Felipe Ribeiro
Professor de História da UESPI e Pesquisador do LEHMT-UFRJ
“Vejo-a [Teresina] sem o alarido das pipiras tentadoras – as mocinhas pobres, empregadas na Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense, ruído de máquinas o dia todo”, relembrou o cronista José de Arimathéa Tito Filho, em 1973, ao registrar suas memórias sobre a capital do Piauí. Ele fazia alusão à “fábrica das pipiras”, por conta da quantidade expressiva de mulheres operárias na Companhia Piauiense. Em 1946, por exemplo, a fábrica possuía 310 operários, sendo 216 mulheres, ou seja, quase 70% de sua força de trabalho.
Nas memórias do cronista, as “pipiras” eram garotas com “vestidinhos de chita, merendavam banana, daí o apelido que a crônica registra”. Era uma referência à ave pipira, bastante comum na Amazônia e na região Meio Norte, entre o Piauí e Maranhão. Outras memórias indicam que o apelido surgiu com o “vozeiro das tecelãs” de manhã cedo, indo para o trabalho na fábrica, semelhante ao canto estridente da ave. Outros registros dão conta que, ao serem inseridas no trabalho industrial, essas operárias conquistavam um certo status diante das demais profissões femininas, adquirindo maior liberdade social, daí a analogia com o “bater de asas” das pipiras.
Porém, este apelido apresentou conotações pejorativas para muitas operárias, vistas sob a ótica machista como mulheres disponíveis a variadas formas de importunação. O próprio Tito Filho descreveu as pipiras como “tentadoras”. Este aspecto, aliás, é reiterado em outros relatos sobre a cidade, indicando casos de assédio e romances vivenciados por operárias da fábrica. Alguns deles ocorriam nos “pipirais”, bailes populares que eram frequentados por essas trabalhadoras. No próprio cancioneiro popular brasileiro há indicações desse duplo sentido, como a canção “Pipira” do compositor maranhense João do Vale: “O que é menina? / (…) Fica o povo comentando / Mais um que a pipira biliscou / E tu também tá engordando / Mais uma que a pipira biliscou”.
A Companhia Piauiense foi um dos símbolos de modernização da capital no início do século XX, inserida em um projeto de desenvolvimento econômico e urbano, especialmente na região central de Teresina, às margens do rio Parnaíba, onde estava a fábrica, na atual Avenida Maranhão. Tendo como sócios influentes comerciantes e proprietários das cidades de Teresina e Parnaíba, a empresa foi organizada em 1889 com o nome de Companhia de Fiação e Tecidos Piauhyense e no mesmo ano foi iniciada a construção do edifício. A unidade fabril foi solenemente inaugurada no dia 1º de janeiro de 1893, mas já vinha funcionando de forma experimental há meses, inclusive com oficinas de aprendizagem para mulheres operárias.
Um dos seus fundadores, Antônio Gonçalves Pedreira Portelada, chegou a ocupar o cargo de Intendente Municipal de Teresina (1897-1900). Em 1926, a fábrica teve seu prédio inundado por conta das fortes chuvas que transbordaram o rio Parnaíba, acarretando um enorme prejuízo, situação que ainda foi agravada pelos efeitos da crise econômica mundial de 1929. A fábrica chegou a fechar, contando com o apoio do governo estadual no retorno de suas atividades. Esta relação estreita parece ter sido intensificada durante o longo governo de Leônidas de Castro Melo (1935-1945), quando a fábrica lançou os brins das marcas “Governador”, “Interventor” e “Estadista”.
Funcionando até a década de 1950, a Companhia Piauiense era a única fábrica têxtil do Piauí, considerada um dos maiores estabelecimentos industriais do estado, ao lado de fábricas de cigarros, bebidas, laticínios e óleos vegetais.
Junto à Companhia formou-se um bairro operário improvisado, com casebres de palha construídos pelos próprios trabalhadores da fábrica. Ao final da década de 1920, a prefeitura, com apoio da direção fabril, demoliu as casas dessas famílias operárias, visando afastar a pobreza da área mais urbanizada da cidade. Na ocasião, foram cedidos terrenos para que diversos trabalhadores, não somente têxteis, construíssem suas casas em uma área periférica, localizada após a linha férrea, a dois quilômetros da fábrica de tecidos. O bairro logo passou a ser chamado de Vila Operária e permanece até hoje.
Durante o Estado Novo (1937-1945), manifestações em comemoração ao 1º de Maio ocorreram em frente à fábrica, como missas campais e concentrações para desfiles cívicos e passeatas. A associação profissional dos trabalhadores têxteis de Teresina foi organizada neste período, sendo reconhecida como sindicato em 1948. Foi no contexto de organização sindical que conflitos trabalhistas na fábrica ganharam maior visibilidade, com reivindicações de aumento salarial, denúncias de atrasos nos pagamentos e demissões sem a devida indenização.
Em 1953, a Companhia Piauiense entrou em concordata e encerrou suas atividades pouco depois, desempregando centenas de pessoas. Na década seguinte, o edifício que abrigava a antiga fábrica foi adquirido pelo Grupo Claudino, que administrava o Armazém Paraíba, que ali inaugurou sua filial, em 1968. O prédio histórico da fábrica foi tombado pela prefeitura em 1986. Recentemente, a empresa proprietária promoveu uma reforma, conservando parte do estilo arquitetônico original.
Em sua trajetória, a Companhia Piauiense evocou múltiplas representações na história de Teresina: modernidade, trabalho, urbanização, desigualdades sociais e de gênero, além de lutas por direitos. Reunir vários desses “fios soltos” e entrelaçá-los na “urdidura” de novas tramas é a tarefa contra o esquecimento e pelo reconhecimento deste lugar de memória dos trabalhadores e das trabalhadoras do Piauí.
Para saber mais:
- CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Mulheres Plurais. Teresina: Edições Bagaço, 2005.
- FERREIRA, Jordan Bruno Oliveira. Literatura, história e memória nas crônicas de A. Tito Filho. Teresina: dissertação de mestrado em História do Brasil, UFPI, 2014.
- NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A Cidade sob o Fogo: Modernização e Violência Policial em Teresina (1937-1945). Teresina: EDUFPI, 2015.
- RIBEIRO, Felipe. ‘Uma grande organização fabril do Piauí’: a Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense no contexto da Segunda Guerra Mundial. In: SOUZA NETO, Marcelo de; ALVARENGA, Antônia Valtéria Melo; FONTINELES FILHO, Pedro Pio [orgs.]. A História sob Múltiplos Ângulos: Trajetórias de pesquisa e escrita. Teresina: EdUESPI, 2020. v.2.
- TEIXEIRA, Marina Lages Gonçalves. Teresina (1890-1920): arquitetura, indústria e ferrovia. São Carlos: dissertação de mestrado em Arquitetura e Urbanismo, USP, 2019
Crédito da imagem de capa: Registro da Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense (provavelmente 1918/1919). Acervo: Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves.
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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