Chão de Escola #42: Memórias canavieiras trabalho, cotidiano e experiência na zona da mata pernambucana

Bárbara Maria Costa e Silva (licenciada em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e mestra pelo Programa de Pós-graduação em História da UFPB)


Apresentação da atividade

Segmento: Ensino Médio

Unidade temática: Trabalhadores rurais, direitos sociais e cidadania na década de 1960.

Objetos de conhecimento:
– As noções de cidadania política

– Formas de registro da História e da produção do conhecimento

Objetivos gerais:
– Compreender elementos do cotidiano e formas de exploração dos trabalhadores canavieiros antes do período de conquistas sindicais da década de 1960;

– Conhecer as memórias coletivas dos cortadores de cana de açúcar do estado de Pernambuco;

– Identificar as formas de resistência dos trabalhadores, por meio das memórias compartilhadas;

Habilidades a serem desenvolvidas (de acordo com a BNCC):

(EM13CHS101) Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais.

(EM13CHS103) Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas (expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros).

(EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais.

Duração da atividade: 3 aulas de 50 minutos

Aulas Planejamento
01Etapa 01
02Etapa 02
03Etapa 03 e 4

Conhecimentos prévios:
– Processo de expulsão dos trabalhadores rurais de suas moradas no campo, ocorrido por volta dos anos 1950 no Nordeste;

– Conflitos agrários locais gerados pela ausência de leis trabalhistas voltadas para os trabalhadores do campo.


Atividade

Recursos: Projetor, caixa de som, computador, quadro, lápis pincel.

Etapa 1Quais as condições em que viviam os trabalhadores canavieiros?

Na primeira aula, leia os trechos das entrevistas abaixo com os estudantes e solicite que respondam as perguntas abaixo. A leitura e a resposta das primeiras duas perguntas podem serem feitas de forma coletiva após a leitura dos trechos.

Os trabalhadores canavieiros Beija-Flor e José Paulo são originários da Zona da Mata pernambucana e foram entrevistados respectivamente nos anos de 2018 e 2019, ambos, no momento da entrevista, já idosos e aposentados, mas ainda bastante atuantes no movimento sindical do Estado de Pernambuco. Os seus relatos foram construídos em torno de suas experiências de vida como cortadores de cana-de-açúcar desde a infância e seu cotidiano de trabalho e militância política. Os trechos apresentados a seguir são recortes de entrevistas extensas e por isso representam apenas uma parte de suas memórias narradas.

“[…] a gente já estava comendo alguma coisa, mas aquilo não era tudo. A gente precisava de mais coisas, e aí eu fui de novo pra cana. Mas aí no sábado eu ia pra Paudalho, da onde eu vim, da cidade de onde eu vim pegar frete. Aí eu levava o balaio de manhã bem cedo, não tinha café, não tinha nada em casa. Quando eu chegava na feira, primeiro lugar que eu ia era onde vendia jaca dura, debaixo dos pés de paus. Aí vinha um pessoal, aí o dono da jaca cortava a jaca, tirava a jaca pra vender, vendia a jaca, os baldes de jaca ao povo, e o mangará que a gente chama mangará, tirava gordo, e jogava no lixo, e eu chegava com o meu balaio. Eu não podia comprar, eu não tinha dinheiro pra comprar pra tomar café, então o meu café era roer o mangará da jaca dura que tava no lixo. Eu não tinha bigode, mas quando eu saía dali, eu ia pro açougue, mercado de carne de charque, de sardinha, mercado de cereal, eu ia pra lá. Aí de lá ninguém dava nada, se você chegasse pedindo alguma coisa levava uma lapada na mão e podia ser capaz de ser preso. Naquele tempo se pedia muito esmola, mais um menino pedindo esmola.”

(…)Aí, até então, quer dizer antes as famílias viviam no campo, num era com duas hectares não, vivia até com dez, era muita terra, mas com a valorização do açúcar e do álcool, a criação do IAA [Instituto do Açúcar e do Álcool], os patrões se ambiciaram muito mais e começaram a tomar as terras dos trabalhadores e plantar cana. Porque antes era uma categoria que até chamava de fornecedores. Plantava cana e fornecia para o engenho ou para a usina e tinha a área pra plantar a lavoura de subsistência que não era pequena, era grande, mas foi se acabando. A mão de obra que era como se fosse a agricultura familiar hoje passou a ser assalariada. Assalariada não, escrava. Porque não tinha salário, eles era quem dizia o quanto ia pagar e combinava com os outros, fechava o circo. O trabalhador ali, morrendo ou chorando, era aquilo mesmo.”
Entrevista de Beija-Flor, trabalhador rural, canavieiro narrando sua experiência de vida nos anos 1960 apud SILVA, 2022, p. 5, 10 – 11

