Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Contribuição especial #10: 13 Japonês Parador: os trabalhadores e o transporte ferroviário no Rio de Janeiro – Álvaro Nascimento

Álvaro Pereira do Nascimento¹

A pandemia da COVID-19 em 2020 transformou a realidade do sistema ferroviário da Zona Metropolitana do Rio de Janeiro. Com as medidas de isolamento social tomadas por autoridades estaduais e municipais no combate à doença, ocorreu a queda brutal de transeuntes pelas ruas do centro comercial e financeiro do Rio de Janeiro e de boa parte dos bairros da Zona Sul e Oeste.

A frequência diária de passageiros nos trens despencou de 600 mil para aproximadamente 200 mil pessoas, segundo reportagem do jornal Extra (07/07/2020). No sistema de ônibus conhecido por BRT, essa quantidade passou de 300 mil pessoas diariamente para 50 mil. Estes serviços, que já apresentavam falhas, diminuíram a quantidade de veículos a níveis que favoreceram a ampliação do contágio entre as pessoas que tinham de permanecer trabalhando.

O cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras nos transportes urbanos revela diferentes rostos, sentimentos e expectativas, que se misturam nos vagões dos trens. Encontram vizinhos e vizinhas que “descem para a cidade”, já quando fecham silenciosamente as portas das suas residências. A sociabilidade deles e delas amplia-se a partir do ponto de ônibus, das plataformas das estações de trens, metrôs e barcas. Em cidades como o Rio de Janeiro predominam homens e mulheres negras, e o gradiente de cores torna-se mais diverso a cada estação rumo à Central do Brasil. É, ali, na condução, que começam as doze, quatorze até vinte horas de labuta pelo “ganha-pão”.

Desde há muito tempo, o transporte de passageiros na malha ferroviária viabilizou o trabalho dos moradores(as) dos subúrbios cariocas e da Baixada Fluminense no Centro e na Zona Sul do Rio de Janeiro. Contudo, trens avariados, descarrilamentos e choques de composições, acidentes ou mortes de usuários, além dos atrasos cotidianos também fazem parte dessa história. As raras tentativas de melhorias dos serviços ferroviários por parte de alguns governos estavam geralmente atrasadas frente às necessidades. Duas delas, no entanto, marcaram a história da ferrovia no século XX: a eletrificação dos ramais e a implementação dos trens de fabricação japonesa na linha 13 Deodoro Parador – carinhosamente alcunhados pelos cariocas de “13 Japonês Parador “, “13 Deodoro Japonês” ou simplesmente “Japonês”.

“O novo navio negreiro” . BRT lotado durante a pandemia do COVID 19 em 2020. Foto de Yan Carpenter, @yanzitx

A eletrificação da malha ferroviária, em 1937, tornou mais rápido o deslocamento da Baixada Fluminense e de distantes subúrbios cariocas ao centro do Rio, transformando-se num turning point na longa história da antiga Central do Brasil. Além das estações fornecedoras de energia elétrica, o governo de Getúlio Vargas adquiriu as composições fabricadas na Inglaterra, modelo Metropolitan Vickers, série 100, com 3 portas laterais por vagão, que agilizavam o embarque e o desembarque de passageiros(as). Construídos pela britânica Metropolitan Vickers Electrical Company, estes trens foram uma revolução para a população suburbana: eletrificados, velozes, menos poluentes, e sem a terrível fumaça e odor das locomotivas movidas por combustão a óleo ou a carvão.

A eletrificação trouxe ainda, de acordo com Maria Therezinha Segadas Soares,  “maior adensamento da população nas áreas mais próximas da capital e um avanço da área metropolitana do Rio de Janeiro para zonas cada vez mais distantes”.  Ao longo do século XX, boa parte destas pessoas não conseguia mais arcar com os custos de moradia no Rio de Janeiro e passou a comprar lotes e a construir suas casas nos distantes subúrbios cariocas, favelas e nas cidades da Baixada Fluminense. Morar em Nova Iguaçu e trabalhar no centro do Rio de Janeiro, por exemplo, tornou-se possível com a otimização do tempo gasto para efetuar tal deslocamento. Aproximadamente vinte anos depois foram adquiridas novas composições do mesmo modelo Metropolitan Vickers, mas da série 200, que passaram a circular a partir de 1956. O número de passageiros aumentava.

