Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Chão de Escola #27: Fernando Penna (UFF) fala sobre o trabalho e lutas do professor de História


Professor Fernando, nos últimos anos observamos o aumento de denúncias nas redes sociais de uma suposta doutrinação no trabalho docente da educação básica intensificado após o surgimento do Projeto Escola Sem Partido e a ascensão de governos conservadores com um movimento orquestrado para censurar o trabalho dos professores. Quais os desafios que essa onda conservadora coloca ao trabalho docente? Na crescente onda do avanço do negacionismo na opinião pública e dos ataques à ciência no Brasil, que impactos você acredita que esses movimentos trouxeram nesse contexto dos mundos do trabalho docente?

A Onda Conservadora, que ganhou força no Brasil na década passada, tem a manipulação política do pânico moral como uma das suas principais estratégias. Este pânico se aproveitou do desconhecimento de algumas realidades para atacar categorias profissionais e grupos políticos com base em informações falsas e absurdas: jornalistas, artistas, feministas, movimento negro, etc. A categoria docente foi um dos alvos preferenciais, numa verdadeira campanha de ódios aos professores e às professoras. A sociedade era estimulada a ver os profissionais da educação como abusadores, que estariam tentando “destruir a família tradicional” através da “doutrinação ideológica” (dentre outras fantasias perversas). Movimentos, como o famigerado “Escola sem Partido”, estimulavam abertamente a perseguição jurídica de professores e professoras, por entender que a necessidade de se defender geraria desgaste emocional e financeiro para docentes. A expectativa era que docentes deixassem de trabalhar alguns temas por medo – o que infelizmente se concretizou em muitos casos. Este foi, na minha opinião, um dos impactos mais devastadores que os ataques à docência tiveram no Brasil: a instauração de um clima de medo e insegurança no trabalho de professores e professoras, que muitas vezes deixam de falar sobre temas importantes para a formação dos estudantes. Estes últimos são os maiores prejudicados devido à impossibilidade de terem garantido o seu direito à educação na sua plenitude. O maior desafio para o trabalho docente é a compreensão de que estes ataques, apesar de se direcionarem a alguns professores e professoras específicos, constituem um ataque a toda a nossa categoria profissional e demandam uma resposta coletiva. Os professores e as professoras que resistem à autocensura o fazem por constituírem redes de solidariedade docente das mais variadas naturezas (sindicatos, coletivos, partidos, associações científicas, etc.). Este é um desafio coletivo e que precisa ser enfrentado coletivamente, com a nossa organização.

O trabalho do professor de História é especialmente afetado por essa onda conservadora e pelo negacionismo. Como você avalia o cenário das relações de trabalho específicas de um professor de História nesse contexto? Na sua análise, é possível existir uma neutralidade no ensino de História? Podemos dizer que esses movimentos alteraram o comportamento dos professores e professoras na sala de aula da educação básica?

Qualquer professor ou professora, independente da disciplina que ministre, pode ser alvo de perseguição. Basta trabalhar com um tema ou realizar uma abordagem que seja alvo da sanha persecutória. Neste sentido, não há neutralidade no ensino de nenhuma disciplina. O professor e a professora de história, por exemplo, assumem o compromisso ético de compreender as relações de opressão em perspectiva histórica. Fazer isso é questionar privilégios e relações sociais de dominação (de gênero, raça ou classe) que muitas vezes são naturalizadas na nossa sociedade. Não há neutralidade. Há apenas a opção de fazer o seu trabalho de acordo com os saberes profissionais docentes ou deixar de fazê-lo. Negar que a neutralidade exista não implica de maneira nenhuma em não reconhecer limites éticos para a atuação docente. É necessário fortalecer o diálogo da nossa categoria profissional com a sociedade para pactuar os compromissos éticos da docência em história, para que possamos assumir de maneira cada vez mais transparente a responsabilidade pela nossa atuação profissional.

A pandemia de COVID-19 alterou o trabalho docente profundamente e gerou uma crise escolar sem precedentes. Como você avalia a atuação do Ministério da Educação nesse contexto e o avanço do homeschooling? E quais as consequências do homeschooling para o trabalhodocente?

