José Ricardo Ramalho
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ
Fundada em 1942, no contexto da Segunda Guerra Mundial, e localizada em Xerém, distrito do município de Duque de Caxias, no Estado do Rio de Janeiro, a Fábrica Nacional de Motores (FNM) foi construída pelo Estado, sob o rigor da disciplina militar e do apelo ao patriotismo. Assim como a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Nacional de Álcalis e a Companhia Vale do Rio Doce, o projeto da fábrica se enquadrava na estratégia de desenvolvimento industrial do período Vargas. A escolha da Baixada Fluminense visava garantir a realização de uma “Cidade dos Motores”, autossuficiente em alimentação e moradia, quase como a ideia de um laboratório.
Inicialmente concebida como uma indústria de motores aeronáuticos, a empresa estatal passou, a partir de 1949, a fabricar caminhões e, posteriormente, automóveis. Seus vagarosos e resistentes caminhões ficaram conhecidos como “Fenemê” ou “João Bobo”, e seu automóvel ganhou o nome do presidente JK. Sua história estava entrelaçada com o desejo de parte da elite governamental, militar e empresarial de transformar o “homem brasileiro” em um “trabalhador brasileiro”.
As exigências do processo de trabalho fabril ainda eram desconhecidas para a maioria dos trabalhadores, em sua maioria migrantes mineiros e nordestinos. A fábrica chegou a ter perto de 5.000 operários no final da década de 1950, um quarto deles vivendo nas vilas operárias construídas ao redor da fábrica. A ênfase na disciplina e no respeito às chefias eram elementos centrais de um sistema que se implantava com apelo aos valores de “dignidade” e “caráter”. Eram relações de trabalho marcadas pelo exercício da subordinação com características militares, paternalistas e de controle sobre a esfera da reprodução social.
Quando a política “invadiu a FNM”, principalmente nos anos 1960, aquele modelo de dominação passou a sofrer questionamentos. Com uma estratégia de estar mais presente dentro da fábrica, o Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara não só passou a ter representantes em cada seção, como passou a discordar publicamente das decisões que prejudicavam os operários, chegando, em certos momentos, a reverter algumas delas, graças a paralisações parciais ou mesmo greves.
Foi o que ocorreu em março de 1961, quando pela primeira vez na história da fábrica, os operários paralisaram totalmente o trabalho. Como destacou o jornal Última Hora, foi uma “vigorosa manifestação de protesto contra os baixos salários e que a administração da empresa se nega a reajustar”. A greve era a confirmação do fortalecimento do movimento sindical e teve como consequência a construção de uma subdelegacia do sindicato nos domínios da FNM, em plena vila operária.
Como parte desta ação sindical de ocupação do espaço político, particularmente em empresas estatais, foram deslocados para a FNM, desde o final dos anos 1950, metalúrgicos militantes de partidos políticos, em especial do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A presença de operários politicamente mais experientes no chão da fábrica estimulou a organização dos trabalhadores enquanto classe. Aquele também foi um período de intensas disputas políticas entre os próprios operários. Além da militância comunista, o Círculo Operário Católico atuava com vigor no interior da FNM.
Embora defendessem a empresa como baluarte da indústria nacional (o nacionalismo era uma das principais linguagens do sindicalismo daquele período), os militantes sindicais colocaram em xeque os mecanismos de dominação utilizados no cotidiano de trabalho e nas atividades extra-fabris (vilas, cooperativas). Assim, transformaram o ambiente da FNM, marcado pela ” tranquilidade”, em um espaço onde o sindicato passou a ser respeitado e a ter suas reivindicações levadas em conta.
A presença sindical virou uma referência na vida cotidiana dos trabalhadores e nas próprias decisões corporativas da gerência. A delegação da FNM era chamada de “Conselho 51” (no início dos anos 1960, o Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara possuía cerca de 80 Conselhos Sindicais), e como relata uma liderança da fábrica, por volta de 1964, “não se fazia nada na empresa sem que fosse ouvido o Conselho 51”.
O golpe de 1964 atingiu em cheio toda essa organização. Os trabalhadores da FNM foram os primeiros a sentir a intensidade da repressão militar. Na madrugada do golpe, quando tropas desciam de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, a fábrica, que ficava no caminho, foi imediatamente ocupada e muitas prisões foram feitas. A própria FNM não resistiu à nova orientação econômica dos governos militares e foi vendida em 1968 para a Alfa Romeo (em seguida incorporada pela multinacional FIAT).
No entanto, uma persistente tradição de luta sindical acabou por influenciar os trabalhadores mais jovens durante as greves dos metalúrgicos do Rio de Janeiro no final da ditadura militar, em particular em julho de 1979 e especialmente em maio de 1981, quando os operários da FIAT realizaram uma longa greve “pelo direito ao trabalho”. Em crise econômica, a empresa italiana decidiu fechar a fábrica em 1985, transferindo a produção para Betim (MG). Décadas após o encerramento de suas atividades, a presença de várias edificações relacionados à FNM ainda marcam o cenário urbano e as lembranças do cotidiano de trabalho e lutas ainda permanecem na memória de muitos moradores de Xerém e da Baixada Fluminense.
Para saber mais:
- GOMES, Angela Castro. “O Redescobrimento do Brasil”. In Estado novo – ideologia e poder. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
- RAMALHO, José Ricardo. Estado Patrão e Luta Operária. O caso FNM. São Paulo, Paz e Terra, 1989.
- RAMALHO, José Ricardo. “Empresas Estatais de Primeira Geração: Formas de gestão e ação sindical”. In ABREU, Alice & PESSANHA, Elina (Orgs), O Trabalhador Carioca: Estudos sobre trabalhadores urbanos do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, J.C. Editora, 1994.
- VALLE Rogério. A Experiência da FNM. Rio de Janeiro, GPCT/Coppe-UFRJ, 1983.
Crédito da imagem de capa: Operários na Linha de Montagem do FNM 2000 – modelo JK. Foto: autor não identificado/ não conhecido. Acervo: Relatório da Diretoria da Fábrica Nacional de Motores, 1961.
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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