Na década de 1970, porém, os trens da linha Vickers já apresentavam diversos  e frequentes problemas. Ao quebrarem, lotados de passageiros e passageiras, eram resgatados nas estações por locomotivas de carga movidas a óleo, deslocadas emergencialmente para os socorrerem. Situações como estas irritavam passageiros e disseminavam revoltas nas estações e trilhos de trens.

Havia (e ainda há) muitos casos de passageiros que apedrejavam trens, queimavam estações e até saqueavam agências. Acumulavam-se a humilhação de pular mais de um metro e meio dos vagões aos trilhos e andar até a próxima estação; o medo de ser atropelada(o); a degradante obrigação de explicar-se pelo atraso e em resposta ouvir um sonoro “esporro” do supervisor ou da patroa; o descaso de políticos que não cumpriam sua parte no pacto social junto à massa de trabalhadores(as). Essas eram algumas das situações que entornavam o caldeirão explosivo da impaciência. A cotidiana resiliência era substituída pela revolta, iniciada pelas mãos das pessoas mais pacíficas quando arremessavam pedras de brita contra os trens. Seguidos “tumultos” ocorriam, e o noticiário da imprensa pressionava os generais que haviam tomado o poder durante a ditadura civil-militar. Afinal, a empresa era de responsabilidade do Governo Federal.

As lâmpadas eram incandescentes, amarelas, e muitas não funcionavam, contribuindo para uma escuridão desorientadora para quem desejava dar mais um passo, ou procurava uma alça (apelidada de “chupeta”) para se segurar. As possibilidades de “batedores de  carteira” e “tarados” furtarem ou importunarem sexualmente mulheres e homens aumentavam exponencialmente naquelas condições.

Da mesma forma estavam os tímidos ventiladores no teto, próprios para a fria Inglaterra mas inofensivos ao calor carioca, que castigava usuárias(os) imprensadas(os). As portas também não fechavam corretamente. Passageiros mais jovens e aventureiros desciam aos trilhos e selecionavam uma ou duas pedras de brita adequadas ao intento. Quando a porta se abria, eles punham a pedra entre a quina da porta deslizante e o piso do vagão, interrompendo seu completo fechamento. O maquinista seguia mesmo assim, e o vento refrescava a todos(as) com o deslocamento do ar. Quanto mais veloz, menos se transpirava naqueles vagões.

Pingentes e surfistas de trem. Acervo do Jornal O Dia

Uma das principais causas de mortes e mutilações no Rio de Janeiro era a queda de passageiros apelidados de “pingentes” nos trens da Central e dos trabalhadores da construção civil, como bem registrou Chico Buarque. A Rede Ferroviária Federal chegou a retirar postes contra os quais pessoas penduradas nas portas dos trens se chocavam em alta velocidade. Um dos mais fatais havia sido apelidado friamente de “Bellini”, em alusão ao capitão da seleção brasileira de futebol de 1958, o famoso zagueiro que deixava passar a bola mas não o adversário que a conduzia. Uma quantidade elevada mas não computada de passageiros encontrou a morte naquele poste, até ser retirado pela empresa após seguidas reclamações na imprensa, embora outros tenham permanecido.

Os trens dos ramais de Santa Cruz (linha 42) e Japeri (linha 33) tornavam-se expressos a partir da estação de Deodoro, parando somente em seis estações até o fim do percurso na Central do Brasil. Para quem necessitava descer numa das onze estações não atendidas pelos expressos, restava a linha 13DeodoroParador. Os vagões não diferiam dos que vinham de Japeri e Santa Cruz, porém eram um pouco mais vazios, circulavam sem muitos atrasos e tinham melhor manutenção que os demais.

Uma grande mudança impactou o sistema ferroviário e ampliou a diferença de tratamento oferecida a estes(as) trabalhadores(as) da linha Deodoro Parador. Chegava ao Rio de Janeiro, o Mitsui, série 550, fabricado no Japão,  rapidamente apelidado de 13 Deodoro Japonês. Os jornalistas estavam alvissareiros com o encurtamento da viagem de 45 para 35 minutos, no período de testes, e o entusiasmo se manteve no dia em que seus primeiros 4 carros entraram em funcionamento, em 11 de maio de 1977.

