Edson Teles
Professor de Filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Não se sabe ao certo o fato disparador das ações do quebra-quebra no dia 4 de abril de 1983. Duas ou três mil pessoas se reuniram no Largo 13 de Maio, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo. Pediam emprego e pareciam sentir que seriam ouvidos em vista do processo de redemocratização. Cerca de três semanas antes, os primeiros governadores eleitos desde o golpe de 1964 haviam tomado posse. Em São Paulo fora eleito Franco Montoro, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com a promessa de um governo participativo que respeitasse os direitos humanos.
Terminal de ônibus e centro comercial, o Largo 13 de maio era um espaço de referência fundamental na Zona Sul de São Paulo. Nas décadas anteriores, aquela área da cidade havia se tornado um dos principais polos da indústria moderna do país, com destaque para os setores metalúrgico e químico. Ao longo dos anos 1970, a região foi também um dos principais centros de mobilização e organização popular, com uma forte presença das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica e de partidos de esquerda. Diversos movimentos sociais e a oposição sindical metalúrgica tinham na Zona Sul suas principais bases políticas.
O Largo 13 era o ponto semanal de finalização do extenuante périplo em busca de emprego. Às centenas, os desempregados percorriam as fábricas, de porta em porta, vindos dos extremos periféricos da região sul do município. Buscavam um trabalho nas placas de ofertas de vagas expostas junto ao portão das indústrias, que na maioria das vezes se encontravam vazias. Vivia-se num tempo de desemprego em massa e inflação diária significativa. A chamada crise da dívida abalava os alicerces do regime militar e provocava uma das maiores recessões da história do país, com terríveis efeitos sociais.
Aos domingos, normalmente, corriam boatos de que uma das fábricas estaria contratando trabalhadores na segunda-feira. Era o suficiente para as principais avenidas se assemelharem a pequenas passeatas de desempregados. Contudo, a crise econômica do país caminhava em outro sentido.
Naquela manhã ensolarada, os desempregados se transformaram em manifestantes e partiram em passeata. Alguns relatos falam de ações repressivas da Polícia Militar quando o grupo passava pela Administração Regional de Santo Amaro por volta das 8h50, o que teria sido o suficiente para explodir a revolta.
No retorno ao Largo, às 9h, os manifestantes saquearam o supermercado Barateiro. Em 10 minutos, o cenário do protesto transformara-se num levante popular. Mas ainda não estava claro que aquele não seria mais um protesto contra o desemprego e o alto custo de vida. A repressão, um discurso inflamado, a movimentação da passeata, o cansaço da repetição.
Largo 13 de maio no 4 de abril de 1983, antes de começar o Quebra-quebra. Fonte: Folha de S. Paulo 05041983
Uma das principais ações do quebra-quebra foi o saque. A força ingovernável da multidão em revolta não podia ser contida, ganhando o caráter da insurreição e da esperança. Instalou-se o conflito entre manifestantes em revolta e policiais militares nas ações de repressão. A linguagem era a da violência. Mas no intervalo dos atos antagônicos, o espírito do dia seguia a quebra das normas e do cotidiano. Já no período da tarde, entre um tumulto e outro, a PM formava cordões visando dispersar as aglomerações.
Até a hora do almoço, a situação já estava fora do controle de qualquer instituição, liderança ou polícia. Pelo menos três supermercados, além de vários pequenos e médios comércios, haviam sido saqueados, e vários ônibus foram quebrados. Com paus e pedras, os revoltosos enfrentavam a ação violenta da Polícia Militar, que avançava com golpes de cassetete, bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral e tiros para o alto. Entre as 15h e as 16h, quando tudo parecia acalmar-se, um comício com cerca de 1.000 pessoas se formou e uma passeata saiu em direção à Assembleia Legislativa.
Manifestações em diversos pontos, duas passeatas (uma em direção à Assembleia Legislativa e, outra, para a porta do 11ª. Delegacia de Polícia, visando soltar os presos da manhã) e os saques. O supermercado Barateiro, à rua Herculano de Freitas, já se encontrava com as prateleiras esvaziadas. Em meio ao caos organizador da revolta, o deputado federal Aurélio Peres (PMDB, mas ligado ao então clandestino PCdoB) propunha, de cima de um veículo com equipamento de som, a formação de uma comissão de negociação para discutir junto ao governo do Estado a formação de frentes de trabalho emergenciais. A reunião se daria no dia seguinte, dentro do Palácio dos Bandeirantes.
