LMT #123: Willys Overland,  Jaboatão dos Guararapes (PE) – Karlene Araújo


Karlene Araújo
Doutora em História pela UFPE e Professora do CAp- UFPE


A primeira fábrica de automóveis do Nordeste brasileiro foi inaugurada em 14 de julho de 1966 em Pernambuco. A planta industrial da Willys Overland Nordeste, filial de uma empresa estadunidense, foi construída em Jaboatão (atualmente Jaboatão dos Guararapes), nas margens da BR 101, no distrito de Prazeres. Os arranjos para a instalação de uma filial da Willys em Pernambuco datam do final da década de 1950. Olinda, Recife também disputaram o direito de receber o empreendimento, mas a escolha recaiu sobre Jaboatão.

Jaboatão, no início da década de 1960, havia sido palco de intensas mobilizações de trabalhadores rurais, muitos deles ligados ao Partido Comunista. Não por acaso, a cidade tornou-se conhecida como “Moscouzinho”. Em um aparente paradoxo, essa tradição de lutas sociais acabou sendo uma razão fundamental para a instalação da fábrica em Jaboatão. Após o golpe militar de 1964, ganhou força o argumento de que a presença da Willys seria fundamental para o combate às agitações sociais e políticas dos trabalhadores da região.

A Willys prometia alavancar a economia do estado, promover melhores condições de moradia, de atendimento à saúde, de salário e de trabalho aos seus operários. Em sintonia com o discurso do governo ditatorial militar, promoveria no Nordeste o que nomearam de “revolução” da paz. A fábrica construiria um novo Nordeste, um novo homem e um novo trabalhador. O objetivo político era retirar o trabalhador rural do campo (e das lutas sociais) e inseri-lo no trabalho urbano e na disciplina fabril.

A inauguração da nova fábrica contou com a presença de quase 3 mil pessoas. Políticos, jornalistas, militares e empresários receberam a benção de Dom Hélder Câmara. O primeiro carro fabricado em terras pernambucanas foi um Jipe doado ao Arcebispo de Olinda e Recife. Um ritual marcou aquele momento. A benção do religioso, o corte da faixa e o toque da sirene. Começava uma nova era. A fábrica produziu carros por cerca de 10 anos. Foi pensada para produzir o utilitário Rural Willys e Jipes, batizados de “chapéu de couro” tanto para que fossem diferenciados daqueles produzidos na fábrica da São Bernardo do Campo, quanto para criar uma identidade com o Nordeste. Inicialmente, cerca de 250 operários trabalhavam na fábrica de Jaboatão. Esse número chegou a mil no auge da unidade.

Na memória dos operários, a Willys foi uma “mãe”, acolhedora e atenta às demandas dos seus funcionários. Lembrada por ações assistencialistas e pelo feliz cotidiano de trabalho. É comum o discurso de que se formou uma verdadeira família entre os diretores e gerentes, alguns vindos de São Paulo e dos Estados Unidos, e os operários. Os bons salários recebidos, as festas, a vivência no restaurante, os jogos de futebol, a distribuição de material escolar para as crianças, os atendimentos médicos e o acesso a melhores condições de moradia foram práticas que concorreram para a construção de um sentimento de pertencimento por parte dos trabalhadores em relação à fábrica. A Willys de Jaboatão apostou no registro e na projeção da imagem de um operário feliz, grato pelo emprego, empenhado e que pouco (ou nada) reclamava. 


No entanto, nem só de flores e festejos vivia a Willys de Jaboatão. Direitos trabalhistas muitas vezes não foram respeitados e os operários precisaram travar batalhas na Justiça do Trabalho.


A Junta de Conciliação e Julgamento de Jaboatão foi o palco das reivindicações pelo pagamento de indenização por tempo de serviço, aviso prévio, férias, 13º salário, insalubridade, opção pelo FGTS e, particularmente, horas extras não pagas . Entre 1964 e 1978, a organização sindical dos operários em Pernambuco foi esvaziada pela repressão do governo militar. Nesse período, boa parte das funções dos sindicatos limitavam-se a questões burocráticas, como a homologação de rescisões contratuais. Só no final da década de 1970, registrou-se uma reorganização e novas mobilizações dos operários, com destaque para o sindicato dos metalúrgicos de Pernambuco.

O cotidiano fabril começava logo cedo. Às sete horas da manhã os operários estavam em seus postos para o início de mais um dia de trabalho que terminava às cinco horas da tarde, de segunda a sexta-feira. Os operários moravam nas redondezas da fábrica e dispunham de um ônibus da empresa para seu transporte. A montagem dos automóveis era toda manual. Peça por peça, parafuso por parafuso. A produção diária era de 35 carros. Nos anos 1970, chegou a 860 automóveis mensais. Apenas homens trabalhavam na linha de produção, as mulheres, poucas, eram empregadas no setor administrativo da fábrica.

Pouco tempo depois da inauguração da unidade de Jaboatão, em 1967, a Willys Overland foi vendida para a Ford, outra indústria automobilística norte-americana. Os carros continuaram a ser produzidos em Pernambuco até o final da década de 1970, quando a fábrica de Jaboatão passou a produzir componentes automotivos como chicotes elétricos e luvas. Foi a partir de então que as mulheres começaram a trabalhar como operárias no chão de fábrica.

Atualmente, as antigas instalações da fábrica Willys pertencem a Fiat Chrysler Automobile e continuam produzindo chicotes elétricos que são instalados nos Jeeps fabricados na cidade de Goiana em Pernambuco. Na memória de tantos operários, o trabalho na Willys foi uma época de ouro. Isso, no entanto, não significou a “paz social” ou a ausência de lutas por direitos. Os Jipes e a Rural Willys permanecem no imaginário local, mas a fábrica da Willys nunca se tornou a “salvadora” da região como seus idealizadores desejaram.

Imagem 1: Linha de produção da Willys Overland de Jaboatão, 1966. Fonte: Revista  O Cruzeiro (RJ). 9 de agosto de 1966.
Imagem 2: D.Helder Câmara na cerimônia de inauguração da Willys Jaboatão, 1966. Fonte: Revista  O Cruzeiro (RJ). 9 de agosto de 1966. 


Para saber mais:

  • ARAÚJO, Karlene Sayanne Ferreira. Fábrica Willys Overland em Jaboatão – PE: discursos, embates e cotidiano fabril (1966-1973). 2020. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2020.
  • ARAÚJO, Karlene. “A fábrica-mãe: cotidiano fabril e a construção da memória dos operários da Willys Overland de Jaboatão”,  História Oral , v. 23, 2021.
  • NEGRO, Antonio Luigi. “A fome a vontade de comer. Opções de desenvolvimento e conflitos sociais e políticos” In: MONTENEGRO, Antonio (Org.) História: Cultura e Sentimento. Outras histórias do Brasil.  Recife: Editora Universitária; Cuiabá: Editora da UFMT. 2008.
  • https://memoriaehistoria.ufpe.br/

Crédito da imagem de capa: Fachada da Fábrica da Willys Overland de Jaboatão, 1966. Fonte: https://carroarretado.com.br/o-primeiro-jeep-produzido-em-pernambuco-saiu-da-fabrica-em-1966-conheca-a-historia/


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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