizaram e deixaram marcas na memória local. Após longas viagens pelo rio Parnaíba, finalmente se aportava no cais do Porto Salgado. Estivadores carregavam mercadorias procedentes do sul do Piauí e de outras localidades. Caixas e caixotes tinham como primeiro destino o porto fluvial, levadas posteriormente a Tutóia (MA) ou Amarração (atual Luís Correia, PI). No próprio Porto Salgado as empresas responsáveis pelo transporte de mercadoria recrutavam os homens para a estiva.

Nas primeiras décadas do século XX Parnaíba foi o principal entreposto comercial do estado e, dado o movimento de embarcações a vela e vapor, eram necessários melhoramentos em seu porto fluvial, dentre eles, a construção do cais em 1912.  Sob o sol escaldante homens – muitos deles negros – descalços e descamisados embarcavam fardos e caixas com borracha de maniçoba, amêndoas de tucum e cera de carnaúba. No final da Segunda Guerra Mundial, o comércio fluvial parnaibano conheceria seu declínio.

O porto se transformava em grande teatro: em cada cena os estivadores exibiam valentia e vigor ao transportar sacas de até duzentos quilos. Vez ou outra, algum companheiro era zombado por carregar os fardos com a coluna arqueada. Ao cair da noite, os trabalhadores do rio divertiam-se na companhia dos colegas e de prostitutas no Tucuns e Coroa, bairros ribeirinhos. Não raro a festa se transformava em contenda. A faca marinheira ou “espim”, trazida sempre à cintura, era desembainhada; rapidamente a música dava lugar a gritos e tumulto.

Além dos produtos extrativistas exportados pelas casas Inglesa e Marc Jacob, outras “mercadorias” eram igualmente embarcadas. Gatos maracajás, filhotes de onças-pintadas, macacos, papagaios, araras e outras aves também eram “cargas” transportadas para fora do Piauí pelo porto, comércio hoje proibido pela legislação ambiental brasileira, embora infelizmente ainda praticado.

Nas imediações e não muito longe das casas comerciais, uma Parnaíba pobre lutava para sobreviver. Buscando algum dinheiro, meninos quando não tomavam banho no rio, iam ao cais a fim de fazer mandados em troca de moedas. As mulheres cozinhavam e vendiam comida aos embarcadiços



O Porto Salgado era um centro gravitacional que reunia uma miríade de trabalhadores e trabalhadoras. Quando chegavam à Parnaíba, era lá que os retirantes fugindo das secas que acometiam outros lugares do Piauí e do Ceará, procuravam emprego e o pão de cada dia.



Ao passo que as alvarengas eram “alimentadas” com as mercadorias, outros homens enchiam barris com as águas barrentas do rio. Ali mesmo os asnos, importantes companheiros de labuta dos aguadeiros, tomavam banho e saciavam a sede. Como a cidade não possuía sistema de encanamento até os anos 1960, por décadas os aguadeiros foram os responsáveis por abastecer boa parte das casas parnaibanas. Temendo doenças oriundas de tão suspeito líquido, os mais remediados possuíam poços em seus quintais.

Ainda no cais, era costumeiro ver a grande quantidade de lavadeiras “batendo” roupa. Sentadas e com a água pela cintura, lavavam as vestimentas da família ou de outras que pagassem pelo serviço. Quem por ali passava, de longe ouvia as melodias das fortes pancadas que o contato do tecido fazia ao encontrar as pedras. Após ensaboadas, as roupas eram postas para “quarar”, posteriormente enxaguadas e estendidas no chão. O vento e o sol faziam o resto do trabalho. A fim de abrandar o calor, vez ou outra alguma dessas trabalhadoras mergulhava no rio. 

Na outra margem do Igaraçu, famílias inteiras aguardavam o “passador”. A canoa era impulsionada pelo “varejão” ao tocar o leito do rio e deslizava pelas águas. Esses passageiros vinham dos povoados pesqueiros e agrícolas da Ilha Grande de Santa Isabel e região. Suas jornadas começavam já de madrugada, pois, enfrentavam caminhadas por horas no chão de areia. Peixes, cereais, feijão, ovos e frutas eram trazidos em cofos, jacás e outras cestas carregadas por burros ou pelas próprias pessoas. Homens botavam calões – espécie de haste de madeira – nos próprios ombros e traziam peixes, já as mulheres equilibravam em suas cabeças quilos de camarão ou murici. Os mercados eram o último destino da dura expedição.

Em virtude da precariedade da labuta, alguns trabalhadores do porto fundaram em 1920 a Sociedade União dos Estivadores. Com o passar dos anos, outras associações mutualistas desse mesmo grupo surgiriam, dentre elas, o Sindicato dos Operários Estivadores, e o Sindicato dos Trabalhadores dos Armazéns e Trapiches, ambos atuantes nos anos 1940. Décadas depois, com o golpe de 1964, os líderes do Sindicato dos Estivadores e do Sindicato de Marítimos de Parnaíba foram processados e perseguidos pelo regime militar.

O outrora movimentado cais, é hoje apenas sombra do que já foi um dia. Os armazéns coloniais do Porto das Barcas ainda existem, tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN em 2008 e recentemente revitalizados. Apesar disso, as memórias e experiências dos homens e mulheres que dia após dia pelejaram no cais do porto, construíram e alimentavam a cidade, são sobrepostas pelo turismo e propagandas do poder público.

Aspecto das obras do porto de Parnaíba. Fonte: Revista O Malho. Ano: 1913. 


Para saber mais:

  • GANDARA, Gercinair Silvério. Rio Parnaíba…cidades-beira. Tese (doutorado em História), Brasília: Universidade de Brasília, 2008.
  • LIMA, Raimundo de Souza. Vareiros do Rio Parnaíba & outras histórias. Parnaíba: Fundação Cultural do Piauí, 1987.
  • OLIVEIRA, Pedro Vagner Silva. Súditos da “Princesa do Igaraçu”: trabalhadores em Parnaíba-PI na década de 1970. Temporalidades, v. 9, 2017.
  • ROCHA, Cristiana Costa da. Os limites entre a exploração e a escravidão no ciclo da cera de carnaúba. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n. 77, 2020.  
  • SILVA, Alexandre Wellington dos Santos. A pobreza urbana em Parnaíba, Piauí (1890-1920). Dissertação (mestrado em História Social), Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2018.

Crédito da imagem de capa: Cais do Porto Salgado em  Parnaíba, 1937. Fonte: Revista Vida Doméstica. Ano: 1937. 


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#112: Solar do Unhão, Salvador, (BA) – Daniel Rebouças



Daniel Rebouças
Doutor em História pela Universidade Federal da Bahia



Às margens da Baía de Todos-os-Santos, descansa o Solar do Unhão. Um local de ocupação bastante antigo, do início do século XVII, é a sede do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) desde 1963. Para muitos turistas ou mesmo para moradores de Salvador, o lugar tem uma ligação “natural” com as artes. Além das exposições, faz anos que ocorre lá um prestigiado projeto de música instrumental. Porém, menos conhecida é história do solar com o universo do trabalho no Brasil do século XIX.

