Marcela Goldmacher
Doutora em História Social pela UFF, Professora da Rede Municipal do Rio de Janeiro
Em agosto de 1903, o Rio de Janeiro viveu a primeira greve geral da história do Brasil. O Rio era, naquele período, o terceiro maior porto das Américas, atrás apenas de Nova York e Buenos Aires. A cidade passava por enormes transformações: uma significativa reforma urbana mudava o perfil de sua área central, ocorria uma expansão das áreas agrícolas nas imediações da cidade, a rede ferroviária se ampliava e um sistema financeiro se estruturava desde finais do século XIX. Nesse contexto, as operações comerciais da cidade e o setor industrial tiveram um importante impulso.
Em 11 de agosto de 1903, os trabalhadores em fábricas de tecidos deram início à parede e foram seguidos por várias outras categorias que se declararam em greve por solidariedade aos tecelões. Estimou-se que 40.000 trabalhadores, entre eles tecelões, chapeleiros, sapateiros, alfaiates, charuteiros, vidreiros, estivadores, carregadores de café, operários de pedreiras, canteiros, sapateiros, marceneiros e carpinteiros tenham aderido à greve que teve 26 dias de duração e se espalhou pela cidade ocupando os bairros do Andaraí, Laranjeiras, São Cristóvão, Centro, Jardim Botânico, Humaitá, Botafogo, Rocha, Mangueira, Sapopemba e Vila Isabel.
A greve teve início na Fábrica de Tecidos Cruzeiro, no Andaraí, motivada pelo descontentamento com um antigo costume nas fábricas de cobrar dos operários por aventais, espanadores e pelas bolsas para apanhar o algodão. Eram cerca de 200 trabalhadores, a maioria menores de idade e muitas mulheres. Os operários e operárias da Fábrica de Tecidos Aliança, localizada em Laranjeiras, aderiram ao movimento depois do mestre dos teares ter abusado sexualmente de uma operária. Logo, a paralisação se alastrou para várias fábricas de tecidos da cidade.
Nos primeiros dias do movimento, comissões de trabalhadores das tecelagens em greve se reuniram na sede da Federação dos Operários e Operárias em Fábricas de Tecidos e decidiram fazer uma assembleia conjunta no Largo do Capim, no centro da cidade, onde se localizavam as sedes de várias associações. No dia 15 de agosto já estavam fechadas as fábricas de tecidos Cruzeiro, Aliança, Carioca, Bonfim e Santa Heloísa. Uma comissão de operários das fábricas Aliança e Cruzeiro visitava outras fábricas em busca de adesão de mais trabalhadores à greve. Nos dias seguintes, a Confiança Industrial, a fábrica de tecidos Rink e a de cigarros Pipinhas aderiram ao movimento.
Em assembleia na Associação da Classe dos Artistas Sapateiros, os operários da fábrica de calçados Globo se declararam em greve. Para oficializar a decisão, enviaram uma comissão à sede da Federação dos Operários e Operárias em Fábricas de Tecidos. Minutos depois, uma comissão da Associação de Classe União dos Chapeleiros fez o mesmo. Nos dias que se seguiram, mais operários de outras fábricas aderiram à greve, como os da São Félix, Corcovado e Bangu, além da categoria dos charuteiros, o Centro Internacional dos Pintores, e a Liga dos Artistas Alfaiates.
Durante os dias de duração do movimento, comissões operárias ligadas às suas associações, visitavam fábricas e oficinas na tentativa de conseguir maior adesão à greve. Novos apoios ao movimento continuaram acontecendo graças à atuação das comissões.
A greve impactou fortemente a vida da cidade, sendo amplamente noticiada pela imprensa. A repressão policial foi intensa e violenta. No momento em que os trabalhadores e trabalhadoras de uma fábrica se declaravam em greve, os prédios passavam a ser guardados pela polícia. Em pouco tempo o contingente policial já não era suficiente e a Marinha e o Exército foram convocados a ajudar. O objetivo da polícia era impedir o contato dos grevistas com os operários que ainda trabalhavam, para que o movimento não se ampliasse. A greve, no entanto, tomou proporções nunca vistas.
Por ordem do presidente Rodrigues Alves, a polícia deveria impedir reuniões operárias em praça pública. Mas a repressão ocorria em todos os espaços, incluindo as sedes das associações e mesmo as casas dos operários. A Federação dos Operários e Operárias em Fábricas de Tecidos, a Liga dos Alfaiates e dos Chapeleiros, por exemplo, tiveram suas sedes invadidas e ocupadas pela polícia. Não foi incomum trabalhadores e trabalhadoras serem levados à força para os locais de trabalho pelos policiais.
Em 26 de agosto grande parte dos trabalhadores em fábricas de tecidos voltou ao trabalho. Cada fábrica ofereceu um tipo de acordo, como redução de horas de trabalho e promessa de aumento salarial. Mas a greve continuou com a adesão de novas categorias, como os estivadores, carregadores de café, carvoeiros e catraieiros.
Tratamos essa greve como “greve geral” porque ela foi assim qualificada pelos trabalhadores envolvidos. No entanto, não houve uma pauta de greve unificada, embora a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias e a demanda por 40% de aumento fossem reivindicações comuns, para além das questões particulares a cada setor.
