Tiago Castaño Moraes
Mestre em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina
Em 1938 com o título ‘Bons patrões, vendendo boa cerveja, fabricada por operários bem tratados‘, o jornal carioca O Radical publicou uma matéria sobre a situação dos funcionários na Cervejaria Catharinense, localizada na rua XV de novembro, uma das principais vias de acesso ao centro de Joinville. O jornal, conhecido por realizar coberturas sobre o sindicalismo e as reivindicações operárias, destacou algumas qualidades dos industriais da Cervejaria, referidos na matéria como “estudiosos das questões sociais”.
A ascendência germânica e os ideais de ascensão econômica professados pela religião luterana, construíram na cidade um discurso voltado para o trabalho e o progresso que envolvia industriais e operários. Os aproximadamente 80 funcionários da Cervejaria recebiam aumento salarial e gratificações de acordo com os lucros da empresa, seguro coletivo contra acidentes e auxílio na “aquisição da casa própria, sem juros e a longo prazo”. Segundo o jornal, havia empregados menores de idade, “mas perfeitamente enquadrados na legislação em vigor”. A produção na época alcançava 18 mil hectolitros de cerveja com o maquinário avaliado em 1,300 conto de réis.
A fabricação de cerveja teve início ali em fins do século XIX, com o imigrante alemão Alfred Tiede. O cervejeiro chegou na Colônia Dona Francisca (atual Joinville) em 1881, e começou sua produção nos fundos de sua residência em 1884. Sua fabriqueta foi ampliada ao longo do século XX e tornou-se uma das maiores produtoras de cerveja da região sul brasileira. Após a morte de Tiede em 1904, seu filho adotivo de mesmo nome e a esposa assumiram a produção, e por um período os rótulos das cervejas traziam a inscrição Viúva de A. Tiede. A cerveja chegou a ser premiada em exposições estaduais e nacionais, sendo considerada uma das melhores do país.
Inserida em um movimento de industrialização e urbanização da cidade, a cervejaria assumiu durante a década de 1920 uma posição de destaque entre as indústrias catarinenses, particularmente após a fusão com o cervejeiro Karl Seybolth em 1925. Nessa época a cervejaria empregava 30 operários, em uma produção de 20 mil garrafas semanais. O trabalho manual, no processo de pasteurização, já havia sido substituído por máquinas para lavagem e enchimento das garrafas. A produção na cervejaria seguia os padrões de grandes fábricas europeias, com técnicos treinados e alguns até formados em Munique como o próprio Karl Seyboth.
O movimento trabalhista na cidade caracterizava-se por uma forte divisão étnica entre os imigrantes germânicos (teuto-brasileiros, que utilizavam o idioma alemão) e os brasileiros, incluindo descendentes de portugueses e afro-brasileiros. Refletindo-se na organização sindical, as divisões étnicas e linguísticas dificultaram a ação coletiva nas primeiras décadas do século XX.
O sentimento de superioridade entre os trabalhadores de ascendência alemã em relação aos brasileiros foi um elemento fundamental de divisão da classe operária em Joinville e que pode explicar a predominância na Cervejaria Catharinense de trabalhadores homens e de famílias germânicas.
Transformada em Sociedade Anônima em 1931, a Cervejaria alcançou mercados importantes no Rio de Janeiro e em São Paulo. Aumentou o investimento em campanhas publicitárias e estratégias para se aproximar do público, como a realização de concursos para a escolha popular de um nome para sua nova marca de cerveja e o patrocínio de uma marchinha de carnaval em 1935.
Em 1948, a Companhia Antarctica Paulista comprou a Cervejaria Catharinense, mas conservou o nome original da cervejaria até 1973, quando foi criada a Companhia Sulina de Bebidas Antarctica. Assim como acontecia em outras filiais da Cervejaria Antarctica, a empresa fortalecia laços com seus empregados e familiares, principalmente através da ARCA (Associação Recreativa da Cervejaria Antarctica). Os funcionários demonstravam um certo orgulho em trabalhar na cervejaria, e aqueles com mais anos de casa eram homenageados. A Antarctica manteve sua produção no local até 1998, mas ainda hoje é comum ouvir histórias de ex-funcionários e consumidores sobre a qualidade da cerveja produzida ali.
A Cervejaria Catharinense criou laços simbólicos profundos no imaginário social de Joinville. Da participação no álbum do centenário do município em 1951, às festas de quermesse na cidade, a cervejaria tinha presença garantida em festas populares com stands para distribuição de cervejas e refrigerantes e sua lembrança ainda é presente na memória popular local.
Após o fechamento definitivo da fábrica em 2001, a prefeitura de Joinville adquiriu o complexo e foram idealizados museus e usos culturais para o espaço. Ao longo de quase 20 anos, alguns galpões e prédios administrativos da cervejaria foram utilizados por entidades culturais da cidade, mas a ala principal com suas máquinas, ferramentas, mobílias e até documentos, permaneceu abandonada, sofrendo furtos e degradações constantes. Sem os devidos cuidados com a conservação dos espaços, o belo exemplar de patrimônio industrial da cidade, mesmo sendo tombado como patrimônio histórico, arquitetônico e paisagístico, vem se deteriorando. Por isso, em 2020 as áreas, até então, utilizadas do complexo foram desocupadas e a chamada Cidadela Cultural Antarctica se encontra atualmente em desuso. Sua chaminé, vista de longe, é agora um marco do passado, uma recordação daqueles que tomaram ou ouviram falar da famosa “faixa azul” da Antarctica de Joinville.
Para saber mais:
- “Bons patrões, vendendo boa cerveja, fabricada por operários bem tratados”. O Radical. Rio de Janeiro. n. 2017, 10 nov. 1938, p. 19. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/830399/15618>
- COSTA, Iara Andrade. A cidade da ordem: tensões sociais e controle (Joinville:1917/1943). Curitiba, 1996. Dissertação de mestrado em História apresentada à Universidade Federal do Paraná, UFPR.
- MORAES, Tiago Castaño. Patrimônio, indústria e cerveja: olhares sobre a antiga Cervejaria Antarctica em Joinville/SC, Brasil. Cadernos do Arquivo Municipal. Lisboa. vol. 2, n.13, 2020. pp. 97-122.
- “Onde era feita a melhor”. A Notícia. Joinville. 01 mar. 2009.
- QUEIROZ, Walter. Resenha histórica da companhia sulina de bebidas Antárctica de Joinville. 2008. Acervo Coordenação do Patrimônio Cultural.
Crédito da imagem de capa: Rótulo com a imagem do prédio da cervejaria entre final da década de 1920 e início de 1930. Fonte: Acervo AHJ – Livro de rótulos, Typographia Otto Boehm.
Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.