Por quase um século, a fábrica da Meuron e Cia funcionou no Unhão. O fundador foi Auguste Frédéric Meuron (1789-1852), membro de uma rica família da região de Neuchâtel, na Suíça. Seguindo no ramo do comércio exterior como seus parentes, o estrangeiro apostou em negócios na Bahia, chegando no dia 20 de agosto de 1817, em Salvador. Abriu uma manufatura na chamada “praia de Areia Preta”, atual bairro da Ondina, produzindo rapé – espécie de tabaco em pó muito apreciado na época. Concorrendo com o rapé Princesa de Lisboa, importado de Portugal, o suíço mudou de endereço diante da ameaça das tropas de Portugal, durante a Guerra de Independência na Bahia, em 1822. A fabriqueta em Ondina incomodava o nacionalismo dos súditos portugueses. 

Passadas as lutas políticas, o suíço mudou a fábrica para o Solar do Unhão em 1827. Alugou o prédio da poderosa família Pires de Carvalho e Albuquerque, que tinha feito, ao longo do século XVIII, uma grande mudança no local, dando elegância à antiga “Chácara do Unhão”, antiga posse do desembargador Pedro Unhão de Castello Branco. A influente família tinha erguido um prédio mais vistoso, uma capela, uma ponte com ricos azulejos portugueses, entre outros melhoramentos.

 A produção da fábrica cresceu em pouco tempo. Quando deixou a Bahia, em 1837, o dono da Meuron já era o principal produtor de rapé da província e, um dos maiores do Brasil, com filais em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Até o final daquele século, o Rapé Areia Preta já era vendido país afora, sendo manufaturado, parte com fumo da Bahia, parte importado da Virgínia, nos Estados Unidos.


Utilizou a mão de obra livre e escrava simultaneamente, fato aliás comum em outras fábricas na Bahia, e fora dela. Não sabemos muitos detalhes sobre as atividades realizadas na fábrica e pouco sobre os recortes de gênero e a remuneração praticada. A direção fabril era geralmente ocupada por suíços ou alemães.


Melhor registradas estão as brigas dos gerentes da Meuron contra as falsificações do seu Areia Preta. Em meados de 1882, por exemplo, a concorrente em Salvador, a Companhia Imperial, tentou registrar seu rapé na Junta Comercial da Bahia. O nome: Areia Parda. Como a confusão seria evidente, o gerente da Meuron na época, o alemão Hermann Ochsenbein, conseguiu, junto ao Ministério da Agricultura, a anulação do registro da concorrente e a apreensão de muitos botes de rapé do adversário. Aos derrotados, restou ir aos jornais, reclamar de monopólio.   

Nada abalou o gerente da Meuron até se criticar a mão de obra no Unhão, tema sensível em meio à crise da escravidão no país. Acusava-se a firma suíça de prejudicar o progresso do Brasil pela falta de trabalhadores livres e ainda utilizar o braço escravo, sob terrível violência. Na sua resposta, Hermann Ochsenbein estava em sintonia com boa parte da elite nacional naquele contexto, afirmando que ao usar muitos trabalhadores nacionais contribuía para exterminar a ociosidade e o crime no país. Sobre os escravizados, o estrangeiro alegou ter somente cinco cativos na fábrica, todos sob a “aprendizagem da liberdade”. Três eram tratados “como livres há muito tempo”, recebendo salário, inclusive. Os outros dois só não recebiam um ordenado “unicamente por culpa deles”, ou seja, pelo suposto mau comportamento que vinham tendo. Tão logo dessem “sinal de regeneração”, concluía o gerente, seriam “elevados ao mesmo pé dos três referidos.” 

Todo o trecho já mostra a importância da Meuron para os mundos do trabalho no Brasil do século XIX. Mas Hermann Ochsenbein nos deixou ainda mais. Alguns anos depois, recorreu à fotografia para criar um discurso visual, tal como cafeicultores vinham fazendo em São Paulo, ao encomendar um álbum aos fotógrafos Guilherme Gaensly e Rodolfo Lindemann, artistas muito prestigiados à época. Em uma tomada do pátio, reiterava-se a versão da empresa: diferente da acusação, agia em prol do trabalho livre e da ordem social em um contexto de crise da escravidão. Na visão do plantel da Meuron, mostrava-se os operários – em número considerável comparando-se com outras fábricas na cidade – e os poucos escravizados. E não somente isso. Os cativos – e somente eles – apareciam trabalhando, em uma polissêmica representação da tal “aprendizagem da liberdade”. 

A fábrica no Solar do Unhão funcionou como Meuron até 1896, quando mudou o nome para Borel & Cia, produzindo mais charutos e cigarrilhas. Após fim das atividades, em 1926, o lugar virou a sede do Trapiche Santa Luzia, até por volta de 1943. Tombado pelo IPHAN, virou museu duas décadas depois, sob a direção da arquiteta Lino Bo Bardi. Poucos indícios restaram do passado fabril, como trilhos de ferro, mas fotografias, e outros documentos, vêm mostrando muito mais, como homens e mulheres trabalhando em uma linha de produção no subsolo do saguão principal do MAM. São memórias do trabalho no Brasil, que aos poucos, ganham nova luz. 

Vista do pátio da Meuron e Cia, na qual vemos um raro registro dos trabalhadores fabris em Salvador, em meados da década de 1880.
Crédito: Álbum Brésil – Coleção Flávia e Frank Abubakir / Instituto Flávia Abubakir. 


Para saber mais:

  • Álbum Brésil – Coleção Flávia e Frank Abubakir / Instituto Flávia Abubakir https://www.institutoflaviaabubakir.org/
  • BANDEIRA, Beatriz Brito at al. Jazz, rapé e pôr-do-sol: arqueologia das negras areias submersas do Solar do Unhão (Salvador, Bahia). Arqueologia Urbana em Centros Históricos. Algerve: UALg – Universidade do Algarve, 2019. p. 81-96.
  • MUAZE, Mariana de Aguiar F. Violência apaziguada: escravidão e cultivo do café nas fotografias de Marc Ferrez (1882-1886). Revista Brasileira de História. N. 37, Vol. 74, 2017.
  • RISÉRIO, Antônio. Um solar através dos séculos. A Casa do Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.
  • REBOUÇAS, Daniel. Indústria na Bahia: um olhar sobre sua história. Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2016.

Crédito da imagem de capa: Vista da fábrica da Meuron no Solar do Unhão, na década de 1870. Nessa época, era a principal produtora de rapé da Bahia. Crédito: GAENSLY Guilherme. Fábrica da Meuron & Cia. [1873-1881]. Fundação Biblioteca Nacional.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#111: Companhia Salinas Perynas, Cabo Frio (RJ) – João Christovão

João Christovão
Professor da rede municipal de ensino de Cabo Frio e pesquisador do LEHMT/UFRJ



A capacidade de cristalização natural do sal na região de Perynas, localizada no entorno da Lagoa de Araruama em Cabo Frio (RJ), já era conhecida pelos povos indígenas nativos desde antes da chegada dos portugueses. Em 1824, com o fim do Contrato do Sal, que proibia a produção de sal no Brasil, a posse das terras de Perynas e o direito de nelas produzir foi concedida por Dom Pedro I ao empresário alemão Luís Lindenberg. A partir daí milhões de toneladas de sal foram produzidas por seus trabalhadores ao longo de quase 180 anos de atividade. 

