Carolina Dellamore
Doutora em História pela UFMG
De vários pontos de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, é possível avistar as chaminés da antiga Companhia Cimento Portland Itaú. Fundada em 1941 e desativada em 1984, a Itaú segue sendo lembrada. Se de um lado, os antigos operários guardam uma memória positiva da fábrica, por outro, muitos moradores da cidade recordam a emissão de pó de cimento das chaminés e as doenças respiratórias advindas da poluição. Nos anos de 1970, muitos deles engajaram-se na luta ambiental, mobilizando-se para exigir a instalação de filtros antipoluentes na empresa.
A fábrica de cimento Itaú foi a primeira implantada no Parque Industrial de Contagem. O Parque, projeto do governo de MG, procurava estimular o desenvolvimento industrial do Estado. Sua implantação atraiu trabalhadores de diversos municípios mineiros e de outros estados do país para empregarem-se na construção da fábrica, sendo absorvidos como operários posteriormente. Construíram grandes galpões, um prédio administrativo em estilo Art Déco e quatro fornos com suas respectivas chaminés. No terreno da Companhia também foi erguida uma vila operária destinada aos trabalhadores considerados indispensáveis à produção de cimento.
Os moradores não pagavam aluguel, as casas eram emprestadas e vinham mobiliadas. A vila possuía posto médico e dentário, farmácia, clube, cinema, armazém, capela e um teatro. Além do Conjunto Musical Itaú, que animava os bailes, havia um time de futebol e a banda de música Sociedade Musical Itaú.
Tudo isso criou um modo de vida dos trabalhadores que contribui para a construção, de um modo geral, de uma memória positiva do “tempo da vila”. Contudo, os trabalhadores que ali viviam também se reclamam da falta de privacidade e de ficarem totalmente à disposição da empresa, já que a produção de cimento se estendia pelas 24 horas do dia.
A instalação da Itaú em Contagem, no entanto, representou um desafio para a empresa, pois a jazida de calcário, matéria prima necessária para a produção de cimento ficava em São José da Lapa, na época distrito de Lagoa Santa. Para solucionar a questão, a Itaú construiu um teleférico com 28 quilômetros de extensão ligando a jazida à Contagem. Formado por uma estrutura de postes de concreto por onde passavam cabos de aço que sustentavam caçambas, o teleférico além do transporte de calcário, servia aos moradores da região para transportar alimentos e outras mercadorias e não era raro ver trabalhadores da fábrica e crianças pegarem carona nas caçambas. O teleférico foi desativado há muitos anos, mas os postes ainda podem ser vistos na paisagem local, remetendo a lembranças divertidas das caronas, principalmente de moradores do bairro Água Branca.
Nos anos 1960, a Itaú já tinha implantado mais três fornos, aumentando sua capacidade produtiva e convertendo-a na principal fornecedora de cimento para a construção de Brasília. A ampliação da produção, contudo, elevou consequentemente os níveis de poluição em Contagem. A imagem dos telhados brancos das casas em função do pó de cimento que caia diariamente das chaminés é algo muito comum nas memórias dos moradores que também conviviam com diversos problemas de saúde, principalmente respiratórios.
Na década de 1970, a situação tornou-se insustentável, provocando grande mobilização popular para exigir a instalação de filtros antipoluentes. Em 1975, pressionada, a Prefeitura de Contagem, por meio de um decreto municipal determinou o fechamento da fábrica até que fossem colocados os filtros. Os moradores reforçaram a ação da prefeitura e saíram às ruas, em passeata, exigindo o cumprimento do decreto.
No entanto, um dia depois de iniciado o fechamento da Itaú, o presidente da República, General Ernesto Geisel, promulgou um decreto que tornava responsabilidade exclusiva do governo federal “determinar ou cancelar a suspensão do funcionamento de estabelecimento industrial cuja atividade seja considerada de alto interesse do desenvolvimento e da segurança nacional”. Assim, em plena ditadura militar, o fechamento da Itaú era cancelado. Alguns moradores do entorno da fábrica foram monitoradas pela polícia política durante toda mobilização. Transformada em questão de segurança nacional, a fábrica de cimento seguiu funcionando sem os filtros antipoluentes e lançando pó de cimento no ar de Contagem até sua desativação em 1984.
Em 1998, a Itaú foi parcialmente demolida para a construção de um complexo comercial. Em função da rápida ação dos técnicos da Diretoria de Memória e Patrimônio Cultural e do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Contagem (Compac) as quatro chaminés e o prédio administrativo da Companhia foram tombados como patrimônio cultural do município em 2001 e incorporados ao novo empreendimento. Essas edificações patrimonializadas são marcas materiais da efervescência da indústria em Contagem e possibilitam conhecer um tipo de industrialização e o modo de vida de trabalhadores, sua memória e seus saberes. Além disso, as chaminés que tanto poluíram, preservadas, podem ser lidas como símbolo da luta dos trabalhadores da região por melhores condições de vida.
Para saber mais:
- ANDRADE JÚNIOR, Adebal de. Abrindo patrimônios: objetos, práticas e sentidos do tombamento. Rio de Janeiro: Multifoco, 2016.
- CONTAGEM. Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Dossiê de tombamento das Chaminés e prédio administrativo da antiga Companhia Cimento Portland Itaú. Contagem: Superintendência de Cultura, 1999.
- DELLAMORE, Carolina. Forjando lideranças: comportamentos políticos e militância operária no Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem (1957-1984). 2019. 443f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em História, Belo Horizonte/MG.
- NEVES, Magda de Almeida. Trabalho e Cidadania: as trabalhadoras de Contagem. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994.
- SILVA, Ronaldo André Rodrigues. Patrimônio industrial: história, memória e cultura. Revista Por dentro da história, Contagem, n.5, 2012, p. 12-15. Disponível em: http://www.contagem.mg.gov.br/arquivos/publicacoes/revistapordentrodahistoria1608bx5-20190614030541.pdf?x=20191027121922
Crédito da imagem de capa: Companhia Cimento Portland Itaú em funcionamento. Acervo Casa da Cultura Nair Mendes Moreira, Museu Histórico de Contagem (MG).
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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