Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

LMT#103: Palacete Santa Helena, São Paulo (SP) – Patrícia Freitas



Patrícia Freitas
Professora do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo



“Em 1922, enquanto filhos da aristocracia, viajados e formados, brincavam de vanguarda europeia (o que acabou dando sérios e importantes resultados), o imigrante operário decorava casas e nem sequer se informava do que ocorria nas escadarias e interiores do Teatro Municipal.” Assim Alfredo Volpi descreveu a Semana de Arte Moderna de 22, não com as pompas com as quais em geral esse evento é retratado, mas do ponto de vista de quem, como ele, ficou do lado de fora. Mas o que havia, ou quem estava, neste “lado de fora”?

No cenário cultural paulista dos anos 20 e 30 proliferavam por toda a cidade novas construções feitas ao gosto de uma burguesia ascendente. Enriquecidos pelo comércio de café e por uma incipiente industrialização, essa classe buscava orientar-se por um novo gosto decorativo, alinhado às tendências do art nouveau e art déco. Assim, cresceu o número de artistas que se dedicavam às chamadas artes decorativas, muitos deles imigrantes europeus. Por não trabalharem com as belas artes (pintura e escultura), estes artistas eram considerados “menores” e muitas vezes nem eram chamados de artistas.

Se o lugar de memória da Semana de 22 está intimamente ligado ao Theatro Municipal de São Paulo, para o caso dos artistas que trabalhavam com decoração, seria outro o seu edifício-manifesto: o Palacete Santa Helena. Inaugurado em 1925, o Palacete, propriedade do ex-governador Manuel de Albuquerque Lins, foi projetado pelo arquiteto italiano Giacomo Corberi e construído pela empresa da família Asson. Era considerado um dos mais luxuosos edifícios do centro paulistano, que rapidamente passava por um processo de verticalização, deixando para trás os vestígios do passado colonial da cidade.

O Santa Helena foi projetado para o comércio e os serviços, sendo constituído por lojas no andar térreo, sobrelojas e pavimentos superiores contendo salas de escritórios, além de um cine-teatro. Os construtores apostavam no crescimento da vida cultural da cidade. Nos anos que se seguiram à sua inauguração apresentaram-se, sobretudo, nomes da música caipira como Cornélio Pires e o duo Jararaca e Ratinho. O conjunto arquitetônico luxuoso do cine-teatro convivia deste modo com as temáticas populares e refletia a situação não apenas do Palacete Santa Helena, mas do centro da cidade de um modo geral.

Localizado ao lado dos terminais de ônibus das Praças da Sé e Clóvis Bevilacqua, e contando com um grande número de pequenas salas com aluguéis relativamente baratos, o edifício logo se tornou atrativo para iniciativas e grupos populares. Várias associações políticas e entidades culturais e sociais eram ali localizadas.


O Palacete Santa Helena abrigava as sedes dos sindicatos dos trabalhadores metalúrgicos, comerciários e das artes plásticas. Na conturbada década de 30, organizações ligadas à Aliança Nacional Libertadora (ANL) ocupavam salas do edifício. Também era no Santa Helena que funcionavam populares academias de pugilismo, como as de Kid Pratt e da família Zumbano.


Foi nesse efervescente ambiente de debate político e vida social que se firmaram em dois ateliês alugados em 1934 os artistas que ficaram conhecidos por Grupo Santa Helena. Nomeado em homenagem ao edifício, o grupo era formado, sobretudo, por imigrantes ou descendentes, que trabalhavam com decoração e começavam a expor pequenos quadros em Salões da capital. Volpi era um desses artistas, assim como Francisco Rebolo Gonçalves, Aldo Bonadei, Clóvis Graciano, Mário Zanini, Manoel Martins, Humberto Rosa, Alfredo Rullo Rizzotti e Fulvio Pennacchi. O fato destes artistas estabelecerem-se no Palacete Santa Helena deu a eles uma espécie de identidade anti-modernista. Enquanto os modernos de 22 eram vistos como uma elite ilustrada e viajada, os santelenistas foram identificados como artistas humildes e autodidatas, que buscavam nada mais do que viver de sua arte. 

Críticos influentes, como Mário de Andrade e Sérgio Milliet, se referiam a esses artistas como artesãos ou operários, e isso era associado às origens imigrantes, trabalho com ofícios e sua posição como coletivo dentro do Palacete Santa Helena. Eram lidos por essa chave e não raro apareciam nos textos da imprensa termos pouco usuais no campo das artes, tais como “labuta”, “trabucar” e “vida proletária”.

O Grupo Santa Helena dialogava diretamente com a  ânsia intelectual dos anos 30 por uma arte socialmente engajada. Já não funcionava mais voltar-se para os dilemas estéticos das vanguardas europeias, mas sim buscar o lugar próprio do homem social brasileiro. E o Palacete Santa Helena serviu como esse espaço de construção simbólica. Sua importância na narrativa da história da arte em São Paulo é fundamental porque nos permite entender a dimensão social do trabalho do artista, aquilo que, de uma certa forma, apagou-se ao longo da história: a mão do artista como a mão do trabalhador.

Entre 1934 e 1945, o Grupo foi deixando o Palacete à medida que cada artista desenvolvia sua carreira solo. Muitos dos sindicatos e associações também saíram do edifício. Em 1944, o prédio foi vendido para o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), mantendo, de uma outra forma, seus vínculos com os mundos do trabalho. Em 1971, o Palacete Santa Helena foi demolido para a construção das linhas e da Estação do metrô da Praça da Sé. Permanece, no entanto, como lugar simbólico de onde derivam importantes sentidos para o entendimento da modernidade e da história do trabalho no Brasil.



Para saber mais


Crédito da imagem de capa:  Vista frontal do Palacete Santa Helena, c. 1930. Arquivo pessoal do professor Claudio Lembo.


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