Luís Lindenberg morreu em 1850 deixando aos seus descendentes uma grande fortuna. Os 109 escravos que chegou a possuir foram responsáveis diretos pela construção e funcionamento da primeira salina comercial do Brasil, bem como pelo resto do seu patrimônio que, em grande parte, não foi mantido por seus herdeiros.

Em 1891 a maior parte de Perynas foi vendida ao Banco do Comércio e Indústria do Brasil e, em 1895, adquirida por José Caetano Jalles Cabral que, em 1923, a vendeu a seu genro, o médico e professor de medicina, Miguel Couto. Apesar de toda a instabilidade da empresa e da própria indústria salineira fluminense nas primeiras décadas do século XX, Perynas se manteve produtiva e permaneceu como a principal indústria salineira do país.

Em 1929 a empresa adquiriu o direito de utilizar o porto do Forno em Arraial do Cabo, distrito de Cabo Frio, controlando assim toda a cadeia produtiva do sal, com seu produto seguindo por uma pequena ferrovia até o porto onde era embarcado em seus próprios navios. Sob a presidência de Miguel Couto Filho, que viria a ser governador do Estado e senador, Perynas viria a estreitar ainda mais suas relações com as esferas governamentais que deram ao sal o status de política de Estado. A década de 1940 viu surgir o Instituto Nacional do Sal, a Álcalis, empresa estatal produtora de barrilha e a iodação do sal, projeto relatado por Miguel Couto Filho em 1948.


Os trabalhadores da cadeia produtiva do sal eram, em grande parte descendentes de escravizados que migraram da área rural, vindo a formar bairros periféricos como o Itajuru e a Abissínia.


Além dos salineiros havia os remadores lacustres que transportavam o produto pela lagoa até o porto da Passagem, os estivadores e os arrumadores que trabalhavam no porto carregando os navios que iam para outras regiões do país. Os contratos de trabalho eram, em sua maioria, precários, sendo a atividade dos trabalhadores marcada por um forte sentimento de solidariedade e ajuda mútua. A presença feminina estava restrita às salinas que, à época da safra, via juntar-se aos trabalhadores fixos, dezenas de mulheres e crianças para fazer a colheita do sal.

Perynas, que chegou a ter cerca de 500 trabalhadores fixos registrados, exercia enorme influência local. Trabalhar ali era um desejo e um objetivo de muitos na região. A empresa desenvolveu um sistema paternalista de relações com sua força de trabalho que incluía uma série de “benesses” e mecanismos de controle. Foi a primeira salina da região a ter uma taverna onde seus trabalhadores podiam comprar gêneros de primeira necessidade, o que frequentemente gerava dívidas e relações de dependência. Em 1928 foi inaugurada uma escola de ensino primário para os filhos dos trabalhadores. Havia ainda uma capela católica, um posto de saúde e um campo de futebol para os times da empresa. Além disso, ser um trabalhador fixo significava a possibilidade de morar em uma das muitas casas existentes na área da empresa.

Para além dos benefícios que fizeram com que Perynas permanecesse na memória afetiva dos que lá trabalharam e viveram e povoasse o imaginário dos que esperavam um dia lá trabalhar, as lembranças da empresa são igualmente marcadas pelas duras condições de trabalho e pela luta por direitos. Perynas também foi o berço do movimento sindical dos trabalhadores do sal na região. Entre 1918 e 1926 os estivadores arrumadores e remadores lacustres organizaram seus sindicatos, já os salineiros só organizariam o seu em janeiro de 1940.

Uma das lideranças importantes dos salineiros foi Aldir José de Sousa, mais conhecido como Didi do Sindicato. Criado entre as salinas de Perynas, seu Didi pôde estudar em sua escola, indo, na década de 1950, trabalhar no escritório da empresa. Não demorou para que tomasse contato com membros do sindicato e visse ali a possibilidade de melhorias para si e seus companheiros. Militante ativo, presidente do Sindicato e um dos líderes da grande greve de 1960, foi eleito vereador em 1962 “com os votos dos trabalhadores do sal”. Cassado em 1964 por ocasião do golpe civil-militar, seu Didi passou por inúmeras dificuldades ao final de sua vida.

A ditadura foi um golpe decisivo na organização dos trabalhadores do sal em Cabo Frio, mas a indústria salineira fluminense, por motivos distintos, também não seria mais a mesma. Em 1974 a concorrência do sal potiguar e o aumento do turismo ganharam impulso com a inauguração do Porto Ilha em Areia Branca (RN) e da Ponte Rio-Niterói. Em 1983 Perynas tornou público seu interesse em deixar a produção de sal para atuar na área do turismo. A mudança nunca chegou a se concretizar, mas começava ali o desmonte de toda a sua estrutura produtiva.

Perynas encerrou suas atividades na primeira década do século XXI deixando para trás ruínas e marcas cristalizadas como sal na memória dos trabalhadores que, além de assistir ao seu fechamento, lutam até hoje, na justiça, para receber seus direitos.

Vista parcial de Perynas com a usina de refino de sal ao centro, 1979.
Fonte: Imagem retirada do folheto SAL, comemorativo dos 50 anos da empresa na família de Miguel Couto.


Para saber mais:

  • BIDEGAIN, Paulo. Lagoa de Araruama: perfil ambiental do maior ecossistema lagunar hipersalino do mundo. Rio de Janeiro: SEMADS, 2002.
  • CHRISTOVÃO, João H. de O. Do sal ao sol: a construção social da imagem do turismo em Cabo Frio. Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores, 2011.
  • CHRISTOVÃO, João H. de O. Trabalhadores do sal : organização sindical e lutas sociais nas salinas cabo-frienses – 1940/1974.Tese (doutorado) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, 2020.
  • GIFFONI, José Marcelo. Sal: um outro tempero ao império (1801-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2000.
  • PEREIRA, Walter Luiz Carneiro de Mattos. Cabo das tormentas e vagas da modernidade: uma história da Companhia Nacional de Álcalis e de seus trabalhadores: Cabo Frio (1943-1964), Arraial do Cabo.  Tese (Doutorado) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, 2008

Crédito da imagem de capa: Trabalhadores na puxada do sal, 1948. Fotografia de Wolney Teixeira


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#110: Hospedaria de Imigrantes do Brás, São Paulo (SP) – Odair da Cruz Paiva



Odair da Cruz Paiva
Professor do Departamento de História da Unifesp



A antiga Hospedaria de Imigrantes localizada no bairro do Brás na zona leste da cidade de São Paulo foi inaugurada em 1888 para servir como lugar de recepção, triagem e encaminhamento de trabalhadores nacionais e estrangeiros direcionados para as fazendas de café no interior do Estado. Antes dela, o alojamento de trabalhadores ocorreu na Hospedaria instalada no bairro do Bom Retiro cujo funcionamento se deu entre os anos de 1882 a 1887. O aumento do fluxo de trabalhadores no período pós abolição da escravidão fez com que o então governo provincial levasse a cabo a construção de uma Hospedaria com maior capacidade. 

