Chão de Escola #32: professor Álvaro Nascimento fala sobre os 20 anos da Lei 10.639/03

Professor Álvaro Nascimento, é um prazer ter você na seção Chão de Escola do LEHMT-UFRJ, em nossa série de discussões sobre educação e os 20 anos da Lei 10.639/03. Você tem atuado em projetos relacionados à extensão universitária em escolas de educação básica da Baixada Fluminense. Poderia nos contar sobre essas experiências?

A ideia surgiu após aceitar o convite para conversar com estudantes do horário noturno da Escola Estadual Ministro Edgar Romero, que fica em Madureira. Eu a conhecia desde a infância por ter passado parte importante da minha vida no bairro de Turiaçu, vizinho ao maior centro comercial suburbano do Rio de Janeiro. Dividi a fala com a jornalista Isabela Oliveira. Não havia ensaiado nada, mas sabia que eu deveria ter uma linguagem distante daquela que uso na academia. Pela minha vida na região, não me foi difícil implementá-la.

Ao pegar o microfone, comecei a falar sobre minha vida na região, as dificuldades para pessoas negras e/ou pobres conhecerem outros bairros, principalmente os das áreas privilegiadas. Por falta de dinheiro ou tempo dos pais para levar seus filhos e filhas a esses lugares, as crianças crescem afastadas desses espaços repletos de prédios com diferentes arquiteturas, muito altos, habitados por famílias ou empresas compostas geralmente por pessoas brancas. Gozam de conforto, segurança, e localizam-se nas proximidades das praias, dos eventos culturais e de áreas de lazer, expondo de forma nua e crua desigualdades revoltantes aos olhos da suburbana e do suburbano. É muita coisa para uns e muito pouco para quem mora nas zonas periféricas do Rio de Janeiro.  

Explicava ainda como paulatinamente havia estendido minha caminhada para cidades longínquas através do meu trabalho e estudos: Niterói, Campinas, Lisboa, Chicago, Nova York, São Francisco, Calgary, Buenos Aires, San Juan, Manaus, Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Nova Iguaçu etc. Finalmente, quando começaram a imaginar que o trajeto havia sido simples questão de trabalho e estudo, mostrei que a cor da minha pele, minha origem e meus valores e costumes não se encaixavam automaticamente naquele mundo branco. Eu nunca os iludiria por um enganoso discurso meritocrático, ou de que eu era um vencedor, o self made man. Mostrei como o machismo (especialmente sobre as mulheres negras, gays e lésbicas), os preconceitos à raça, ao local de moradia, aos gostos musicais estão armados contra quem vem da periferia. Eles estão ali para não deixarem pessoas negras e/ou periféricas gozarem do mesmo que pessoas brancas gozam. O racismo dificultou minha ascensão e por isso tive de enfrentar situações desagradáveis, trabalhar dobrado desde os 15 anos – enquanto a playboyzada branca tirava onda – além de ver-me obrigado a procurar conhecimentos e informações desconhecidas pelos membros da minha família e comunidade. Tive ainda de complementar a reduzida formação apreendida nas escolas periféricas pelas quais passei.

Finalmente, apresentei possibilidades de mudança, como são as universidades, cursos pré-Enem, carreiras militares, leituras possíveis etc. A experiência foi ótima, com excelente retorno dos e das estudantes. Eles não se imaginam em universidades, já estão trabalhando, alguns são pais e mães, tornam-se pessoas adultas abruptamente, muitas vezes de forma violenta. Acho que é impactante um homem preto chegar lá e dizer: “Não desistam tão cedo!” Explico as condições positivas construídas nesses últimos vinte anos resultantes de ações afirmativas, do antirracismo, dos freios ao machismo e à homofobia. Há maiores possibilidades para eles e elas.  