As ruas da região estavam bloqueadas, seja por manifestantes e suas improvisadas barricadas, seja por tropas da Polícia Militar. Nesses pontos, se via um contínuo fluxo de vai e vem de ambos os lados, como se houvesse uma disputa por aqueles metros do campo de batalha. Pequenos grupos, mas decididos, jogavam pedras e paus e xingavam os policiais. Ao mesmo tempo, lojas voltaram a ser saqueadas e diversos pontos da região.
No fim da tarde, o grupo principal que se dirigiu à Assembleia Legislativa, após tentar ocupar o prédio, foi recebido por parlamentares em um plenário da casa legislativa. Ao final do encontro, sem obter algo de concreto, o grupo se dirigiu à avenida, cercou e tomou quatro ônibus que circulavam e, com eles, se dirigiram aos bairros da Zona Sul, ponto de partida da revolta.
À noite, novos saques e protestos alimentavam o cenário de batalha. Das 18h em diante, num efeito cascata, a revolta se alastrou para outros bairros mais profundos da Zona Sul da cidade: Jardim São Luiz, Jardim Angela, Parque Santo Antônio, Estrada de Itapecerica, Jardim Monte Azul, Figueira Grande, Piraporinha, Vaz de Lima, entre outros bairros e localidades. Em vários pontos se ouviam os gritos: “temos fome, temos fome”. Os carros da Polícia Militar passaram a circular em grupos, receosos de se tornar alvos, e uma viatura do serviço de trânsito foi virada. Vários veículos da polícia foram apedrejados. Quando viaturas se deslocavam para um ponto com um episódio de saque, rapidamente o lugar se esvaziava, e outro local era atacado.
O dia 4 de abril terminaria com perspectivas grandes para o dia seguinte: uma nova manifestação marcada para o Largo 13 de Maio, às 8 horas, com passeata em direção ao Palácio dos Bandeirantes. E, no período da tarde, previa-se a reunião dos três governadores da oposição, Franco Montoro (PMDB), Tancredo Neves (PMDB) e Leonel Brizola (PDT), para o mesmo Palácio.
O segundo dia da revolta se iniciou sob forte tensão. Os protestos, saques e conflitos com as “tropas da ordem” se estenderam por outras regiões da cidade e a passeata principal entrou em batalha campal nos jardins do Palácio dos Bandeirantes. Um saldo de mais de 300 prisões e um morto a tiro é apenas um aspecto do aumento da revolta.
Logo pela manhã uma passeata com mais de 1.000 pessoas saiu do Largo 13 de Maio e se dirigiu ao Palácio de Governo. Enquanto isso, em Santo Amaro, a PM batia em todos. Gritava-se: “Um, dois, três, quatro, cinco mil, ou para o desemprego, ou paramos o Brasil” e “Chora Figueiredo, Figueiredo chora, chora Figueiredo que chegou a sua hora”, entre outras, entre outras.
Na passeata em direção ao Palácio dos Bandeirantes a confusão política se estabeleceu. Lideranças sindicais e Polícia Militar às vezes se chocavam, outras vezes se encontravam na tentativa de conter os revoltosos. Às 11h, os primeiros manifestantes estavam em frente ao Palácio. Impacientes, os revoltosos derrubaram mais 100 metros de grades e entraram em conflito com a Tropa de Choque durante as duas horas seguintes. No jardim, a PM distribuía pancadas e bombas, enquanto os manifestantes gritavam “agora eu quero ver o Montoro receber”.
Exigia-se uma reunião com o governador, que de fato ocorreu depois da ocupação, às 12h50, acalmando os ânimos e abrindo um canal de diálogo. Enquanto governo e a comissão de representantes conversavam, populares arremessavam pedras contra vidraças das mansões do Morumbi, bairro onde se localiza a sede do governo. Somente às 14h20, em ônibus fornecidos pelo Estado, é que os manifestantes começam a sair, diante da promessa de respostas num encontro a ser realizado no dia seguinte.