“[…] assim, minha roupa era comprada na padaria, você sabe qual é o pano de padaria, né, que é o saco, e assim eu fui criado nesse período. […] As dificuldades de higiene, nós dormia em cama tirada na mata, chamada de cama de vara, então o colchão era folha de banana seca, nesse tempo não existia higiene nenhuma, então nós dormia e muitas vezes se acordava com a roupa que dormia, mesmo de saco, acordava toda melada de sangue que era justamente um inseto, o percevejo, era a pulga que hoje é do cachorro, então isso geralmente batia um soco, isso perdurou.”
Entrevista de José Paulo, trabalhador rural, canavieiro narrando sua experiência de trabalho nos anos 1960 apud SILVA, 2022, p.12

Após a leitura coletiva e a solicitação de pesquisa (que pode ser feita em sala de aula através de celulares) levante alguns questionamentos com as(os) estudantes sobre como era a vida dos trabalhadores rurais antes da conquista do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) do ano de 1963. Explique como as leis trabalhistas dos anos 1930 e 1940 não foram extensivas aos trabalhadores rurais e isso explica tanto os depoimentos dos canavieiros quanto a publicação do ETR. O objetivo dessa atividade inaugural é viabilizar a visão crítica sobre as condições miseráveis e precárias em que viviam os cortadores de cana, especificamente no Nordeste brasileiro.

a) Descreva as condições de vida dos trabalhadores rurais (formas de pagamento pelo trabalho, condições de vida, rotina etc.) em Pernambuco nos anos 1960, a partir das duas narrativas acima.
b) As condições de vida eram boas ou ruins? Justifique sua resposta.
c) Pesquise sobre o que foi o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) de 1963 e escreva quais direitos eram reivindicados no mesmo.
d) Compare os direitos descritos no Estatuto do Trabalhador Rural e a situação descrita dos trabalhadores.

Etapa 2Exibição do documentário Memórias Camponesas e roda de debate.

Professor(a), como forma de ampliar a discussão da etapa anterior, exiba o documentário Memórias Camponesas (2022) e solicite que realizem as atividades abaixo, com base no filme.

Responda no seu caderno:

a) Quais são as formas de exploração no capitalismo apresentadas no filme?
b) Qual era o modo de vida dos trabalhos dos canavieiros?
c) Como experiências individuais de sofrimento passam a ser vistas como coletivas?
d) De que forma o compartilhamento de memórias se relaciona com o processo de consciência das desigualdades e da injustiça social?

Para encerrar as aulas, faça um debate sobre como os estudantes responderam, a partir de tais questões.

Etapa 3Conceito de luta de classes como ponto de partida.

Como atividade síntese, deverá ser inserido o conceito de luta de classes a fim de evidenciar para os (as) estudantes essa categoria enquanto norteadora dos processos de luta por direitos e melhores condições de trabalho que se seguiram na década de 1960.

Coloque no quadro a seguinte pergunta:

“O que é a luta de classes?”

Definição do conceito: de acordo com o sociólogo alemão Karl Marx e as teorias marxianas, a luta de classes é um fenômeno social marcado por uma oposição de ideias entre grupos diferentes. Essas visões antagônicas podem ser observas em diferentes esferas e muitas vezes referem-se à defesa de próprios interesses.

Parta da discussão e chame a atenção dos estudantes para o vínculo com o conteúdo discutido em aulas de sociologia. Ao final do debate, escreva no quadro uma definição breve sobre o conceito e faça correlação entre a luta dos trabalhadores no campo com outras experiências dos trabalhadores.

Etapa 4Cotidiano canavieiro: exploração e resistência

Após a definição da ideia de luta de classes, o conceito deve ser inserido no tema abordado, de modo a historicizá-lo de acordo com o contexto de experiências dos trabalhadores canavieiros de Pernambuco no século XX.

Discuta com as (os) estudantes sobre a categoria cotidiano e como essa não deve se reduzir apenas à descrição detalhada do dia a dia ou de um fenômeno social, mas ligando-a a subjetividade desenvolvida pelos indivíduos.