Daquela experiência em Madureira aos dias atuais, fui interrompido somente pela pandemia. A ideia é fazer sempre uma vez ao mês, totalizando oito palestras anuais. Em 2022 houve uma diminuição por eu estar entrando mesmo nas escolas da Baixada Fluminense. Mas isso será por um curto período. Volto às palestras esse ano.

Na sua percepção, a história dos trabalhadores e a região da Baixada Fluminense têm sido contemplada em livros didáticos e abordagens difundidas nas redes de ensino da região? Qual sua visão dessa situação?

Infelizmente, não. A exemplo de muitas prefeituras e governos estaduais, a história regional e local são pouco exploradas por boa parte de quem as governa. Os livros didáticos comprados pelo Governo Federal são enviados gratuitamente às escolas públicas a partir do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), seguindo os editais lançados pelo Ministério da Educação e as linhas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC); no caso das escolas privadas, suas editoras próprias ou as comerciais vendem os livros que chegam às crianças.  Esses livros seguem um currículo nacional que expõem histórias ocorridas em algumas áreas do Brasil, sendo a cidade do Rio de Janeiro uma das mais citadas, por ter sido capital para o país durante séculos.  Eles, enfim, não cobrem as especificidades históricas e regionais dos mais de cinco mil e quinhentos municípios, Distrito Federal e vinte seis estados brasileiros.

As cidades da Baixada Fluminense não são exceção. Estudantes dessas regiões conhecem mais a história da cidade do Rio de Janeiro do que as de onde nasceram e habitam. Algo terrível para a autoestima dessas crianças que tantas vezes sofrem com discursos preconceituosos sobre a região, comumente associada à violência, fome, falta de urbanização, de história e de cultura. Mesmo passando por quantidade volumosa de administrações municipais limitadas, a Baixada Fluminense tem parques incríveis, áreas verdes, vasto comércio, indústria, eventos culturais, equipamentos esportivos, riquezas e histórias ofuscadas pelo preconceito. Enfim, todos os lugares têm história, valores e costumes que devem ser ensinados nas escolas. A Secretaria Municipal de Educação (SME) do Rio de Janeiro oferece material específico sobre a cidade, complementando o livro didático do PNLD.  Não vejo a mesma preocupação nas SMEs das cidades da Baixada Fluminense.

O artigo “Trabalhadores Negros e paradigma do silêncio”, publicado na revista Estudos Históricos (nº 59, set.-dez. 2016), é uma importante referência para refletir sobre o lugar dos negros na história social dos trabalhadores no pós-abolição. Como o ensino de História é afetado por esse “paradigma do silêncio”?

Antes do Ensino de História, são as crianças e jovens as pessoas mais afetadas com essa ausência provocada pelo racismo naturalizado na sociedade brasileira. No meu entender, chega a ser criminoso, covarde e desumano não se falar em diferenças históricas e atuais entre as raças, socialmente constituídas, num país que explorou a mão de obra escravizada de negros e indígenas durante mais de trezentos anos. História da escravidão que se mantém em áreas rurais e urbanas. Boa parte dessas crianças nas escolas da Baixada Fluminense é negra, e mesmo quando aparentemente brancas possuem parentes negros. Elas não encontram a história dos seus antepassados negros e negras enquanto trabalhadores e trabalhadoras no século XX.

Elas aprendem pelo senso comum que os negros foram largados à própria sorte após a abolição, e por isso os homens tornaram-se vagabundos, as mulheres ofereceram seus corpos à prostituição e as crianças – sem pai nem mãe – foram abandonadas e povoaram as ruas. Quando vão para as escolas e observam a cor de pessoas em situação de rua, ou percebem as diferenças nas  ocupações (porteiro, segurança, empregada doméstica contrastando com a cor do gerente, supervisor, proprietário) aqueles ensinamentos começam a fazer sentido para eles e elas.  