Essa greve é fundamental para a compreensão dos processos de construção da identidade e consciência de classe dos trabalhadores e trabalhadoras no início do século XX, além do entendimento das suas formas de organização. Os trabalhadores envolvidos no movimento foram representados por suas associações. Muitas delas eram mutuais ou sociedades beneficentes, como podemos ver pelos seus nomes: Sociedade dos Artistas Chapeleiros, Associação de Classe dos Artistas Sapateiros, Associação de Classe União dos Chapeleiros, Liga dos Artistas Alfaiates, Congresso União dos Operários em Pedreiras, Centro dos Sapateiros, União de Classe dos Marceneiros, Sociedade Operária do Jardim Botânico e União das Classes operárias. Analisando os estatutos dessas associações vemos que algumas delas ofereciam cursos profissionalizantes, cooperativas de produção e de consumo e mutualismo para auxílio na velhice ou incapacidade de trabalhar. Durante a “greve geral” de 1903 essas associações abrigaram reuniões de trabalhadores em suas sedes para discutir assuntos relacionados ao movimento e organizar a formação de comissões para representar os grevistas.
A “greve geral”, ao mesmo tempo em que só tomou as proporções evidenciadas graças à solidariedade e o papel das organizações já existentes, também reforçou e criou novas identidades entre diferentes ofícios. Um exemplo disso são os estivadores, que ainda não estavam organizados antes da greve de 1903, mas participaram do movimento e fundaram a União dos Operários Estivadores no mês seguinte à paralisação.
Foi no Primeiro Congresso Operário, em 1906, que se definiu que as associações operárias usariam o termo sindicato nas suas designações. No entanto, durante a “greve geral de 1903”, as associações, mesmo não se denominando ainda como sindicatos, já assumiram a tarefa de representação e defesa dos seus associados na greve. Assim, vemos que as organizações que haviam sido fundadas com objetivo cooperativo ou de ajuda mútua foram chamadas a assumir mais diretamente a função sindical. No Segundo Congresso Operário de 1913 não houve mais nenhuma associação operária que tenha o termo “artista” em seu nome. Apesar de alguns sindicatos terem sido criados a partir de associações de auxílio, as associações não “evoluíram” da beneficência para a resistência. Associações beneficentes continuaram a existir concomitantemente com os sindicatos.
Também no Primeiro Congresso Operário de 1906, quando os trabalhadores participantes fizeram uma avaliação da greve de 1903, ficou decidido que as associações, além de passarem a se chamar sindicatos, deveriam também abandonar todo e qualquer tipo de auxílio. Argumentou-se no Congresso que as funções de ajuda dentro das associações atraíam operários sem objetivo combativo, o que atrapalharia a função principal dos sindicatos, que deveria ser a resistência.
A mudança de nomenclatura e função das associações deu-se de forma articulada com transformações na identidade coletiva dos trabalhadores. Nos jornais, estatutos de associações e resoluções de congressos operários entre as décadas de 1890 e 1910 podemos verificar essas mudanças e o ano de 1903 foi um marco fundamental. Em 1890, quando os trabalhadores debatiam sobre a forma como se posicionariam na nova República e a necessidade de formação de um partido operário, era comum a denominação de “artistas” para alguns trabalhadores, normalmente quando era necessária alguma formação para exercer o ofício, como era o caso de alfaiates e sapateiros, por exemplo. Assim, o termo “artista” era usado para diferenciar trabalhadores com maior formação e remuneração, de trabalhadores com menor “qualificação”, como os têxteis, tratados como operários ou proletários, que recebiam salários menores. Neste mesmo período, as diferentes profissões eram chamadas de “classes operárias”, no sentido de que ainda não havia uma denominação única para se referir aos trabalhadores de todos os ofícios.
De 1890 a 1903, quando da “greve geral”, há uma mudança na forma como os trabalhadores se identificam publicamente, que acompanha as alterações nas suas formas de organização e atuação. Nos artigos, panfletos e boletins produzidos durante a “greve geral”, já não há mais o uso do termo “artista” na fala dos trabalhadores. As várias categorias que aderiram à greve em solidariedade aos têxteis, reivindicam uma identidade comum, independente de maior formação ou remuneração. Ao longo dos anos os trabalhadores vão deixando de usar o termo “classes operárias”, no plural, que vai sendo substituído por classe, no singular, como pode ser visto nas resoluções do Primeiro Congresso Operário de 1906.
No mês seguinte ao fim da greve foi fundada a Federação das Associações de Classe, que em 1905 deu origem à Federação Operária Regional Brasileira. Esta federação, em 1906, organizou o 1° Congresso Operário Brasileiro e, posteriormente, passou a se chamar Federação Operária do Rio de Janeiro. Assim, a “greve geral” de 1903 foi fundamental para o desenvolvimento da identidade da classe trabalhadora brasileira e para as mudanças organizativas do movimento operário no início do século XX.
Fábrica de Tecidos Cruzeiro e vilas operárias adjacentes, onde a greve geral teve início em 1903. Arquivo CAF – A Tijuca de Antigamente.
PARA SABER MAIS:
GOLDMACHER, Marcela. A “Greve Geral” de 1903 – O Rio de Janeiro nas décadas de 1890 a 1910. Niterói, 2009. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense/IFCH – Dep. de História.
AZEVEDO, Francisca Lúcia Nogueira de. Malandros desconsolados: o diário da primeira greve geral no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará / Prefeitura, 2005.
Crédito da imagem de capa: Charge publicada no jornal O Malho, em 29/08/1903.