A administração da Hospedaria em seus primeiros anos esteve sob a responsabilidade da Sociedade Promotora de Imigração, criada em 1886 por fazendeiros de café para promover a imigração estrangeira para São Paulo. As relações destes cafeicultores com o então Governo Provincial permitiram com que a Sociedade administrasse a Hospedaria até 1892 quando a Secretaria da Agricultura passou a administrar o prédio. A instituição abrigava os trabalhadores que eram trazidos pela política de imigração subsidiada ou que aqueles que não possuíam familiares, amigos ou referências de emprego. 

A Hospedaria de Imigrantes fazia parte de um complexo de hospedarias criadas entre o final do século XIX e início do século XX em várias partes do mundo. Houve hospedarias de emigrantes, como no caso da Hospedaria de Kobe, no Japão que organizavam o fluxo de trabalhadores para a saída do país e as hospedarias de imigrantes, como a de São Paulo, a da Ilha das Flores no Rio de Janeiro a de Buenos Aires na Argentina e a da Ilha de Ellis em Nova Iorque. 

Na Hospedaria de São Paulo havia refeitório, dormitórios, farmácia, hospital, telégrafo, agencia postal e outras instalações como a Agência de Colocação para o direcionamento dos trabalhadores rumo às fazendas do interior. Segundo seus administradores, o tempo ideal para a permanência dos imigrantes era de três dias nos quais seriam realizados os registros, inspeções médicas, contatos e direcionamentos para o trabalho nas fazendas. Por vezes o tempo ideal era excedido por razões de saúde ou mesmo insatisfação com as ofertas de trabalho e salários.    


Durante mais de 90 anos, a Hospedaria de Imigrantes do Brás foi um lugar de referência para pessoas oriundas de diversas partes do mundo. Estima-se que por lá passaram imigrantes de 75 nacionalidades e etnias além de brasileiros vindos de todos os estados da federação.


Até meados dos anos 1920, os trabalhadores estrangeiros compunham a maioria dos hospedados em suas dependências. Os italianos representaram o maior grupo. A partir dos anos 1930, com a crise da cafeicultura e o aumento das atividades industriais em São Paulo os trabalhadores nacionais – vindos majoritariamente de Minas Gerais e dos estados do Nordeste – tornaram-se a maioria entre os alojados. A proximidade com a Estação do Norte (hoje Estação Roosevelt) facilitava a chegada destes homens, mulheres e crianças que substituíram a mão de obra imigrante tanto no campo como nas cidades. 

Embora fosse um lugar de passagem, imigrantes e migrantes tiveram naquele edifício o seu primeiro endereço. Os indícios de sua passagem estão inscritos nos Livros de Registro: neles encontramos o nome, a nacionalidade, o lugar de origem e de destino de aproximadamente 1,9 milhão de imigrantes e 1,6 milhão de trabalhadores nacionais. A riqueza destes dados faz com que a Hospedaria seja um lugar de memória importante para muitos que são descendentes destes homens e mulheres que tiveram na migração uma alternativa para uma vida melhor. Muitos ainda hoje procuram informações sobre seus antepassados para instruir os processos de dupla cidadania, para a produção de árvores genealógicas ou mesmo como um lugar de memória e de referência sobre o passado familiar e comunitário.

Vale lembrar que a história deste edifício está associada não apenas aos trabalhadores e trabalhadoras que por ali passaram. Enquanto um lugar de viabilização da política de mão de obra, a Hospedaria do Brás presenciou as várias transformações do mundo do trabalho por quase um século. De lugar de passagem para os trabalhadores direcionados para a cafeicultura, a Hospedaria também foi o primeiro endereço de milhares de trabalhadores empregados na construção civil e nas indústrias na cidade. De suas dependências saíram muitos dos que construíram a cidade de São Paulo tal qual a conhecemos hoje. 

Em 1978 a Hospedaria do Brás recebeu o último grupo de trabalhadores estrangeiros. No entanto, nas décadas seguintes manteve-se como um lugar de acolhimento de trabalhadores nacionais. Atualmente, parte da edificação é administrada pelo Arsenal da Esperança,  organização que abriga pessoas em condição de rua e estrangeiros. São oferecidas refeições, exames médicos, cursos de capacitação. A parte frontal da edificação abriga, desde 2014, o Museu da Imigração do Estado de São Paulo que desenvolve atividades educativas e exposições sobre os diversos aspectos da vida de migrantes e imigrantes de todas as nacionalidades incluindo as migrações recentes como as de bolivianos, chineses, haitianos e diversas correntes migratórias vindas de África, América Latina e Ásia. O Museu mantém trabalhos com comunidades de imigrantes e migrantes; desenvolve pesquisas, cursos, palestras e uma série de atividades voltadas para o público escolar. Lá são realizados anualmente a festa do imigrante e o festival de gastronomia.

Grupo de Migrantes Nordestinos, por volta de 1940. Acervo Iconográfico do Museu da Imigração do Estado de São Paulo.
Disponível em:  http://www.inci.org.br/acervodigital/upload/fotografias/MI_ICO_AMP_046_003_010_001.jpg


Para saber mais: 

  • MOURA, Soraya; PAIVA, Odair da Cruz. Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 100 p. (Coleção São Paulo no Bolso).
  • PAIVA, Odair da Cruz. Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. Navegar: Revista de Estudos de E/Imigração, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 59-76, 2016. Dossiê Hospedaria de Imigrantes nas Américas. Disponível em: http://www.labimi.com.br/navegar/edicoes/03/Navegar_3_completa.pdf. 
  • UDAETA, Rosa Guadalupe Soares. Nem Brás, Nem Flores.: Hospedaria de Imigrantes da cidade de São Paulo (1875-1886). São Paulo: FFLCH/USP, 2016, 200p. (Produção Acadêmica Premiada) Disponível em: https://pt.br1lib.org/book/18192330/e92064  
  • MUSEU DA IMIGRAÇÃO: https://museudaimigracao.org.br/

Crédito da imagem de capa: Fachada da Hospedaria de Imigrantes do Brás, São Paulo-SP. s/d. Acervo Iconográfico do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.inci.org.br/acervodigital/upload/fotografias/MI_ICO_AMP_002_004_032_001.jpg
Acesso 03/05/2022.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#109: Quilombo do Bracuí, Angra dos Reis (RJ) – Martha Abreu e Hebe Mattos



Martha Abreu
Professora titular do Instituto de História da UFF

Hebe Mattos
Professora titular-livre da UFJF



O quilombo do Bracuí, situado em Angra do Reis (RJ) foi, e ainda é, palco de muitas lutas de trabalhadores descendentes de africanos escravizados. Na defesa de direitos, seus moradores transformaram em bandeira de luta e afirmação da identidade quilombola a sua própria história, a vigorosa tradição oral e o patrimônio do jongo (expressão de dança, canto e versos diretamente ligados ao legado africano no Brasil). 

Contar “causos” de antepassados escravizados para os filhos, sobrinhos e netos foi uma estratégia dos mais velhos de um grupo não letrado para que não se esquecesse a história da comunidade. Através de conversas, também falavam sobre antigos senhores, lembravam de casos de resistência dos escravizados e das muitas violências da escravidão e do tráfico. 

A narrativa mais estruturante da comunidade é a memória coletiva sobre a doação de lotes de terra para os escravizados da antiga fazenda no testamento de José de Souza Breves, de 1878, então proprietário da Santa Rita. A família Souza Breves era proprietária de muitas fazendas e de centenas de escravizados e sempre esteve envolvida com o lucrativo comércio ilegal de africanos. 