Nesse sentido, deve-se conduzir os (as) estudantes ao entendimento da categoria cotidiano enquanto a relação integrada entre subjetividade e objetividade, espaço, tempo e experiência, sendo desse modo, o espaço de relações sociais desiguais entre as classes, geradoras de conflitos e tensões. Sendo compreendida, por fim, como a dimensão prática da história.

Como atividade de encerramento, divida os estudantes em grupo e peça que respondam a questão abaixo

a) Faça em grupo um desenho que represente o cotidiano dos trabalhadores rurais e sua luta social e apresente-o a turma.

Peça que cada grupo apresente o desenho e faça um encerramento discutindo a noção de cotidiano e luta de classes na história dos trabalhadores.

Bibliografia e Material de apoio:

MATTOS, Marcelo Badaró. Classes sociais e luta de classes. In.: E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa ao materialismo histórico. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012, p. 57-116.

PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. Dilemas e desafios da historiografia brasileira: a temática da vida cotidiana. In: MESQUITA, Zilá; BRANDÃO, Carlos Rodrigues (orgs.). Territórios do cotidiano: uma introdução a novos olhares e experiências. Porto Alegre: Editora Universitária/UFRGS; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1995, p. 49-66.

SCOTT, James C. Formas cotidianas de resistência camponesa. Tradução: Marilda A. de Menezes e Lemuel Guerra. Raízes, Campina Grande, v. 21, n. 1, p. 10-31, jan./jun. 2002.

SILVA, Bárbara Maria Costa e. Acordo do campo de 1963: memórias das condições de trabalho e das lutas sociais dos trabalhadores canavieiros da Zona da Mata de Pernambuco. Trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em História pela UFPB. João Pessoa, 2019.

SILVA, Bárbara Maria Costa e. Memórias canavieiras: trabalho, cotidiano e experiência na zona da mata pernambucana. In: Pandemia e Futuros Possíveis: Anais do XVI Encontro Nacional de História Oral. Anais…Rio de Janeiro (RJ) Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2022.

THOMPSON, E. P. The history from below. TSL, April 7, 1966.

ASSIS, José Paulo de. [87 anos]. [maio de 2019]. Entrevistadora: Bárbara Maria Costa e Silva. Carpina, Pernambuco. 03 de maio de 2019.

FILHO, Severino Francisco da Luz. [87 anos]. [novembro de 2017]. Entrevistadores: Bárbara Maria Costa e Silva, Claudiana Barbosa da Silva, Maressa Fauzia Pessoa Dantas, Mário Henrique Guedes Ladosky, Moacir Gracindo Soares Palmeira, José Sérgio Leite Lopes e Roberto Véras de Oliveira. Carpina, Pernambuco. 11 de novembro de 2017.

Memórias Camponesas. Direção: José Sergio Leite Lopes, Moacir Palmeira, José Carlos Matos Edição: Agustin Kammerath. Produção de Ricardo Favilla, Rafael Favilla (ICEM). Brasil: 2022.


Créditos da imagem de capa: Nazaré da Mata 1980


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres da Silva, Luciana Pucu Wollmann do Amaral, Samuel Oliveira, Felipe Ribeiro, João Christovão, Flavia Veras e Leonardo Ângelo.

LEHMT

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Next Post

Vale a Dica #10: Meu querido Zelador, de Mariano Cohn e Gastón Duprat

qua jun 19 , 2024
Na décima edição da série “Vale a Dica”, Yasmin Getirana, doutoranda em história internacional pela London School of Economics e pesquisadora do LEHMT/UFRJ, indica a série de comédia argentina “Meu querido Zelador” (El Encargado). Lançada em 2022 e disponível no streaming da Star+, a série conta com duas temporadas e tem como protagonista Eliseo, zelador há 30 anos do mesmo prédio em Buenos Aires. Idoso, Eliseo é confrontado com a possibilidade de ser abruptamente despejado e demitido. O motivo, no entanto, não é nenhuma das muitas falcatruas e armações arquitetados ao longo dos anos por Eliseo, mas sim o desejo dos moradores por valorização imobiliária com a construção de uma piscina. Para ouvir o episódio e entender mais porque essa série é uma boa dica para pensar história social do trabalho. Projeto e execução: Alexandra Veras, Isabelle Pires, Larissa Farias, Victória Cunha e Yasmin Getirana Edição: Brenda Dias e Eduarda Olimpio

Você Pode Gostar