Bernardo Buarque de Holanda
Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas
O estádio do Clube de Regatas Vasco da Gama possui uma história quase centenária. Localizado na zona norte do Rio de Janeiro, no tradicional bairro de São Cristóvão, convertido desde o início do século XX, em um bairro industrial e operário, São Januário tem importância não apenas no âmbito esportivo, mas também na conformação da cultura política brasileira, tendo sido palco de manifestações e da promulgação de direitos da classe trabalhadora no Brasil.
O espaço foi inaugurado em 21 de abril de 1927, após uma extraordinária mobilização dos associados do clube para o soerguimento de um estádio próprio, com capacidade para mais de quarenta mil espectadores. Graças ao empenho dos imigrantes portugueses na arrecadação de contribuições e ao associativismo da colônia lusitana na cidade, o estádio foi construído em torno de onze meses. Em formato semicircular de ferradura, o estádio é considerado um monumento da arquitetura neocolonial, adornada com azulejos e brasões portugueses. Sua fachada é hoje tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Até 1940, com a criação do Pacaembu, em São Paulo, São Januário foi o equipamento esportivo arquitetônico de maior envergadura no Brasil. No Rio, o campo do Vasco constituiu o principal espaço para a prática do futebol, durante as fases amadora e depois profissional da capital da República. Este status de grandeza durou até o advento do Maracanã, estádio municipal construído para sediar a Copa do Mundo de 1950. Mesmo após a inauguração deste, São Januário continuou a ser referência no universo esportivo brasileiro e permanece em plena atividade
Pode-se dizer que o clube e o estádio simbolizam o processo de popularização e de massificação do futebol no Brasil. O Vasco ficou conhecido como um dos pioneiros na introdução de jogadores negros, mulatos e brancos pobres, recrutados junto às classes trabalhadoras da cidade. Com esse elenco de atletas, em 1923, o Vasco sagrou-se campeão carioca. O feito inédito gerou reações elitistas de parte da entidade responsável pela organização das competições de futebol que impediu a continuidade do time na liga principal, sob o pretexto de ausência de um estádio próprio, fato que motivou a construção de São Januário.
A monumentalidade do estádio tornar-se-ia terreno propício não só para competições desportivas como para eventos de caráter cívicos, com grande repercussão no imaginário político da Era Vargas. Foi em São Januário, por exemplo, que o compositor Villa-Lobos, na condição de músico imbuído do ideário do Estado Novo, desenvolveu nos anos 1940 o projeto educativo nacionalista dos cantos orfeônicos, no qual multidões de crianças entoavam peças do cancioneiro popular e dos repertórios do folclore infantil.
Além das festividades e das cerimônias cívicas, São Januário foi apropriado de igual maneira por atos e manifestações políticas, em especial os desfiles e pronunciamentos de Getúlio Vargas. Frequentador da tribuna de honra nos dias de jogo, Vargas valeu-se da estratégia de utilizar o estádio para fazer discursos de rádio em cadeia nacional. O Dia do Trabalho, comemorado em primeiro de maio no Brasil desde 1925, passou a ser realizado frequentemente no estádio vascaíno durante o Estado Novo.
Em meio a arquibancadas apinhadas de trabalhadores, transmissões radiofônicas e a uma série de ritualizações do poder em campo, anunciaram-se as leis trabalhistas naquelas ocasiões. Um dos auges desse processo ocorreu em 1940, quando se anunciou a criação do salário mínimo, no campo do Vasco. No ano seguinte, seria em São Januário que Vargas instituiria a Justiça do Trabalho.
Correntes políticas que também disputavam a adesão dos trabalhadores igualmente se valeram daquela praça de esportes para a arregimentação de suas bases. Nos estertores do Estado Novo, a promoção de comícios no estádio do Vasco foi uma das estratégias adotadas pelo Partido Comunista do Brasil. Foi ali que, após sair da prisão, o líder do PCB, Luís Carlos Prestes, promoveu um grande ato no dia 23 de maio de 1945. O comício foi uma gigantesca demonstração de força do partido e de prestígio de seu líder, reunindo cerca de cem mil trabalhadores.
Durante a campanha eleitoral de 1950 e no início de seu governo, Vargas e seus seguidores trabalhistas voltariam a eleger São Januário como espaço privilegiado para comícios e mobilizações coletivas. A partir de meados dos anos 1950, o uso do estádio para manifestações de partidos diminuiria de maneira significativa. Isto, entretanto, não significou que as arquibancadas de São Januário deixassem de ser espaço de manifestações e protestos, muitas vezes com clara conotação política, tradição que, de alguma forma, se mantém.
No Rio de Janeiro do século XXI, o outrora bairro operário em que se inscrevia o estádio é hoje uma grande comunidade – a Barreira do Vasco – envolta nos problemas cotidianos que assolam as periferias das grandes cidades. Em meio às novas arenas erigidas para reconfigurar o perfil social dos torcedores de clubes e para se ajustar à nova economia política do futebol internacional, São Januário permanece como um especial lugar de memória dos trabalhadores-torcedores brasileiros.
Para saber mais:
- GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2005.
- MASCARENHAS, Gilmar. “São Januário, essa força estranha”. In: Ludopédio. 20 de outubro de 2017. Acesso em 24/10/2019: https://www.ludopedio.com.br/arquibancada/sao-januario-essa-forca-estranha/
- MALHANO, Clara; MALHANO, Hamilton Botelho. São Januário: arquitetura e história. Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2002.
- SANTOS, João Manuel Casquilha Malaia. Revolução vascaína: a profissionalização do futebol e a inserção socioeconômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934). São Paulo: Tese de Doutorado em História Econômica/USP, 2010.
- Site do Centro de Memória Vasco da Gama: https://www.vasco.com.br/site/home/centromemoria
Crédito da imagem de capa: Desfile em celebração do dia Primeiro de maio no Estádio de São Januário. Arquivo Nacional, Fundo Agência Nacional. 01/05/1942. Notação: BR_RJANRIO_EH_0_FOT_EVE_02720_d0003/0029.
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Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.