A área da fazenda de Santa Rita, de frente para as calmas águas de Angra dos Reis, suficientemente distantes do Rio de Janeiro para as atividades ilegais e estrategicamente próximas do Vale do Paraíba paulista e fluminense, foi local de chegada dos milhares de africanos. Recuperados da longa viagem na fazenda, logo subiam a Serra do Mar, em direção a Bananal, para suprir as plantações de café de mão de obra.

Por isso, a narrativa mais impactante diz respeito à memória coletiva dos quilombolas sobre os negócios ilegais do tráfico, emblematicamente representada pelo depoimento do Sr. Manoel Morais, um dos mais antigos moradores do quilombo e hoje já falecido. Neto de escravizados de José Breves, esse depoimento relata um desembarque clandestino ocorrido em 1852, que, ao que  tudo indica, foi um dos últimos ocorridos nas águas da Baía de Angra. 


A narrativa do Sr. Moraes é, sem dúvida, uma poderosa versão oral do episódio que ficou conhecido como o “caso do Bracuí”, quando o Brigue Camargo, vindo de Moçambique com 540 africanos, afundou e o governo imperial não poupou esforços para mostrar que estava realmente decidido a eliminar o tráfico de africanos para o Brasil.  A comunidade do Bracuí nunca esqueceu os desembarques ilegais. 


Ao falecer em 1878, José de Souza Breves deixou as terras da Fazenda do Bracuí, então de muito pouco valor depois do fim do tráfico ilegal na década de 1850, para seus antigos escravizados, tornados livres a partir daí. Sem nunca terem tido acesso aos direitos de legítimos proprietários, os libertos e descendentes permaneceram em seus lotes utilizando coletivamente os recursos do rio e as máquinas do engenho de cana, hoje em ruínas. Ao longo de grande parte do século XX, reconheciam os limites dos lotes de suas famílias e trabalhavam na agricultura de subsistência e na pesca. A única atividade monetária era a produção de banana, vendida a comerciantes de Angra dos Reis.  

Na primeira metade do século XX, há notícias de grileiros e as terras dos camponeses negros da Fazenda Santa Rita teriam sido registradas em nome de Honório Lima. Entre os anos 1950 e 70, os herdeiros negros do Bracui, apesar das tentativas jurídicas infrutíferas de fazerem valer seus direitos, não conseguiram reconhecimento de sua propriedade. Relatam, entretanto, que as maiores ameaças de expulsão começaram mesmo a partir da construção da Rodovia Rio-Santos, responsável pela abertura da região à produção de energia nuclear, ao turismo e à especulação imobiliária.

A estrada cortou a fazenda de Santa Rita em duas: a parte do mar e a parte do sertão.  Novos grileiros passaram a chegar e o grande empreendimento da Imobiliária Porto Bracuí tomou posse da fazenda ao comprar Santa Rita de proprietários ilegítimos. Com apoio do poder público, a imobiliária começou a utilizar de medidas coercitivas para os moradores abandonarem suas terras e conseguiu ocupar a maior parte da antiga fazenda do lado do mar. No entanto,  não deixou de explorar os recursos do lado do sertão, onde a comunidade conseguiu, com muita luta, permanecer, apesar das diversas pressões e violências.

A partir dos anos 1980 e 1990, com apoio da Pastoral da Terra da Igreja Católica e envolvimento com as lutas dos trabalhadores de Angra; com as mobilizações do movimento negro, com o apoio do Quilombo do Campinho em Parati e da Fundação Palmares, a organização da comunidade começou a ser feita em outras bases. Na luta pelos direitos historicamente negados e pela legitimidade das terras ocupadas há mais de cem anos, os herdeiros do Bracuí, acionaram o artigo 68 dos ADCT da Constituição de 1988 e o decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003. Em 2005, com 250 famílias, fundaram ARQUISABRA (Associação dos Remanescentes de Quilombo de Santa Rita do Bracui). Em 2012, obtiveram o reconhecimento da comunidade do Bracuí como Remanescente de Quilombo pela Fundação Palmares. Até hoje, porém, o quilombo do Bracui, ainda não foi titulado, mas a comunidade segue organizando a luta por seus direitos, mobilizando esforços na construção da escola quilombola, na sede da associação, na valorização da cultura negra local com o jongo, na criação de locais de visitação e na participação em redes maiores de associações quilombolas e de jongueiros, como o Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu.

 Sr. Manoel Moraes, hoje já falecido, no Quilombo do Bracuí.
Foto de Guilherme Hoffmann/Labhoi.


Para saber mais:

  • Abreu, Martha. “O caso do Bracuhy”. Em: Mattos, Hebe/Schnoor, Eduardo (Orgs.):  Resgate: Uma Janela para o Oitocentos. Rio de Janeiro:  Top Books, 1995
  • Abreu, M. e Mattos, H. “Remanescentes das Comunidades dos Quilombos”: memória do cativeiro, patrimônio cultural e direito à reparação. Habitus, vol 7, no. 12, Goiania,  2009.  http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/habitus/article/view/2016 
  • Mattos, H., Abreu, M. Souza, M., Couto, P. Relatório antropológico de caracterização histórica, econômica e sociocultural do Quilombo de Santa Rita do Bracuí. Niterói: UFF/Incra-SRRJ, 2009.
  • Site Projeto Passados Presentes, Memória da Escravidão no Brasil. http://passadospresentes.com.br/site/Site/index.php 
  • Filme: Passados Presentes – Memória Negra no Sul Fluminense http://www.labhoi.uff.br/passadospresentes/ 
  • Visitas à comunidade podem ser agendadas com Marilda de Souza (WhatsApp (24) 988172696), atual presidente da ARQUISABRA.

Crédito da imagem de capa: Marilda de Souza, grande anfitriã do Quilombo de Santa Rita do Bracuí e uma das maiores griôs da região, em atividade de jongo em 2015. Fonte: http://www.pontaojongo.uff.br/quilombo-santa-rita-do-bracui-inaugura-terceira-parte-da-exposicao-passados-presentes


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#108: Fábrica Santo Aleixo, Magé (RJ) – Juçara Mello e Felipe Ribeiro



Juçara Mello
Professora de História da PUC-Rio

Felipe Ribeiro
Professor de História da UESPI e Pesquisador do LEHMT-UFRJ



“Para mim a fábrica foi uma mãe, uma mãe severa, mas foi uma mãe”, a fala da tecelã Maria Oneida Péclat evidencia uma metáfora recorrente na memória operária do distrito de Santo Aleixo, município de Magé (RJ). A Fábrica Santo Aleixo foi uma mãe longeva, mantendo-se em atividade por mais de um século, talvez por isso chamada de “Fábrica Velha” por gerações de famílias operárias que tiveram suas vidas marcadas pela centralidade do trabalho fabril. 

Esta fábrica foi construída entre 1847 e 1848 por uma companhia estadunidense. O local escolhido se deu pelo potencial hidráulico dos rios da Serra dos Órgãos, garantindo energia ao funcionamento dos teares. Para as obras de construção foram contratadas 300 pessoas. A maior parte delas vinha da colônia alemã em Petrópolis. Muitas ficaram na fábrica por anos. Em 1851, ela possuía 115 operários livres, quase todos de menor idade, sendo 44 mulheres. 83 eram alemães, 17 brasileiros e o restante de outros países. À época, seus diretores diziam estar “na firme disposição de só em último caso recorrer ao serviço de escravos”. Nas décadas seguintes, a fábrica intensificou o trabalho infantil, recebendo órfãos de asilos e casas de expostos.