A história das famílias negras é muito mais vasta, rica e repleta de amor que essa construção monstruosa que condena todas as pessoas negras existentes e seus antepassados. Quando uma parte ainda resistente da historiografia perceberá que calar-se frente às diferenças raciais – por desculpas de falta de fontes, ou quando agrupa a todos e todas sob a categoria de “trabalhadores”, ou não vão além das diferenças entre nacionais e estrangeiros – ela estará contribuindo para a manutenção do racismo? Se as crianças não tiverem acesso a uma história que explique o racismo enquanto principal instrumento de construção das desigualdades sociais entre brancos e negros no Brasil do século XX – o racismo não é uma herança da escravidão – estaremos contribuindo diretamente para a ilusória meritocracia. A “culpa”, enfim, será a dos próprios negros e negras. Libertam-se pessoas brancas da sua responsabilidade enquanto ser privilegiado que se beneficia do racismo. Afinal, são eles e elas as preferidas no mercado de trabalho que melhor paga salários na economia brasileira.

Como a Lei 10639/03 colaborou para a romper com esse paradigma do silêncio na educação básica?

Ela obriga docentes a trabalharem o que não era obrigatório. Ou seja, é uma intervenção do Estado no combate ao racismo, tornando visível o que era invisível. Se observarmos os editais do PNLD (Programa Nacional de Livro Didático) isso fica mais empretecido. Não há mais imagens de negros sendo chibatados, crianças famélicas e tristes em suas páginas. Para além do Estatuto da Criança e do Adolescente prever o não constrangimento de quem ela protege, a lei 10639 já estava lá trazendo outras histórias de cultura, valores e alegrias que eram apagadas ou silenciadas por uma visão negativa em relação às pessoas negras. Somos mais luz, risos, festa, trabalho, religiosidade e amor que desgraças. E nossas crianças pretas não têm de sofrer por uma inação de historiadores(as), sociólogos(as), pedagogos(as), antropólogos(as) ou autoras(es) de livros didáticos. Em muito breve serão cobrados e cobradas pelas gerações que já estão aí dando seus primeiros passos nas escolas. O silêncio grita nessas horas. Não adiantou esperarmos pela conscientização antirracista das pessoas racistas ou que naturalizam o racismo. Foi necessária uma intervenção estatal, e que enfrenta a resistência de responsáveis, docentes, administradores escolares e religiosos na sua implementação. Essas pessoas resistem à própria letra da lei.

Enfim, a lei 10 639, ao completar 20 anos, já conquistou muitas mudanças. Importantes mesmo.  Foram vários os projetos de mudanças, criando livros, e outros materiais didáticos impressos, sonoros e visuais, que chegaram a milhões de pessoas através das redes sociais, escolas, TVs, rádio, cinema. Mas ela e a lei 11645 ainda estão longe de estarem consolidadas. Podemos dizer que a implementação dessa lei gerou milhares de empregos diretos e indiretos para torna-la visível em todo o país. Negros e negras estão cada vez mais presentes nos lugares de decisão e poder. Há esperanças múltiplas após democraticamente derrubarmos o governo fascista. E aí historiadores e historiadoras, deram uma olhada nas páginas que vocês escreveram até hoje? Vamos começar ou continuar a enegrecer seus artigos e livros?


Álvaro Pereira Nascimento é professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), bolsista de produtividade do CNPq e coordenador adjunto dos Programas de Pós-Graduação Profissionais da Área de História. É autor dos livros “A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial” (2001), “Cidadania, cor e disciplina na Revolta dos Marinheiros de 1910” (2008), e “João Candido: o mestre sala dos mares” (2020), e professor que se engaja em projetos de extensão em escolas de educação básica e na formação de docentes.


Crédito da imagem de capa: Primeira Marcha Zumbi – Foto: Geledés Instituto da Mulher Negra /Rede de Historiadores Negros /Acervo Cultne.


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres da Silva, Luciana Pucu Wollmann do Amaral, Samuel Oliveira, Felipe Ribeiro, João Christovão, Flavia Veras e Leonardo Ângelo.

LEHMT

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