Efetuou-se uma série de mudanças nas estações. As plataformas começaram a ser lavadas diariamente e receberam “plantas ornamentais, bancos” e “cinzeiros”. Além disso, de início, “bilheterias exclusivas” foram incluídas e havia “muito policiamento”. O 13 Japonês Parador tinha uma impressionante couraça de aço como a do Trem de Prata, que ligava o Rio a São Paulo, e não mais de ferro como os ingleses Vickers. Seu motor parecia mais potente e forte. Tinha o formato mais cúbico e menos ovalado que o anterior, com 4 portas para embarque e desembarque, e lâmpadas compridas e fluorescentes que ampliavam a iluminação. E era mais seguro, não saía da estação enquanto as portas não se fechassem. Uma “campainha” (sinalização sonora) informava da abertura e do fechamento das portas.

O “13 Japonês Parador” ainda resiste. Fotografia de Gustavo de Azevedo. Fonte: 
https://trensfluminenses.files.wordpress.com/2012/11/image03786.jpg

Uma parte dos pingentes não gostou, e tentou inutilmente mantê-las abertas. Os usuários da linha Deodoro Parador sentiram-se ainda mais privilegiados, mesmo sem o frescor trazido pelas portas abertas. Como estes trens pouco quebravam, os intervalos entre as composições eram mais rigorosos, trazendo satisfação aos usuários regulares daquele ramal. O sucesso foi instantâneo e usuários dos ônibus passaram a frequentar os trens japoneses, por serem mais seguros, rápidos e baratos. Em 1978, somente os japoneses transportaram diariamente 38,4% do total de passageiros (217.000 pessoas) nos trens da Central do Brasil, como noticiava o Jornal do Commercio. O aumento na capacidade em um ano de uso na linha Deodoro Parador foi de aproximadamente 50% em relação aos Vickers.

O Japonês foi um marco, mas não resolveu os problemas. Com a falta de investimentos no transporte ferroviário urbano carioca ao longo dos anos 1980, logo os trens envelheceram e, com pouca manutenção, quebravam. Os atrasos, lotação e calor voltaram à cena, assim como a revolta e os apedrejamentos. Com a privatização, em 1998, os trens pararam de circular por toda a noite, obrigando trabalhadores e estudantes a utilizarem ônibus, vans e o que fosse mais necessário para chegar a casa. .A prioridade foi “cortar gastos” com pessoal, realizar reengenharia de investimentos e outros sinônimos de proteção ao capital e de geração de lucros.

Alguns Vickers ainda estão em uso, transformados, com nova iluminação e climatização, em alguns casos. O mesmo se diz do modelo Mitsui, o Japonês.  Estamos agora na fase dos trens chineses, ainda mais modernos, comprados durante as obras para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Como sabemos, os usuários dos trens participaram dos “preparativos” destas grandes festas: escavaram ruas, derrubaram prédios, reformaram e/ou construíram complexos esportivos. A festa, no entanto, não foi para os trabalhadores e trabalhadoras. Preços de megaeventos majorados em dólar não eram, definitivamente, compatíveis com os baixos salários recebidos, sem contar as dificuldades para adquirir os ingressos via internet e o alto custo do transporte.

Nos primeiros vinte anos do século XXI, o Rio de Janeiro passou por questionáveis intervenções urbanas, dramáticos problemas de violência urbana e frequentes escândalos de corrupção. Seu espaço no cenário nacional também foi enfraquecido pelas crises econômicas internacionais. Enquanto isso, trabalhadores e trabalhadoras permaneceram e permanecem fazendo história no cotidiano dos trens da Central do Brasil. Mas seus passos ainda carecem de  um  olhar mais atento por parte dos(as) historiadores(as), que resistem em acompanhá-los(as) pelos diversos trilhos da maltratada Cidade Maravilhosa.

¹ Professor do Departamento de História da UFRRJ

Referências

PIRES, Lênin. Esculhamba, mas não esculacha! Uma etnografia dos usos urbanos dos trens da Central do Brasil . Niterói: Editora da UFF, 2011.

RODRIGUES, Hélio Suevo. A formação das estradas de ferro do Rio de janeiro. Rio de Janeiro: Memória do Trem, 2004.

SOARES, Maria Therezinha Segadas. “Nova Iguaçu – Absorção de uma célula urbana pelo grande Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Geografia, abril-junho, 1962.

Crédito da foto de capa: detalhe da fotografia de Yan Carpenter, O avião do trabalhador, disponível em @yanzitx

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