Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Lugares de Memória dos Trabalhadores #06: “Federação”, Belo Horizonte (MG) – Raphael Rajão Ribeiro



Raphael Rajão Ribeiro
Doutorando em História Política e Bens Culturais pelo CPDOC-FGV



O golpe de 1964 e a instauração da ditadura militar no Brasil impactaram de inúmeras maneiras a vida das pessoas. Aspectos como o cerceamento dos direitos políticos e a perseguição a lideranças democráticas, estudantis e sindicais são alguns dos efeitos mais notórios da atuação do regime. Contudo, suas implicações se estenderam para diversas esferas do cotidiano e, com o lazer dos trabalhadores, não foi diferente. A “Federação”, como é chamado um ponto de encontro que se forma até hoje, na esquina da Avenida Santos Dumont com a Rua Rio de Janeiro no centro de Belo Horizonte guarda a memória da criação de alternativas frente aos constrangimentos que os autoritarismos impõem a livre organização dos divertimentos dos grupos populares.

Assim como em outros lugares do Brasil, o futebol, chegou à capital mineira no início do século XX com ares aristocráticos, mas logo caiu no gosto popular. Já na década de 1910, havia clubes formados em vários bairros operários e uma clara distinção entre as agremiações tradicionais e os chamados “times menores” estava colocada. A profissionalização do futebol, a partir de 1933, veio reforçar essa divisão, com a separação entre equipes tradicionais, que migraram para o novo regime, e clubes populares, que se mantiveram no amadorismo, compondo o que se chamou do circuito da várzea, que agregava centenas de times, mais ou menos formalizados, organizados entre trabalhadores reunidos por categoria profissional ou estabelecimentos onde atuavam, moradores de bairros, membros da mesma família ou grupos de amigos.

Com a regulamentação das políticas esportivas, promovida pelo Estado Novo, criou-se, em 1942, seção específica na Federação Mineira de Futebol para tratar desses clubes, o Departamento de Futebol Amador ou DFA. Por anos, o DFA manteve sua sede num tradicional ponto de intensa circulação da população trabalhadora da cidade, a Avenida Santos Dumont, antes chamada Avenida do Comércio.

As dependências do DFA eram um espaço não apenas de organização das competições que envolviam os clubes varzeanos a ele filiados, mas de uma enormidade de agremiações não federadas que se dirigiam para lá em busca da combinação de amistosos e excursões a outras cidades. A articulação dessas partidas fazia parte do esforço de dirigentes e jogadores de preencheram os fins de semana livres do calendário oficial de jogos, de modo a ter lazer garantido, de maneira ininterrupta, todo o ano.


Tais disputas autorreguladas permitiam a articulação entre clubes do meio oficial, equipes classistas e times não institucionalizados que compunham o circuito varzeano local, que representava a principal alternativa de lazer dos trabalhadores nos bairros periféricos.


A realização das partidas fora do calendário oficial nunca foi bem vista pelo DFA, que se incomodava com os pedidos de dispensa dos clubes para jogos em festivais ou em cidades do interior. Com as mudanças na política esportiva após o golpe de 1964, a atuação do órgão dirigente tornou-se cada vez mais burocrática e autoritária. Exigências de alvará, aplicação de multas, expulsão de agremiações, proibição de inscrição de jogadores que não comprovassem vínculo empregatício ou estudantil foram alguns dos constrangimentos impostos às associações filiadas.

Nesse contexto de tensão entre o DFA e o circuito da várzea, a mudança, no ano de 1967, da entidade dirigente para a Avenida João Pinheiro, na parte mais nobre do centro da cidade, foi ocasião para que os clubes se afastassem e passassem a organizar de forma mais autônoma suas atividades. A partir de então, constituiu-se, em frente à antiga sede do DFA, um ponto de encontro que se formava todas as segundas-feiras, no fim da tarde, após o expediente dos trabalhadores. Para lá se dirigiam membros de agremiações filiadas e não filiadas, assim como juízes não pertencentes aos quadros da Federação Mineira de Futebol.

Nesse momento, um verdadeiro pregão se formava com equipes possuidoras de campos anunciando receberem jogos em casa, ao mesmo tempo em que outras se voluntariavam a atuarem como visitantes. Árbitros ficavam à espreita dos acertos para se prontificarem a assumir a direção das disputas por um preço negociado. Clubes do interior enviavam representantes, que apresentariam as propostas para excursões. A atividade da “Federação” estendia-se até o fim da noite. Aqueles que logo acertavam suas partidas aproveitavam a ocasião para permanecerem pelos vários bares da região, que de zona de comércio diurna, convertia-se em área boêmia pela noite.

Os clubes varzeanos seguiram filiados ao DFA e participam ainda hoje de suas competições, contudo, o complemento de seu calendário de jogos desde então se faz no espaço da “Federação”. Ainda que as novas tecnologias permitam outras formas de agendar as partidas, os mais tradicionais ou os novatos no circuito ainda podem ser encontrados na “Federação”. Um espaço que guarda a memória da afirmação da autonomia daquela que segue sendo uma das alternativas de lazer mais recorrentes entre a população trabalhadora e periférica de Belo Horizonte.

Vista aérea do centro de Belo Horizonte em 1961. À esquerda a Avenida Santos Dumont. A “Federação” fica na esquina desta avenida com a Rua Rio de Janeiro.
Coleção Belo Horizonte. Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto/ Fundação Municipal de Cultura.


Para saber mais:


Crédito da imagem de capa:  Disputa de pênaltis em partida de várzea no campo do clube Inconfidência em Belo Horizonte, anos 1970. Acervo: Márcio Antônio Coelho.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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