No terceiro e último dia de revolta, São Paulo amanheceu fortemente militarizada. Ainda assim houve choques generalizados na Praça da Sé, com conflitos que se seguiram por praticamente cinco horas e atingiram toda a região central da cidade, cujo comércio permaneceu o dia inteiro fechado. Na esfera institucional, ocorreu uma reunião agendada pela comissão de diálogo e o governo. Nesta segunda oportunidade, a comissão já se encontrava com composição modificada, pois nem todos que estiveram no Palácio dos Bandeirantes na terça-feira foram convidados para a conversa da quarta-feira. E o governo ainda convidou alguns sindicalistas que foram prestar solidariedade ao governador, o que gerou atrito com a comissão de desempregados. Estes esperavam respostas para suas reivindicações do dia anterior, como a criação de um salário desemprego, passe livre no transporte para o trabalhador procurar emprego, abertura de vagas em obras públicas e gestão junto aos empresários para congelar as demissões em massa, libertação dos presos, entre outras propostas.
Os protestos e saques ecoaram nos meses seguintes, mas a militarização e o discurso do consenso impuseram aos poucos o silêncio em torno da revolta. O ano de 1983 respiraria a atmosfera da revolta: veria os protestos vulcânicos serem asfixiados pela repressão estatal e o controle político ser retomado pelas forças autorizadas.
Os chamados “boatos”, no entanto, se seguiram, assim como protestos e tentativas de saques, provocando o fechamento do comércio e correrias em alguns locais de São Paulo e em cidades do interior (São Bernardo do Campo, São José dos Campos, Ribeirão Preto, Sorocaba, Campinas, Piracicaba e Jundiaí). Em Santos, por boa parte do período da tarde, todo o comércio do Centro, praia e bairros ficou fechado devido a ameaças de manifestações.
Na cidade do Rio de Janeiro, por volta da hora do almoço da quinta-feira, dia 07 de abril, algumas dezenas de pessoas saquearam um supermercado no bairro de periferia Bangu. Mais tarde, nos bairros de Campo Grande e Santa Cruz ocorreram tentativas de saques ao comércio. Na sexta-feira, foi a vez de Fortaleza, com saques a lojas comerciais, provocando conflitos com a Polícia Militar, que lançou bombas e prenderam manifestantes.
Aos poucos, se impôs o silêncio à revolta. Ainda não se estabelecera a hegemonia das ruas, mas o processo de transição preparava o terreno para que não se perdesse o controle sobre elas. Para a oposição ocupar espaço institucional era necessária a abertura a novos atores e a novas formas de lidar com os conflitos sociais e os debates sobre como seria a nascente democracia. Nas disputas das ruas e no esforço para esvaziá-las de seu caráter de revolta e protesto se construiu a lógica da governabilidade.
Por outro lado, as ruas continuaram a fazer parte das disputas sobre qual democracia viria. Assim ocorreu na Greve Geral de julho de 1983 que, juntamente com outras manifestações do movimento sindical e dos movimentos sociais, fomentou uma das maiores campanhas populares e de rua da história do país, que exigia eleições Diretas Já. Sim dúvida todo esse percurso de lutas populares teve seu ponto alto no processo constituinte que gerou a Constituição de 1988.
Comissão de representantes do Desempregados, montada no calor da hora, em reunião com o Secretário do Trabalho, Almir Pazzianotto. Fonte: Estado 06041983
PARA SABER MAIS:
EMBÓN, Daniela; PORTES, Katia. 1983 – Santo Amaro saqueada. Vídeo-documentário. São Paulo: Coletivo Memoriedades, 2022, 57 min.
FERREIRA, Cassiana Buso. Representações de intolerância na imprensa escrita: saques e quebra-quebras em São Paulo (abril de 1983). Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2009.
SILVA, Matheus. Queremos comida, quem vai dar? O motim de 1983 contra a fome e o desemprego em São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo: PUC, 2018.
TELES, Edson. “A revolta da fome: notícias sobre o quebra-quebra de abril de 1983 e a fabricação do consenso político”. In: revista Antropolítica, v.54, n.2, Niterói/RJ: UFF, mai/ago 2022, pp. 22-51.
Crédito da imagem de capa: Manifestantes derrubando as grades do Palácio dos Bandeirantes, no dia 05 de abril de 1983. Fonte: Derrubando_Estado 06041983