Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Contribuição Especial #30: O Massacre de Ipatinga: 60 anos


Marcelo Freitas
Jornalista, com atuação no Diário do Comércio, O Tempo e Estado de Minas


7 de outubro é um dia como outro qualquer para os brasileiros. Porém, para os que moram no município mineiro de Ipatinga, essa é uma data de triste lembrança, pois remete a uma tragédia – o Massacre de Ipatinga – que até hoje permeia a memória dos que presenciaram aquele dramático acontecimento.

O Massacre de Ipatinga foi um conflito entre trabalhadores da usina siderúrgica Usiminas e soldados da Polícia Militar de Minas Gerais. Começou na noite do dia 6 de outubro, estendeu-se pela madrugada do dia 7 e somente terminou no final da manhã daquele dia, quando os policiais abriram fogo contra os trabalhadores que estavam aglomerados em frente a um dos portões de entrada da usina. O resultado foram 103 vítimas – oito mortos, 92 feridos e três desaparecidos. No dia 7, o Massacre de Ipatinga completa seis décadas e ainda é um episódio da história desconhecido para a esmagadora maioria dos brasileiros.

A construção da Usiminas fazia parte do plano de metas “cinquenta anos em cinco”, do governo de Juscelino Kubitschek. A usina foi implantada a toque de caixa ao lado de um povoado – Ipatinga – que possuía não mais que 500 habitantes. No ritmo acelerado em que se deu a construção da Usiminas, ocorreram falhas em relação à implantação da infraestrutura de apoio aos trabalhadores das empreiteiras que ficaram responsáveis pelas obras de construção, bem como pelos metalúrgicos que passaram a operar a fábrica.

Assim, em outubro de 1963, quando a siderúrgica já estava em funcionamento, o clima era tenso devido a uma série de reclamações que se acumularam em relação aos alojamentos, à alimentação, ao transporte e, principalmente, em relação à truculência dos vigilantes da companhia no trato com os trabalhadores. A tensão não dizia respeito a salários. Inclusive, alguns dias antes, os trabalhadores e a empresa haviam fechado um acordo para a concessão de reajuste salarial.

O estopim dos acontecimentos ocorreu na troca de turno das 22h do dia 6, quando um dos trabalhadores, Rodir Rodrigues, operador do laminador da companhia, teve seu documento de identidade retido pelos vigilantes sem maiores explicações. No momento, passavam pelo local quatro policiais, a quem os vigilantes queriam entregar Rodir, que foge, porque não havia cometido crime algum, é perseguido pelos policiais e alcançado um quilômetro dali. No local, é espancado e, em seguida, transferido para o escritório do Serviço de Vigilância.

Na mesma noite, a notícia do que havia ocorrido com Rodir Rodrigues chega aos alojamentos e deixa os trabalhadores exaltados. Uma aglomeração se formou na rua. A PM envia ao local dois policiais da cavalaria, que são recebidos a pedradas. A polícia envia reforços. Cerca de 300 trabalhadores são detidos e colocados deitados no chão e com as mãos na nuca.

Os presos são enviados para o quartel da PM, onde ficam até o final da madrugada, quando são soltos. Os operários decidem não retornar aos alojamentos. Concentram-se em frente a um dos portões da entrada da companhia, localizado às margens da rodovia MG-4, hoje BR-381, e não entram para o trabalho. Para o local, a PM envia policiais. Um deles controlava uma metralhadora montada na carroceria de um caminhão, que ficou estacionado no mesmo local da aglomeração.

No escritório da companhia, próximo dali, estavam reunidos o diretor de Relações Institucionais da Usiminas, Gil Guatimosim, e os integrantes de uma comissão formada na manhã daquele dia para encontrar uma solução para os problemas apontados pelos trabalhadores. Um dos membros da comissão é o vigário de Ipatinga, Padre Avelino, que, antes de entrar na usina, passa pelos policiais e pede que se retirem do local para evitar maiores problemas. O comandante da operação se nega a atender o pedido. Alega que precisaria de ordem superior.

No escritório central, a reunião avança. O problema era sua lentidão, uma vez que tudo o que era dito precisava ser traduzido para que o representante dos sócios japoneses na empresa pudesse compreender o que estava sendo dito. A despeito da lentidão, chegou-se a um acordo. A empresa iria determinar a retirada dos policiais e acatar as reivindicações dos trabalhadores. Porém, não houve tempo para que a ordem de saída chegasse ao comandante dos policiais que estavam no local. Policiais e trabalhadores se desentendem. A polícia alega que em determinado momento, foram agredidos com pedras retiradas do leito da Estrada de Ferro de Vitória a Minas (EFVM), que passa pelo local. E decide abrir fogo contra eles.

