Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Chão de Escola #30: professora Keila Grinberg fala sobre os 20 anos da Lei 10.639/03


Olá, professora Keila Grinberg, é um prazer receber você no CHÃO DE ESCOLA. Além da liderança e destaque na análise da história social e política do Império no Brasil e do cativeiro e da liberdade no século XIX, você se destaca pela produção de livros didáticos para a educação básica, pelo projeto de história pública Passados Presentes, e pela formação de professores na universidade e através do ProfHistória. Esse empenho como pesquisadora e na educação básica distingue sua trajetória. E gostaríamos de saber o que você considera importante para um professor de História exercer seu ofício? Quais seriam as habilidades importantes de serem desenvolvidas?

Obrigada pelas perguntas sobre a minha trajetória. Para mim, a atuação na educação básica, no ensino superior e na pesquisa nunca foram atividades dissociadas. Para um professor de História exercer seu ofício, fundamental é ter condições para tal, que começam com salário digno e plano de carreira, mas não só: é poder se dedicar à preparação das aulas sem ter que correr de uma escola para outra, é poder trabalhar sem constantes ameaças. Nos últimos anos os professores (não só de História, mas os de História foram, por razões evidentes, especialmente visados) vem sofrendo demais com a falta de segurança para desenvolver suas aulas. Nas aulas de História, principalmente de História do Brasil, abordamos temas difíceis para os professores e para os alunos. É preciso garantir que os professores tenham tranquilidade para se dedicar a esta tarefa dura, e ao mesmo tempo fascinante, que é aprender e ensinar a pensar historicamente. Sobre as habilidades, acho que elas se resumem basicamente em uma: escuta. É preciso escutar os estudantes. Claro que esta habilidade não é exclusiva dos professores de História, mas eu acho que é particularmente importante para nós. Trabalhar com História exige sensibilidade, cautela, e sobretudo um olhar atento para ouvir quem está na sala de aula. Esta disposição em escutar e prestar atenção permite que os professores saiam da posição de autoridade, de detentores absolutos do conhecimento, e possam investir num diálogo aberto com seus alunos, fundamental no processo de aprendizagem. Mas nada disso é possível sem a garantia de segurança e tranquilidade para desenvolver o próprio trabalho.

O mestrado profissional em História  foi criado em 2013 e tem sido um marco importante para a área. Como o ProfHistória, da qual você foi vice-coordenadora local e nacional entre 2014 e 2017, afeta a formação dos professores?

Eu tenho o maior orgulho de ter feito parte do grupo que discutiu a criação do PROFHISTORIA e de ter estado na coordenação do Programa com a Marieta de Morais Ferreira nestes primeiros anos. O PROFHISTORIA é a iniciativa mais importante da pós-graduação em História dos últimos anos, por tantos motivos: ele possibilita a integração da Educação Básica com o Ensino Superior, a circulação do conhecimento produzido na escola com aquele produzido na universidade, tem um impacto imediato na formação dos alunos da Educação Básica. Todos os PROFs – os programas de mestrado profissional dedicados ao ensino de disciplinas escolares – têm estes aspectos em comum. Nós, na História, nos dedicamos muito a enfrentar as complexidades e os desafios da construção de um programa em rede, que envolve a discussão de conteúdos, abordagens, metodologias, em escala nacional.

A história social do trabalho tem passado por profunda transformação nas últimas décadas. Na sua avaliação, essa renovação tem chegado aos livros didáticos e nas discussões curriculares?

Acredito que a renovação dos temas da história social do trabalho esteja chegando nos livros didáticos, sempre mais devagar do que gostaríamos; mas se formos comparar os livros didáticos dos últimos trinta, quarenta anos, vamos ver uma grande diferença não só nos temas abordados, mas também na maneira como eles entram nos currículos. Um dos elementos importantes desta renovação são as questões das provas de ingresso nas universidades; questões criativas, que abordam o conteúdo de forma inovadora, propiciam discussões importantes, pelo menos nos últimos anos do Ensino Médio. Mas hoje é impossível pensar em renovação curricular e incorporação de novos temas e abordagens sem levar em consideração a proposta de mudança curricular do Ensino Médio, que em larga medida afeta a capacidade dos professores de incorporar e desenvolver estes temas. É preciso entender que o novo (sic) Ensino Médio altera profundamente o ensino de disciplinas como a História (aliás, também do Ensino Fundamental).

Uma das mudanças do campo da história social do trabalho e da escravidão no Brasil é uma aproximação das experiências constituídas no Império e na República. Como você percebe isso na escrita de livros didáticos e nos projetos de história pública a que se vincula?

