Silvana Andrade dos Santos
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense
“A mais bela fábrica do Brasil – e talvez da América do Sul”. Assim os missionários estadunidenses Daniel Kidder e James Fletcher descreveram a Todos os Santos, em meados da década de 1850. Edificada na vila de Valença, na Bahia, entre os anos de 1845 e 1847, ela foi o maior estabelecimento têxtil do Brasil até a década de 1870, e chegou a empregar 300 indivíduos, de ambos os sexos, livres e escravizados.
O crescimento econômico da região, entre as décadas de 1830 e 1840, em virtude dos desembarques do tráfico transatlântico ilegal de escravizados foi essencial para a escolha de Valença como local da edificação da Todos os Santos. Além disso, a vila tinha grande potencial para a geração de energia hidráulica e era parte das rotas de navegação marítimas e fluviais.
A fábrica foi fundada pela sociedade Lacerda e Cia, empresa privada, formada por três negociantes que atuavam na Bahia: o português, naturalizado brasileiro, Antonio Francisco de Lacerda; o estadunidense John Smith Gillmer; e o brasileiro Antonio Pedrozo de Albuquerque. Além da sua projeção econômica naquela província, eles tinham em comum a participação no contrabando negreiro para o Brasil, e devem ter visto na criação do empreendimento a possibilidade de reinvestir os capitais provenientes de sua atuação no crime e de abrir nova frente de obtenção de lucros.
A Bahia já contava com outras duas fábricas têxteis, ambas em Salvador: a Santo Antônio do Queimado, fundada em 1834, e a Nossa Senhora da Conceição, em 1835. Além de ser a primeira instalada no interior da província, a Todos os Santos teria dimensões muito maiores.
As obras de edificação da fábrica de Valença tiveram início em 1845, com um projeto, de responsabilidade do engenheiro estadunidense John Monteiro Carson, fortemente influenciado pelos padrões arquitetônicos e técnicos da indústria têxtil da Inglaterra e dos Estados Unidos. Todo o maquinário foi importado daqueles países e a fábrica foi instalada em um edifício de quatro andares, seguindo a tendência de verticalização então vigente. Também foram trazidos dos Estados Unidos operárias e operários têxteis para atuar como mestras e mestres dos trabalhadores arregimentados no Brasil.
A Todos os Santos foi inaugurada em novembro de 1847 e permaneceu em atividade até agosto de 1876. Inicialmente, a fábrica contava com 80 operários, de ambos os sexos. Em 1861, no entanto, o estabelecimento já possuía 250 trabalhadoras e trabalhadores ditos livres e 50 escravizadas e escravizados. A utilização conjunta de mão de obra livre e escravizada era uma prática relativamente comum na produção fabril no Brasil durante o século XIX, e também foi verificada, por exemplo, na Fábrica de Ferro Ipanema, na província da São Paulo.
Embora o número de indivíduos legalmente livres empregados na Todos os Santos tenha se mantido sempre superior ao de escravizados, a forma como a mão de obra era alistada, assim como a rotina imposta àqueles, se assemelhavam às práticas vigentes no sistema escravista.
A maioria das trabalhadoras e dos trabalhadores ditos livres era órfã, com idades a partir de 10 anos, muitos deles provenientes da Casa Pia e Colégio de Órfãos de São Joaquim. Os órfãos eram adotados por Antonio Francisco de Lacerda e deveriam trabalhar na fábrica como aprendizes por cinco anos. Neste ínterim, não recebiam qualquer pagamento, apenas vestimenta e assistência médica. Só posteriormente eram admitidos como assalariados, devendo permanecer no local até completarem 21 anos.
Além da exploração de mão de obra não remunerada até o término do período de experiência, a rotina imposta era extremamente restritiva. O trabalho ia do nascer do sol até as sete e meia da noite (o que no verão significava mais de 14 horas diárias), com vinte minutos para almoço, meia hora para o jantar e meia hora para a ceia. As operárias e os operários também eram submetidos a um conjunto de atividades extras. Nos dias de trabalho, após as 22h, como parte dos arranjos firmados entre a fábrica e as instituições fornecedoras de mão de obra, eles recebiam aulas de leitura, escrita, música e dança. Contribuía ainda para o exercício de controle sobre os trabalhadores, a residência em alojamentos no entorno da fábrica e a promoção de casamentos internamente.
Enquanto esteve em funcionamento, o estabelecimento produziu diferentes tipos de tecidos (indicados principalmente para a confecção de sacaria, roupa para a população escravizada e velas para embarcações) e fios. Suas mercadorias eram comercializadas tanto na Bahia, quanto em outras províncias, como Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Considerada um símbolo de modernidade para a elite provincial, a Todos os Santos recebeu a visita do Imperador D. Pedro II, em 1859. Além disso, foi premiada com medalha de ouro nas Exposições Nacionais de 1861 e 1866; e participou das Exposições Internacionais de Londres, Paris e Filadélfia. Em 1876, após um período de crise, foi fechada e, posteriormente, vendida. Esta transação deu início à constituição da Companhia Valença Industrial, empresa têxtil que ainda hoje opera na cidade.
Embora a Companhia Valença Industrial não funcione no mesmo edifício em que a Todos os Santos esteve instalada, ela postula o seu legado e se afirma como continuidade da Todos os Santos. Em seus quase dois séculos de existência, a indústria têxtil em Valença moldou, em grande medida, a identidade dos moradores da zona urbana e é constantemente reivindicada como um importante lugar de memória das trabalhadoras e dos trabalhadores locais.
Para saber mais:
- FELÍCIO, Nilceanne Nogueira Lima. As fábricas têxteis do rio Una: história sobre trabalho e indústria em Valença-Bahia (1844-1887). Dissertação (Mestrado em História). FFCH-UFBA, Salvador, 2018.
- KIDDER, Daniel Parish. FLETCHER, James Cooley. O Brasil e os brasileiros: Esboço histórico e descritivo. 7. ed. São Paulo; Rio de Janeiro; Recife; Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1941. v. 2.
- OLIVEIRA, Waldir Freitas. A Industrial Cidade de Valença: Um surto de industrialização na Bahia no Século XIX. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1985.
- PAIXÃO, Neli Ramos. Ao soar do apito da fábrica: idas e vindas de operárias(os) têxteis em Valença-Bahia (1950-1980). Dissertação (Mestrado em História). FFCH-UFBA, Salvador, 2006.
- SANTOS, Silvana Andrade dos. Escravidão, tráfico e indústria na Bahia oitocentista: a sociedade Lacerda e Cia e a fábrica têxtil Todos os Santos. Tese (Doutorado em História). IH-UFF, Niterói, 2020.
Crédito da imagem de capa: Fábrica Todos os Santos, meados da década de 1850. Referência: KIDDER, Daniel Parish. FLETCHER, James Cooley. Brazil and the brazilians: portrayed in historical and descriptive sketches. 9. ed. Boston: Little, Brown, and Company, 1879. p. 499.
Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.