O resultado foram oito mortos. Um deles foi o metalúrgico José Isabel do Nascimento, que acompanhava a movimentação atentamente. Só que, além de metalúrgico, José Isabel era fotógrafo. E foi responsável pelas únicas imagens da aglomeração antes do início dos tiros. Uma das fotos mostra a metralhadora em cima do caminhão com um policial ao seu lado. José Isabel foi ferido no estômago e levado para o hospital de Ipatinga, onde faleceu 11 dias depois.

Jose Isabel Nascimento/O Cruzeiro – 07/10/1963 – Chacina em Ipatinga – O Soldado da Policia Militar, na carroceria do caminhao, metralhadora descansando no joelho, iniciou a chacina, ajudado por 16 outros soldados armados de fuzis. A foto foi feita segundos antes do massacre, por Jose Isabel Nascimento, que tambem acabou tombando ferido.

Devido à gravidade dos acontecimentos, o governo de Minas envia para Ipatinga, na tarde do mesmo dia, suas duas principais autoridades na área de segurança: o Comandante Geral da Polícia Militar, José Geraldo de Oliveira; e o secretário de Segurança, Caio Mário da Silva Pereira. O objetivo era restabelecer a autoridade do governo do Estado na região. Assim, o que se seguiu aos acontecimentos daquele 7 de outubro foi a prisão dos policiais, que foram levados para Belo Horizonte, e a abertura de um Inquérito Policial Militar (IPM) e seu posterior envio à Justiça. Em Ipatinga, José Geraldo de Oliveira prometeu que o caso seria apurado com rigor.

Só que nos 795 dias transcorridos entre o 7 de outubro e a data do julgamento final dos policiais – 10 de dezembro de 1965 – ocorreu um golpe militar, que destituiu o presidente da República, João Goulart, e transformou os trabalhadores de Ipatinga em réus; e os policiais em vítimas. Assim, foram todos absolvidos pela Justiça. Para isso, algumas mentiras foram anexadas ao processo. A primeira delas era que os trabalhadores tinham um plano de paralisar a Usiminas e, ao mesmo tempo, derrubar a ponte sobre o Rio Doce, de onde viriam os reforços do 6º Batalhão da Polícia Militar, sediado em Governador Valadares. O plano incluía explodir o gasômetro da Usiminas, ato que geraria uma reação em cadeia que iria destruir a cidade de Ipatinga e, por tabela, a usina da outra siderúrgica instalada na região, a Acesita, hoje Aperam, cujo gasômetro também explodiria.

Uma terceira mentira era que os trabalhadores estavam, na noite do dia 6 e na madrugada e manhã do dia 7, insuflados por lideranças sindicais de fora que haviam se deslocado para Ipatinga com o objetivo de criar um clima de animosidade entre a direção da empresa e os trabalhadores. Na verdade, o acordo salarial firmado poucos dias antes dos acontecimentos de 7 de outubro foi conduzido apenas por lideranças dos Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Timóteo e Coronel Fabriciano. As primeiras lideranças nacionais dos trabalhadores chegaram a Ipatinga somente na tarde do dia 7 de outubro.

A absolvição dos policiais se deu durante o regime militar. Com o golpe, ocorreu também o silenciamento das lideranças trabalhistas na região. O resultado foi que sobre o Massacre de Ipatinga instalou-se um pacto de silêncio, que somente foi quebrado nos anos de 1980, com a fundação do PT que, entre 1989 e 2001, esteve à frente da Prefeitura de Ipatinga por quatro mandatos, dos quais três por intermédio de Chico Ferramenta, um ex-metalúrgico da Usiminas, recentemente falecido.

Porém, a despeito da quebra do pacto de silêncio, permaneciam muitas dúvidas em relação ao que teria ocorrido no 7 de outubro de 1963. A principal delas dizia respeito ao número de mortos. Havia a crença de que o número de vítimas fatais era muito maior do que o que apontavam os registros oficiais. Mas nunca foram apresentadas provas nesse sentido.

Em 2004, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República, abriu-se uma possiblidade de que esse mistério pudesse ter fim. Lula enviou ao Congresso uma medida provisória que permitia que familiares de pessoas que perderam a vida em função do regime militar pudessem solicitar uma indenização. Era uma reedição de medida semelhante apresentada anos antes pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A diferença era que a MP de Lula permitia que fossem indenizados familiares de pessoas que perderam a vida durante protestos de rua. No governo de Fernando Henrique somente puderam ser indenizados familiares de pessoas que morreram em dependências públicas, ou seja, delegacias e instituições semelhantes.