Acho que um dos principais ganhos do ingresso das temáticas da história social do trabalho nas salas de aula é a possibilidade de pensar o processo histórico a partir das experiências da maioria da população, da História “vista de baixo”, para usar uma expressão clássica e já datada. Esta é uma discussão já bem antiga, mas para muitos dos estudantes, o processo histórico é ainda é uma sucessão de grandes acontecimentos, liderados por homens (o gênero é fundamental aqui) que ocuparam cargos de liderança e destaque. A perspectiva da história social permite a quebra deste paradigma. No caso da história social do trabalho (a escravidão aí incluída) do Império e da República, tentar compreender as experiências das pessoas que viveram esta época nos permite abordar momentos fundamentais da História do Brasil, como a abolição da escravidão e a proclamação da República, de maneira totalmente diferente da perspectiva tradicional. Há muito tempo que não há mais como trabalhar a abolição da escravidão (tanto nos livros didáticos, como em projetos dirigidos para o grande público) como sendo obra da Família Imperial. Esta perspectiva é adotada há muito tempo nas salas de aula, mas a onda conservadora dos últimos anos, que insiste em promover uma perspectiva hierárquica da História do Brasil, vem desafiando os professores de todos os níveis aprofundar a discussão de temas que até pouco tempo atrás nos pareciam óbvios. A história social do trabalho produz ferramentas metodológicas importantíssimas para se pensar a história do Brasil de maneira a compreender nossas questões estruturais, como a permanência das desigualdades e do racismo, mas também a romper com a naturalização destas questões: nossa sociedade não é fadada a ser hierárquica, desigual, racista.

Em 2023, temos a efeméride de  20 anos da Lei 10.639/03. Qual a importância desse regulamento na renovação do ensino em História?

A lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, depois complementada pela lei 11645 de 10 de março de 2008, que inclui também a história indígena, está para o ensino de História em particular como as cotas estão para a educação em geral: promoveram uma mudança de tamanha grandeza, que não há onda conservadora que faça voltar atrás. Efemérides criam boas oportunidades para reflexões como esta, e felizmente neste ano de 2023 teremos condições de voltar a aprofundar as discussões sobre o tema. Para falar dos vinte anos da lei 10.639/03, é fundamental começar pelas décadas de mobilização dos movimentos sociais, principalmente do movimento negro, para que ela virasse realidade. Sem pressão destes grupos, não haveria lei. O que ela propiciou, para além da noção – nem sempre fácil de mensurar —  de obrigatoriedade da introdução destes temas nos currículos de História, foi a discussão pública sobre a centralidade da experiência dos africanos e seus descendentes e da população indígena para compreender a história do Brasil. Do ponto de vista concreto, a lei forçou a revisão dos livros didáticos, a promoção de cursos de especialização para professores da Educação Básica, a inclusão de disciplinas de História da Africa e de Cultura Afro-Brasileira nas universidades, a formação de professores especialistas no tema. A lei também foi importante para, junto com outros elementos, provocar o debate sobre cor, racialização e branquitude entre nós, historiadores. Basta ver a importância que o GT de Pós-Abolição e da rede de Historiadorxs Negrxs. O protagonismo dos professores-pesquisadores brasileiros neste campo, aliás, tem impacto internacional: no campo da História Afro Latino Americana, que vem se desenvolvendo com força nos últimos anos nos Estados Unidos e em toda a América Latina, o Brasil vem desempenhando um papel importante, não só do ponto de vista numérico (somos muitos), mas também por produzir uma reflexão original, criativa, sensível e relevante sobre o tema. É impossível estudar a experiência negra e indígena na história das Américas sem levar em conta a produção brasileira sobre o tema.


Keila Grinberg é professora titular licenciada do Departamento de História da UNIRIO, autora de livros didáticos, uma das fundadoras do ProfHistória e especialista na História da escravidão e do pós-abolição. Ela destaca-se na discussão e debate sobre o ensino de História no Brasil, com engajamento em projetos de história pública que discutem a Lei 10.639/03. Atualmente é diretora do Center for Latin American Studies e professora titular do departamento de História da University of Pittsburgh.


Crédito da imagem de capa: Primeira Marcha Zumbi – Foto: Geledés Instituto da Mulher Negra /Rede de Historiadores Negros /Acervo Cultne.


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres da Silva, Luciana Pucu Wollmann do Amaral, Samuel Oliveira, Felipe Ribeiro, João Christovão, Flavia Veras e Leonardo Ângelo.

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