Seu primeiro prédio era todo em madeira, construído na vertical, com andares. O atual, em alvenaria e com galpões na horizontal, só começou a ser construído em 1926, levando décadas para ser concluído. A Fábrica Santo Aleixo foi administrada por diferentes empresas e chegou a ser rebatizada como Esther, quando foi adquirida pela Companhia Bezerra de Mello, em 1941, sendo esta a sua última e mais duradoura proprietária. O pernambucano Othon Lynch Bezerra de Mello, fundador da companhia e um dos maiores industriais do país, tinha o hábito de batizar suas fábricas com nomes de mulheres da família. 

O município de Magé também abrigou outras fábricas de tecidos, tornando-se um polo industrial no setor, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. Em 1946, por exemplo, relatórios da Comissão Executiva Têxtil (CETex) indicavam que Magé possuía 5 mil operários registrados em quatro unidades fabris, sendo 1.289 somente na Fábrica Santo Aleixo. Na década de 1940, mais de 20% dos moradores da cidade trabalhavam diretamente na indústria têxtil. 

Ao longo do século XX, diversos capixabas, mineiros, pernambucanos, paraibanos e outros migrantes do país afluíram para as fábricas da cidade, bem como fluminenses de outros municípios. Não há dados raciais consolidados, mas por meio de fotografias é possível afirmar uma destacada presença negra na Fábrica Santo Aleixo, bem diferente daquele panorama alemão de meados do século XIX. Porém, o índice de operárias e crianças permanecia alto. Dados do CETex a nível estadual (com o antigo Distrito Federal) indicavam que 22% eram menores e 39% mulheres no setor têxtil fluminense.

No distrito de Santo Aleixo, além da fábrica homônima, havia outra a cerca de 2 km, a Andorinhas. Ambas adotaram medidas sociais de acesso a moradias em vilas operárias, educação primária, saúde e lazer, que impactavam a vida extrafabril e reforçavam os laços do paternalismo industrial. Essas duas unidades fabris, tão próximas, cada qual com sua vila operária, seus clubes de futebol (Andorinhas e Guarany) e blocos de carnaval (Aranha e Butantã) alimentavam uma forte rivalidade. Neste contexto, a identidade da grande família fabril era brevemente suspensa, dando lugar às disputas entre cada fábrica, que permanecem até os dias de hoje.


Outro imbricamento entre identidades locais e de classe social é a localização do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem de Santo Aleixo. Fundado em 1941, sua sede fica estrategicamente no bairro do Centro, a meio caminho entre as duas fábricas, reforçando que a entidade classista buscava driblar essas tensões.


Em sua trajetória de lutas, o operariado têxtil de Santo Aleixo protagonizou diversas greves, algumas delas bastante famosas, como a Greve Geral de 1918. Em Santo Aleixo ela ficou conhecida como a Greve do Pano, pois além de paralisar o trabalho e tomar as duas fábricas, operários levaram para casa fardos de tecidos dos estoques fabris. Este episódio associado a outros, como a greve de solidariedade ocorrida em 1935, por conta da morte de um operário em Petrópolis provocada por integralistas; a mobilização contra o nazifascismo na Segunda Guerra; a forte atuação do Partido Comunista na cidade no pós-guerra; a eleição de diversos operários e uma operária na Câmara de Vereadores de Magé entre 1947 e 1962; bem como a forte repressão sindical e política na cidade após o golpe de 1964, consolidaram o apelido de “Moscouzinho” ao local.

Assim, diversas identidades se estabeleceram em torno da Fábrica Santo Aleixo: seja a noção imaginária e harmoniosa da grande família fabril, que visava unir todo o distrito; seja a rivalidade entre os bairros, blocos e times operários ligados às fábricas; e também a identidade de classe, que lutava por direitos e melhores condições de vida. Essas múltiplas identidades se mesclavam e tensionavam mutuamente.

Ao enfrentar uma crise na década de 1970, que afetou outras produtoras de tecidos de algodão do país, a Fábrica Santo Aleixo encerrou suas atividades têxteis em 1982, simbolizando uma ameaça à identidade operária local. Mesmo não tendo preservado seu edifício antigo do século XIX, o atual prédio também possui relevante valor histórico. Seus galpões abandonados, sem uso industrial, carecem de projetos que conectem essa pujante memória operária, que ainda resiste.

Fachada atual do prédio que abrigou a Fábrica Santo Aleixo (2012).
Acervo: Taiane Linhares.


Para saber mais:

  • MELLO, Juçara da Silva Barbosa de. Identidade, Memória e História em Santo Aleixo: aspectos do cotidiano operário na construção de uma cultura fabril. Curitiba: Appris, 2019.
  • OLIVEIRA, Sônia Maria Gonzaga de. Montanhas de Pano: fábrica e vila operária em Santo Aleixo. Rio de Janeiro: Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992.
  • PEREIRA, Aline Fernandes. A Fábrica Santo Aleixo: a importância de uma indústria têxtil como exemplo de trabalho manufatureiro livre em uma sociedade escravista. Vassouras: Mestrado em História Social, Universidade Severino Sombra, 2006.
  • RIBEIRO, Felipe. Memórias da Moscouzinho: os tecelões de Santo Aleixo e a liderança de Astério dos Santos. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.
    LINHARES, Taiane. Tear. Documentário, 2013. Disponível em <http://www.doctear.com.br/>.

Crédito da imagem de capa:  Antigo prédio da Fábrica Santo Aleixo (entre as décadas de 1910 e 1920) e sua Marca Registrada (final do século XIX). Acervos: Aline Pereira e Ademir Calixto Oliveira, respectivamente. Montagem: Felipe Ribeiro.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#107: Metalúrgica Abramo Eberle, Caxias do Sul (RS) – Anthony Beux Tessari



Anthony Beux Tessari
Professor na Universidade de Caxias do Sul (UCS)



Caxias do Sul, localizada na Serra gaúcha, é a segunda maior cidade do Rio Grande do Sul e destaca-se nacionalmente pela produção na indústria da transformação. Neste início da década de 2020, são cerca de 67 mil trabalhadores empregados nos mais de 10 mil estabelecimentos industriais existentes na cidade. Por mais de meio século, a Metalúrgica Abramo Eberle foi a maior expressão no seu ramo de atividade, atraindo mão-de-obra local e trabalhadores de outras regiões. Suas unidades fabris hoje constituem em patrimônio histórico da cidade, cujo principal valor de preservação está relacionado à memória dos trabalhadores.

Nas narrativas elaboradas e patrocinadas pela empresa, que procuram salientar o pioneirismo e empreendedorismo de seu fundador, a Metalúrgica Abramo Eberle iniciou suas atividades em 1896, quando o imigrante italiano Abramo Eberle, aos dezesseis anos de idade, teria comprado, do próprio pai, Giuseppe Eberle, uma oficina de funilaria, estabelecida em Caxias do Sul. Contudo, a oficina funcionava desde uma década antes, e boa parte desse período teve sob seu comando Luigia Zanrosso Eberle, mãe de Abramo e esposa de Giuseppe, que assumiu o negócio da família trabalhando como funileira e ensinando o filho na atividade. 