A atuação do Ministério da Educação do Governo Bolsonaro foi absolutamente desastrosa. O abismo educacional foi brutalmente ampliado graças ao distanciamento social necessário para conter a pandemia. Os estudantes das escolas particulares de elite rapidamente retomaram suas atividades no formato remoto, enquanto os estudantes das escolas públicas permaneceram sem acompanhamento, não por falta de boa vontade de professores e professoras, mas por total falta de infraestrutura e planejamento de política pública. Muitos acreditaram que a experiência traumatizante das mães da classe trabalhadora, tendo que sobreviver a uma pandemia ainda precisando cuidar das crianças afastadas da escola, enterraria a proposta da educação domiciliar (homeschooling). A grande questão é que a experiência real destas mães tendo que lidar com seus filhos em casa é a última das preocupações dos propositores de projetos legislativos para regulamentar o homeschooling. A preocupação é garantir alguma vitória do reacionarismo no campo legislativo, já que o projeto “Escola sem Partido” e iniciativas anti-gênero foram consideradas inconstitucionais pelo STF. A atual defesa do homeschooling no Brasil é feita através do ataque à escola pública e da campanha de ódio aos professores e às professoras.

Esse ano uma denúncia de que alunos imitavam sons de macaco quando uma professora negra se virava de costas para escrever no quadro, no estado do Rio Grande do Sul, evidenciou o quanto o racismo estrutural no Brasil deixou de ser velado e passou a ser mais exposto nas mídias. Episódios como esse sempre aconteceram nas escolas e agora está sendo mais denunciado ou agora estamos vivendo o avanço de manifestações racistas em sala de aula? E como o ensino de História no debate sobre os mundos do trabalho pode auxiliar no debate dessa questão?

Se o racismo for entendido como um fenômeno estrutural e, portanto, de longa duração, episódios como estes sempre aconteceram nas escolas, mas provavelmente eram naturalizados. As práticas racistas atravessam o cotidiano das escolas e estão presentes na sua própria organização institucional. O ensino de história tem muito a contribuir com uma educação antirracista, através da compreensão historicidade do fenômeno do racismo. Compreender esta história no Brasil pode ajudar a desnaturalizar estas práticas e construir novos horizontes. A sala de aula de história precisa ser um espaço para a discussão das relações étnico-raciais no Brasil.

A imagem de crise da educação é constantemente abordada para falar das dificuldades do trabalho docente. Na sua avaliação, os estudantes ainda enxergam os professores como referências no processo educativo? O trabalho docente na educação básica está em crise? Para finalizar, gostaríamos que deixasse uma mensagem final para professores e professoras da educação básica no Brasil.

Uma das estratégias dos reformadores empresariais da educação é empregar uma linguagem da aprendizagem em detrimento de um discurso propriamente educacional. No discurso educacional, estamos sempre falando da relação entre um professor ou uma professora que aprende enquanto ensina e um/a estudante que ensina enquanto aprende. Uma relação de ensino-aprendizagem. A linguagem da aprendizagem coloca o estudante como responsável por sua própria aprendizagem constante, com a figura do professor reduzida à de um mero acompanhante ou mediador. O professor e a professora são responsabilizados pelas metas estabelecidas não serem alcançadas – sem que nunca sejam questionadas a falta de infraestrutura das escolas, a falta da valorização da categoria docente e a falta de política pública para a garantia de permanência estudantil.
A mensagem é que a nossa organização e a nossa luta não podem parar. As conquistas conseguidas desde a reabertura política estão em risco e ainda há muitas lutas em defesa da igualdade a serem realizadas. Ser professor ou professora de história é lutar pela escola pública. Seguimos juntos e juntas nesta luta.



Crédito da imagem de capa: https://passapalavra.info/2018/11/123445/


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres da Silva, Luciana Pucu Wollmann do Amaral, Samuel Oliveira, Felipe Ribeiro, João Christovão, Flavia Veras e Leonardo Ângelo.

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