LMT #133: Santa Marina Atlético Clube (SMAC), Água Branca, São Paulo (SP) – Aira Bonfim


A história do clube esportivo Santa Marina Atlético Clube (SMAC) está intrinsecamente ligada ao processo de industrialização da cidade de São Paulo. A região que se estende dos bairros da Água Branca à Freguesia do Ó, situada nas áreas alagáveis ao redor do Rio Tietê, era conhecida por abrigar depósitos de areia com cor e qualidade ideais para a produção de vidro branco.

Em 1895, Antônio da Silva Prado e Elias Fausto Pacheco Jordão fundaram a empresa Prado & Jordão, na Água Branca, que inicialmente se dedicava à produção de vidros planos. A partir de 1896, a fábrica passou a se dedicar à produção de garrafas, em resposta ao desenvolvimento da indústria cervejeira brasileira. A Fábrica de Vidros Santa Marina, foi oficialmente estabelecida em 1901, após a aquisição, por Antônio Prado, da parte da sociedade pertencente aos herdeiros de Jordão. O nome da empresa foi escolhido em homenagem à filha falecida de Prado. Parcela importante dos trabalhadores da fábrica era composta de vidreiros especializados vindos da França, mas a presença de imigrantes italianos também era relevante.

Naquele mesmo período, a questão habitacional para os operários era objeto de discussão na cidade, dado o rápido crescimento populacional e a difusão de cortiços, o que levantava preocupações sanitárias. Em resposta a essas preocupações, em 1894, foi elaborado o Código Sanitário, que estipulava as diretrizes para a construção e a estruturação das vilas operárias. A responsabilidade pela construção das vilas foi transferida para a iniciativa privada, levando diversas empresas a erguerem esses empreendimentos para seus próprios funcionários.

Essa medida, além de garantir um maior controle sobre os trabalhadores,  visava tornar o negócio mais lucrativo, já que, devido às dificuldades de acesso às fábricas e às frequentes inundações do Rio Tietê (especialmente na região da Água Branca), os operários muitas vezes ficavam impedidos de chegar ao trabalho. Nesse contexto, no início da década de 1910, Antônio Prado inaugurou duas vilas operárias contíguas à fábrica Santa Marina: a Vila Velha, pioneira, e posteriormente a Vila Nova.

Francisco Ingegnere, conhecido como Chiquinho, ex-trabalhador da empresa, jogador amador e atual presidente do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), relata que a prática do futebol entre os trabalhadores remonta exatamente a esse período. Oficialmente, o clube, inicialmente denominado Santa Marina Football Club, foi organizado em 1913 por um grupo de operários, a partir da iniciativa de José Bonelli, um dos trabalhadores da vidraçaria.

Antônio Prado Jr., filho do fundador da empresa, teria contribuído para a criação do time, o que é destacado pela presença de um busto em sua homenagem na área de convivência do clube. Ter o nome da fábrica estampado nas camisas dos jogadores (e trabalhadores) aumentava a visibilidade e o reconhecimento da marca da empresa, associando-a positivamente ao esporte e à comunidade local. Além disso, o patrocínio de times de futebol amadores era uma estratégia para fortalecer os laços com a comunidade operária.


Por outro lado, o futebol estreitava os laços horizontais e de solidariedade entre os trabalhadores forjando muitas vezes uma consciência crítica em relação aos patrões, frequentemente criando um senso de identidade comunitária e de classe. Em muitos momentos, essas identidades se expressaram em protestos e greves como a de 1909 que paralisou completamente a fábrica.


Assim, o clube tornou-se um espaço fundamental para o lazer e sociabilidade de toda comunidade de trabalhadores e seus familiares. Em meio ao seu rico acervo iconográfico preservado, é possível reconhecer vestígios de excursões pelas cidades do interior de São Paulo, confraternizações diversas e a iniciação esportiva através do boxe, halterofilismo, ciclismo e futebol.

Em meio às transformações que envolveram a profissionalização do esporte bretão no Brasil na década de 1930, o SMAC teve uma breve incursão no futebol profissional, participando do Campeonato da Liga Esportiva de Comércio e Indústria (LECI) de 1959 a 1960 e do Campeonato Paulista da 3ª Divisão em 1960. Com o passar dos anos, o clube passou a cumprir não apenas a função de recreação, mas também de assistência e segurança social para as comunidades de toda aquela região.

A empresa Santa Marina foi adquirida pela multinacional francesa Saint-Gobain na década de 1960. Mesmo sem manter as operações no antigo terreno da fábrica da Santa Marina nos dias atuais, parte da estrutura fabril permanece no mesmo local. As chaminés do forno da empresa foram oficialmente tombadas em 2009. No entanto, o tombamento inclui apenas a preservação integral das chaminés e de algumas outras estruturas arquitetônicas da fábrica.

Já o clube de várzea do Santa Marina não foi incluído no tombamento, apesar  de representar uma rara conformação cultural-esportiva-popular que resiste às transformações urbanas e especulação imobiliária. Nos últimos quinze anos, a associação tem enfrentado ameaças de despejo da Saint-Gobain. No entanto, o clube tem resistido e se mobilizado, inclusive com o uso de uma Ação Civil Pública, amparada em um novo instrumento chamado de Proteção de Área Cultural.

A despeito dos desafios recentes, a comunidade segue organizada e em luta, e espera colaborar para novas maneiras de pensar os patrimônios coletivos e de trabalhadores, que levem em conta o direto às atividades de lazer bem como assegurem a existência das iniciativas autônomas e populares de preservação da memória.

Finais do “Campeonato Popular de Box”  na década de 1950. Acervo SMAC | Direitos Reservados.


Para saber mais:

  • BONFIM, Aira F. Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941). Edição da Autora, 2023.
  • SANTOS, Regina Helena Vieira. Vilas Operárias como patrimônio industrial. . Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/VI_coloquio_t2_vilas_operarias.pdf. Portal do IPHAN, VI Colóquio Vilas Operárias, 2012.
  • DOS SANTOS, Alberto Luiz; BONFIM, Aira; SPAGGIARI, Enrico. Mapeamento do futebol de várzea de São Paulo (SP): Reflexões para processos de proteção ao patrimônio. Revista Desenvolvimento Social, v. 28, n. 1, p. 122-152, 2022.
  • OLIVEIRA, Gabriel Yukio Shinoda. Entre a bola e a fábrica: reflexos da industrialização paulistana no clube de fábrica Santa Marina. Revista Hydra: Revista Discente de História da UNIFESP, v. 5, n. 9, p. 339-356, 2021.
  • RODRIGUES, Angela Rosch. Patrimônio industrial e atividade fabril: o caso da antiga Vidraria Santa Marina. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/264044619_Patrimonio_industrial_e_atividade_fabril_o_caso_da_antiga_Vidraria_Santa_Marina
  • Portal Researchgate, VI Colóquio Latino-Americano: sobre recuperação e preservação do patrimônio industrial, São Paulo, 2012.

Crédito da imagem de capa: Vista aérea da fábrica e do campo de futebol de várzea do Santa Marina Atlético Clube. Direitos Reservados. 


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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