LMT#108: Fábrica Santo Aleixo, Magé (RJ) – Juçara Mello e Felipe Ribeiro



Juçara Mello
Professora de História da PUC-Rio

Felipe Ribeiro
Professor de História da UESPI e Pesquisador do LEHMT-UFRJ



“Para mim a fábrica foi uma mãe, uma mãe severa, mas foi uma mãe”, a fala da tecelã Maria Oneida Péclat evidencia uma metáfora recorrente na memória operária do distrito de Santo Aleixo, município de Magé (RJ). A Fábrica Santo Aleixo foi uma mãe longeva, mantendo-se em atividade por mais de um século, talvez por isso chamada de “Fábrica Velha” por gerações de famílias operárias que tiveram suas vidas marcadas pela centralidade do trabalho fabril. 

Esta fábrica foi construída entre 1847 e 1848 por uma companhia estadunidense. O local escolhido se deu pelo potencial hidráulico dos rios da Serra dos Órgãos, garantindo energia ao funcionamento dos teares. Para as obras de construção foram contratadas 300 pessoas. A maior parte delas vinha da colônia alemã em Petrópolis. Muitas ficaram na fábrica por anos. Em 1851, ela possuía 115 operários livres, quase todos de menor idade, sendo 44 mulheres. 83 eram alemães, 17 brasileiros e o restante de outros países. À época, seus diretores diziam estar “na firme disposição de só em último caso recorrer ao serviço de escravos”. Nas décadas seguintes, a fábrica intensificou o trabalho infantil, recebendo órfãos de asilos e casas de expostos.

Seu primeiro prédio era todo em madeira, construído na vertical, com andares. O atual, em alvenaria e com galpões na horizontal, só começou a ser construído em 1926, levando décadas para ser concluído. A Fábrica Santo Aleixo foi administrada por diferentes empresas e chegou a ser rebatizada como Esther, quando foi adquirida pela Companhia Bezerra de Mello, em 1941, sendo esta a sua última e mais duradoura proprietária. O pernambucano Othon Lynch Bezerra de Mello, fundador da companhia e um dos maiores industriais do país, tinha o hábito de batizar suas fábricas com nomes de mulheres da família. 

O município de Magé também abrigou outras fábricas de tecidos, tornando-se um polo industrial no setor, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. Em 1946, por exemplo, relatórios da Comissão Executiva Têxtil (CETex) indicavam que Magé possuía 5 mil operários registrados em quatro unidades fabris, sendo 1.289 somente na Fábrica Santo Aleixo. Na década de 1940, mais de 20% dos moradores da cidade trabalhavam diretamente na indústria têxtil. 

Ao longo do século XX, diversos capixabas, mineiros, pernambucanos, paraibanos e outros migrantes do país afluíram para as fábricas da cidade, bem como fluminenses de outros municípios. Não há dados raciais consolidados, mas por meio de fotografias é possível afirmar uma destacada presença negra na Fábrica Santo Aleixo, bem diferente daquele panorama alemão de meados do século XIX. Porém, o índice de operárias e crianças permanecia alto. Dados do CETex a nível estadual (com o antigo Distrito Federal) indicavam que 22% eram menores e 39% mulheres no setor têxtil fluminense.

No distrito de Santo Aleixo, além da fábrica homônima, havia outra a cerca de 2 km, a Andorinhas. Ambas adotaram medidas sociais de acesso a moradias em vilas operárias, educação primária, saúde e lazer, que impactavam a vida extrafabril e reforçavam os laços do paternalismo industrial. Essas duas unidades fabris, tão próximas, cada qual com sua vila operária, seus clubes de futebol (Andorinhas e Guarany) e blocos de carnaval (Aranha e Butantã) alimentavam uma forte rivalidade. Neste contexto, a identidade da grande família fabril era brevemente suspensa, dando lugar às disputas entre cada fábrica, que permanecem até os dias de hoje.


Outro imbricamento entre identidades locais e de classe social é a localização do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem de Santo Aleixo. Fundado em 1941, sua sede fica estrategicamente no bairro do Centro, a meio caminho entre as duas fábricas, reforçando que a entidade classista buscava driblar essas tensões.


Em sua trajetória de lutas, o operariado têxtil de Santo Aleixo protagonizou diversas greves, algumas delas bastante famosas, como a Greve Geral de 1918. Em Santo Aleixo ela ficou conhecida como a Greve do Pano, pois além de paralisar o trabalho e tomar as duas fábricas, operários levaram para casa fardos de tecidos dos estoques fabris. Este episódio associado a outros, como a greve de solidariedade ocorrida em 1935, por conta da morte de um operário em Petrópolis provocada por integralistas; a mobilização contra o nazifascismo na Segunda Guerra; a forte atuação do Partido Comunista na cidade no pós-guerra; a eleição de diversos operários e uma operária na Câmara de Vereadores de Magé entre 1947 e 1962; bem como a forte repressão sindical e política na cidade após o golpe de 1964, consolidaram o apelido de “Moscouzinho” ao local.

Assim, diversas identidades se estabeleceram em torno da Fábrica Santo Aleixo: seja a noção imaginária e harmoniosa da grande família fabril, que visava unir todo o distrito; seja a rivalidade entre os bairros, blocos e times operários ligados às fábricas; e também a identidade de classe, que lutava por direitos e melhores condições de vida. Essas múltiplas identidades se mesclavam e tensionavam mutuamente.

Ao enfrentar uma crise na década de 1970, que afetou outras produtoras de tecidos de algodão do país, a Fábrica Santo Aleixo encerrou suas atividades têxteis em 1982, simbolizando uma ameaça à identidade operária local. Mesmo não tendo preservado seu edifício antigo do século XIX, o atual prédio também possui relevante valor histórico. Seus galpões abandonados, sem uso industrial, carecem de projetos que conectem essa pujante memória operária, que ainda resiste.

Fachada atual do prédio que abrigou a Fábrica Santo Aleixo (2012).
Acervo: Taiane Linhares.


Para saber mais:

  • MELLO, Juçara da Silva Barbosa de. Identidade, Memória e História em Santo Aleixo: aspectos do cotidiano operário na construção de uma cultura fabril. Curitiba: Appris, 2019.
  • OLIVEIRA, Sônia Maria Gonzaga de. Montanhas de Pano: fábrica e vila operária em Santo Aleixo. Rio de Janeiro: Mestrado em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992.
  • PEREIRA, Aline Fernandes. A Fábrica Santo Aleixo: a importância de uma indústria têxtil como exemplo de trabalho manufatureiro livre em uma sociedade escravista. Vassouras: Mestrado em História Social, Universidade Severino Sombra, 2006.
  • RIBEIRO, Felipe. Memórias da Moscouzinho: os tecelões de Santo Aleixo e a liderança de Astério dos Santos. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.
    LINHARES, Taiane. Tear. Documentário, 2013. Disponível em <http://www.doctear.com.br/>.

Crédito da imagem de capa:  Antigo prédio da Fábrica Santo Aleixo (entre as décadas de 1910 e 1920) e sua Marca Registrada (final do século XIX). Acervos: Aline Pereira e Ademir Calixto Oliveira, respectivamente. Montagem: Felipe Ribeiro.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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