Na década de 1900, os primeiros investimentos não foram expressivos em maquinário, mas na contratação de força de trabalho, inclusive muitas crianças, denominadas de aprendizes. Os primeiros aprendizes, Ernesto Barbisan e Eugenio Lucchese, tiveram os seus contratos de trabalho assinados em 1901, quando tinham a idade de 12 e 13 anos, respectivamente. Ambos eram empregados com a condição de residirem na casa de Abramo, e deviam “cuidar as ordens dos patrões, e prestar toda a obediência como se fosse a seus pais”. 

Nos anos 1920, uma parte da fábrica passou a funcionar em prédios de alvenaria, e incorporou mecanismos automáticos à produção. No mesmo período, houve a fixação dos primeiros regulamentos, que tinham o objetivo de disciplinar a dinâmica produtiva e as relações de trabalho. Naquela década, com quase 300 trabalhadores empregados, a fábrica absorvia cerca de 25% da mão-de-obra operária local.

Em notícia de jornal, de 1921, encontra-se a menção mais antiga a um acidente de trabalho na fábrica, o da morte do operário Arthur Rosa, que teve traumatismo craniano após cair de uma altura aproximada de 7 metros.  Outros relatos, registrados em fontes orais, falam de um ambiente de trabalho perigoso e documentam outras mortes de trabalhadores, assim como de operários que sofreram amputações ou adquiriram deficiências diversas.


No ano de 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial, a fábrica foi declarada de interesse militar pelo governo brasileiro, tendo parte da sua produção dedicada a atender a Força Expedicionária Brasileira.


Passado o esforço de guerra, em 1948, foi inaugurada a segunda unidade da fábrica, o que resultou na intensificação do trabalho de fundição e de artefatos artísticos e religiosos e o início da produção de motores elétricos. Além disso, a fábrica também produzia, em grande escala, artigos de montaria, espadas, facas, prataria e talheres. 

Abramo Eberle faleceu em 1945; foi comerciante, industrial, vice-intendente municipal, aproximou-se do fascismo na década de 1920 e apoiou o Estado Novo varguista. Com sua morte, a administração da fábrica foi continuada por seus dois filhos homens.  A empresa – e a família – Eberle manteve-se próxima de autoridades políticas regionais e nacionais, recepcionando por exemplo, os presidentes militares da Ditadura em visitas oficiais à Caxias do Sul.

Entre 1905 e 1970, a fábrica empregou cerca de 11.300 trabalhadores, sendo a maioria constituída por homens, mas com parcela significativa de mulheres e de aprendizes. A maior parte dos operários era oriunda de Caxias do Sul ou de municípios vizinhos. A primeira ficha que identifica uma pessoa negra na fábrica é datada de 1943, embora se perceba a presença de negros nas seções de trabalho em fotografias desde o início da década de 1920. 

Em suas publicações, a administração da fábrica orgulhava-se de não registrar greves com ampla adesão dos empregados. Apenas em 1963 ocorreu a primeira e maior greve na fábrica, que teve a participação de 95% dos operários, segundo o depoimento de um líder sindical do período, Bruno Segalla. Contra a adesão aos movimentos grevistas, a administração da fábrica atuava combinando atitudes paternalistas com medidas de assistência social. Repressão no interior da fábrica também era uma característica, notando-se por exemplo, em fotografias, os quadros de multas afixados nas seções de trabalho.

A Metalúrgica Abramo Eberle foi vendida para outros grupos empresariais em meados da década de 1980. Naquele período, a fábrica era constituída por nove unidades fabris, distribuídas em três grandes fábricas. Atualmente, duas fábricas da antiga Eberle encontram-se desativadas do seu uso industrial original, e foram tombadas como patrimônio histórico de Caxias do Sul. O conjunto dos prédios mais antigos da fábrica pertencem a um grupo privado de investidores, e têm hoje ocupação diversa, para escritórios, lojas comerciais e estacionamento para veículos. A segunda unidade, pertencente ao município, após diversos movimentos e lutas da sociedade civil, encontra-se em processo de definição de uso cultural e relacionado à memória do esforço e dedicação de milhares de trabalhadores que se constituíram como operários metalúrgicos.

“Na hora de começar o trabalho”, registra a legenda desta fotografia, datada de 1922. A edificação ao fundo foi a primeira a ser erguida em alvenaria, forma construtiva que substituiu aos poucos as primitivas oficinas que funcionavam em construções de madeira vistas no primeiro plano.
Acervo: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.


Para saber mais:

  • BERGAMASCHI, Heloísa Délia Eberle. Abramo e seus filhos: cartas familiares – 1920/1945. Caxias do Sul: Educs, 2005.
  • LAZZAROTTO, Valentim Angelo. Pobres construtores de riqueza: absorção da mão-de-obra e expansão industrial na Metalúrgica Abramo Eberle: 1905-1970. Caxias do Sul, RS: Educs, 1981.
  • TESSARI, Anthony Beux. Imagens do labor: memória e esquecimento nas fotografias do trabalho da antiga Metalúrgica Abramo Eberle. Dissertação de Mestrado em História. PUCRS, 2013.
  • TESSARI, Anthony Beux (et alli). Projeto Educa Maesa: história e educação patrimonial no complexo industrial da antiga Metalúrgica Abramo Eberle S.A. 2020. Disponível em: https://sites.google.com/view/educamaesa. Acesso em: 15 jan. 2022.
  • TISOTT, Ramon Victor. Pequenos trabalhadores: infância e industrialização em Caxias do Sul (fim do Séc. XIX e início do Séc. XX). Dissertação de Mestrado em História. Unisinos, 2008.

Crédito da imagem de capa:  “Os operários da fábrica”, diz a legenda escrita pela fábrica para esta fotografia datada de 1907, em que aparecem 60 trabalhadores, incluindo o patrão Abramo Eberle e seu sócio-irmão Pedro Eberle. Acervo: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.


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LMT#106: Rua Visconde do Rio Branco 651, Niterói (RJ) – Luciana Pucu Wollmann e Lucas Corrêa



Luciana Pucu Wollmann
Professora na rede pública de ensino de Niterói e do Rio de Janeiro e Doutora em História pela FGV

Lucas Corrêa
Doutorando em Ciência da Informação pela Universidade Federal Fluminense


Eles eram poucos.
E nem puderam cantar muito alto a Internacional.
Naquela casa de Niterói em 1922.
Mas cantaram e fundaram o partido.
Eles eram apenas nove, o jornalista Astrojildo, o contador Cordeiro, o gráfico Pimenta, o sapateiro José Elias, o vassoureiro Luís Peres, os alfaiates Cendon e Barbosa, o ferroviário Hermogênio.
E ainda o barbeiro Nequete, que citava Lênin a três por dois.
Em todo o país eles eram mais de setenta.
Sabiam pouco de marxismo, mas tinham sede de justiça e estavam dispostos a lutar por ela.
Faz sessenta anos que isso aconteceu, o PCB não se tornou o maior partido do ocidente, nem mesmo do Brasil.
Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele.
Ou estará mentindo

Ferreira Gullar, “Eles eram poucos”, 1972.