A MP de Lula abria caminho para que pela primeira vez, o Estado brasileiro indenizasse os familiares das pessoas que morreram no dia 7 de outubro. A expectativa era que familiares de mais pessoas, além das oito que constam nos documentos oficiais, entrassem com o pedido, o que não ocorreu. Sendo assim, o número oficial de mortos permanece como sendo de oito.

Porém, não entram na contabilidade oficial três desaparecidos, cuja existência chegou até mim quando eu era repórter do jornal “Estado de Minas”. Após a publicação de reportagem sobre o Massacre de Ipatinga, em 2004, fui procurado por uma pessoa, Aloísio Salgado que estava em busca do pai, Gesulino França de Souza. Na peregrinação, a última informação que havia obtido era de que o pai estava, junto com o amigo Fábio França de Souza, na aglomeração que se formou em frente a um dos portões de entrada da empresa no dia 7 de outubro de 1963. A partir daí, nenhuma informação a mais sobre ele foi possível obter. Presumivelmente, Gesulino e Fábio estão mortos. Porém, como não havia os corpos, o correto é dizer que eles estão desaparecidos.

Um terceiro desaparecido é João Flávio Neto, cuja irmã afirma que ele sumiu na mesma época, embora não haja testemunhas de que estivesse no local em 7 de outubro. Assim, na conta das vítimas do Massacre de Ipatinga é preciso acrescentar, além dos oito mortos, a existência de três desaparecidos.

Havia dúvidas quanto ao número de feridos.  No IPM aberto em 7 de outubro, constam 47 vítimas que foram atendidas os hospitais da região após os disparos. Porém, do IPM não fez parte uma outra lista de feridos: a dos que foram atendidos no ambulatório da Usiminas em consequência dos acontecimentos da noite do dia 6 e madrugada do dia 7. O cruzamento das duas listas resulta em um número total de 92 feridos. Esse cruzamento revelou algo bizarro: houve pessoas foram feridas duas vezes, nos acontecimentos da noite e madrugada de 6 e 7 e, novamente, no desfecho trágico do final da manhã do dia 7.

Esse número final foi obtido por mim durante o trabalho de consultoria que prestei à Comissão Estadual da Verdade em Minas Gerais (Covemg), em 2016 e 2017. Além de trazer à luz novos fatos, como o total de vítimas, no relatório final propus a revisão da ideia do que foi o Massacre de Ipatinga que, até então, levava em conta apenas os acontecimentos da manhã de 7 de outubro. A bem da verdade, o Massacre de Ipatinga deve ser considerado como um processo único, com duração de aproximadamente 12 horas, que se iniciou na troca de turno das 22h do dia 6, adentrou a madrugada do dia 7 – com a prisão de aproximadamente 300 trabalhadores nos alojamentos de Santa Mônica – e terminou pela manhã do mesmo dia, com a concentração operária em frente ao portão de entrada da empresa, que foi dissolvida a tiros pelos policiais militares.

O número final de atingidos pela repressão nos dias 6 e 7 caracteriza o Massacre de Ipatinga como o conflito operário mais sangrento e com maior número de vítimas na história do Brasil. Relembrar e compartilhar aqueles acontecimentos é fundamental para a construção de uma cultura histórica em nosso país e para que nunca mais massacres ocorram.

Antônio Concenza/Estado de Minas – 09/10/1963 – Chacina em Ipatinga – Operarios da Usiminas observam o cadaver de um companheiro assassinado durante o massacre realizado em Ipatinga por soldados da Policia Militar.

PARA SABER MAIS:

Freitas, Marcelo. Não foi por acaso: a história dos trabalhadores que construíram a Usiminas e morreram no Massacre de Ipatinga. Belo Horizonte: Comunicação de Fato Editora. Disponível em www.comunicacaodefato.com.br

Soares, Daniel Miranda. “O Massacre de Ipatinga”.Cadernos do CET nº 17, Petrópolis: Editora Vozes, 1982

Sampaio, Aparecida Pires «A produção social do espaço urbano de Ipatinga-MG: da luta sindical à luta urbana» Universidade Candido Mendes (UCAM), 2008.

Documentário: Silêncio 63 de Fábio Nascimento, 2011.


Crédito da imagem de capa: O corpo de José Isabel do Nascimento, em reportagem da revista ‘O Cruzeiro’

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