Foi no caminho onde hoje se localiza o Diretório Central dos Estudantes e o campus da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ), que o Partido Comunista do Brasil (PCB) nasceu. Era 27 de março de 1922 e os nove delegados que participavam do Congresso de fundação do partido, se reuniram ali, precisamente na Rua Visconde do Rio Branco 651, para o último dia do encontro que deu origem ao Partido. Esse endereço  era a casa da família do jornalista, crítico literário e militante Astrojildo Pereira. Depois de lerem as resoluções e aprovarem as moções, os delegados – entre eles dois alfaiates, dois funcionários públicos, um barbeiro, um eletricista, um operário gráfico, um vassoureiro e um jornalista – deram por encerrado o Congresso, mas não sem antes cantar de pé e sussurrando (para não alarmar os vizinhos e tampouco as duas tias idosas de Astrojildo que residiam naquela casa), trechos da Internacional. O momento seria eternizado pelo poeta Ferreira Gullar, no poema “Eles eram poucos” (escrito no auge da ditadura militar) em homenagem aos sessenta anos do PCB.

O Congresso que deu origem ao PCB iniciou-se dois dias antes na sede do Sindicato dos Alfaiates e Metalúrgicos do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Informados sobre uma possível batida policial, os congressistas atravessaram a Baía de Guanabara e imortalizaram Niterói como a cidade onde nasceu o partido. Localizada no centro da cidade, a casa da família de Astrojildo estava em uma região movimentada da então capital fluminense. Não muito distante dali, a Praça Martim Afonso, hoje mais conhecida como Praça Arariboia, era local de muitos comícios políticos e agitações operárias e também onde estava localizada a estação das barcas.

A fundação do PCB se deu em um contexto de ascenso nacional e internacional da classe trabalhadora. Trabalhadoras e trabalhadores sofriam com a carestia e os efeitos da Primeira Guerra Mundial. Os anos entre 1917 e 1921 seriam marcados por importantes movimentos grevistas em todo o país. Em Niterói, destacou-se a greve da Cantareira em 1918, ocorrida há poucos metros de distância da casa em que seria fundado o PCB. Iniciada por demandas salariais, o movimento se ampliou e ganhou forte apoio popular, organizando grandes manifestações de rua. Até mesmo militares do exército se juntaram aos trabalhadores em greve. A parede, ainda que vitoriosa, deixou um saldo de mortos e feridos, além de muitas prisões, entre as quais a de dois futuros fundadores do PCB, Astrojildo Pereira e João Costa Pimenta.


Como em todo o mundo, as lideranças operárias acompanhavam com entusiasmo, curiosidade e expectativa as notícias sobre a Revolução Russa de 1917 e seus desdobramentos. A criação em Moscou, em 1919, da III Internacional (ou Comintern) estimulou os simpatizantes da revolução a criarem Partidos Comunistas em todo o globo.


Esses partidos, na maioria dos casos, surgiram de divisões de partidos socialistas e socialdemocratas. No Brasil, entretanto, a fragilidade desses partidos e a maior presença anarquista no movimento operário, fez com que o impacto da revolução russa se apresentasse como uma “crise do anarquismo”, como a descreveria Astrojildo Pereira. Assim, muitos antigos militantes anarquistas, como o próprio Astrogildo, participaram do processo de fundação e construção do PCB nos anos 1920.

Nas décadas subsequentes, apesar da intensa repressão e da propagação de um forte anticomunismo, a influência do PCB foi crescendo, em particular nos meios operários e intelectuais. Em Niterói, a popularidade do partido entre os trabalhadores acabou garantindo a vitória do ferroviário Claudino José da Silva como deputado constituinte mais votado na cidade em 1945, em um dos breves períodos de legalidade do PCB. Entre os anos 1940 e 1960, mesmo impedido de funcionar legalmente, o partido exerceu forte influência junto ao movimento sindical, estudantil e popular da cidade, tomando parte de greves, manifestações e diferentes mobilizações nos bairros periféricos da cidade.

Com o golpe militar de 1964, a capital fluminense, considerada como parte do “Cinturão Vermelho” do Rio de Janeiro, sofreu dura repressão. Ali, como em outras lugares do país, lideranças comunistas foram mortas, torturadas, exiladas, separadas das suas famílias e impedidas de lutar pelo o que acreditavam. O Partidão (alcunha pela qual o PCB ficou conhecido) sofreu diversas dissidências, mas resistiu e foi uma organização importante da oposição democrática. Em 1985, após 21 anos de ditadura militar, recuperou a sua existência legal. Mas nunca mais teve o mesmo peso e influência que usufruiu nas décadas anteriores. O fim da União Soviética e a crise do movimento comunista internacional abateu-se fortemente sobre o partido que, nos anos 90 diluiu-se em diferentes organizações políticas.

No caminho onde fica o burburinho estudantil dos bares próximos à UFF, onde estudantes e trabalhadores/as vêm e vão em direção à estação das barcas, existia uma casa onde foi fundado o PCB. Há anos demolida, a casa deu lugar a um estacionamento, mas mesmo assim ainda hoje, o local permanece vivo na memória de muitos militantes. Naquele mesmo caminho, onde se centralizam as manifestações estudantis e populares da cidade e onde as pichações e grafites dos muros, não raro, fazem alusão à revolução, os novos usos do espaço lhes prestam homenagem – ainda que silenciosa – e mantém vivo o espírito revolucionário de todos aqueles que lutaram (e ainda lutam) por um Brasil com mais igualdade de classe e justiça social.

Fundadores do PCB: de pé, Manoel Cendón, Joaquim Barbosa, Astrojildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luis Peres, José Elias da Silva. Sentados: Hermôgeno Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro.  
Fonte Site: https://pcb.org.br/portal2/10702 e Livro: SEGATTO, J. A. et al. PCB: memória fotográfica, 1922-1982. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 13.


Para saber mais:

  • A Casa de Astrojildo. Fundação Astrojildo Pereira. 6/10/2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n8EUPZenNdo.
  • FEIJÓ, MARTINS CEZAR. O Revolucionário Cordial : Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural. Boitempo Editorial, São Paulo, 2001.
  • MACHADO, Antonio Felipe da Costa Monteiro. Forjas da Liberdade: Educação Operária, Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário na Niterói da Primeira República. UNIRIO: Rio de Janeiro, 2017. Dissertação de mestrado.
  • PEREIRA, Astrojildo. Lutas operárias que antecederam a fundação do Partido Comunista do Brasil. in. Problemas – Revista Mensal de Cultura Política nº 39 – Mar-Abr de 1952.
  • WOLLMANN, Luciana Pucu. Da eleição à cassação: a atuação dos parlamentares comunistas na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (1947-1948). Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. nº 16, 2019.

Crédito da imagem de capa:  “Casa da Rua Visconde do Rio Branco nº 651, em Niterói, onde se reuniu a 3º sessão do I Congresso do PCB, em 27 de março de 1922”. Referência da imagem: PEREIRA, Astrojildo. A formação do PCB, 1922-1928: notas e documentos. São Paulo: Anita Garibaldi: Fundação Mauricio Grabois, 2012. p. 36.12:25


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